• Nenhum resultado encontrado

Inteligência e ambição, burrice e modéstia

Um dos dualismos mais difundidos entre “baianos” e “gaúchos” é aquele que se refere à superioridade, à ambição ou “agressividade” e à inteligência dos sulistas frente à inferioridade, a ignorância (ou “burrice”), a modéstia e a falta de agres- sividade dos “baianos”. Essa estigmatização dos nordestinos tem muito a ver com a ética capitalista trazida pelos migrantes, o valor que dão à propriedade privada, sua tradição de trabalho familiar, mais autônomo, e um forte caráter étnico (a descendência européia, ítalo-germânica) na elaboração de sua identidade. Uma ética capitalista muito mais arraigada, herança de traços culturais distintos, é que faz o “gaúcho” atribuir outro valor ao trabalho (e ao lucro dele advindo), à propriedade privada, reforçando o mito burguês da ascensão social pelo “esforço pessoal”, e que o torna mais “inteligente”, inteligência que acaba muitas vezes por se definir como “esperteza” e trapaça pelos nordestinos.

Essas oposições são forjadas, antes de tudo, pelo perfil dos gaúchos mais ricos que, por sua força econômica e política, fabricam e difundem a imagem do “moderno empreendedor” capitalista, ostentando de saída sua “riqueza” frente à “miséria” local, um dos traços genéricos mais difundidos sobre a identidade nordestina e que está ligado, comumente, à “preguiça” e à “ignorância”. A agressividade e a esperteza eram tidas num primeiro momento como conseqüências óbvias da “superioridade” intelectual e econômica dos “ricos” sulistas frente aos “pobres” nordestinos. Maior inteligência que se manifesta antes de tudo no domínio técnico e, conseqüentemente, na modernização que os sulistas foram capazes de desen- cadear nos cerrados, um espaço que era considerado improdutivo pela grande maioria dos nordestinos.

Essa modernização, normalmente associada à inteligência do sulista, começa entretanto a revelar sua dupla face, na medida em que sérios problemas ecológicos passam a ocorrer (esgotamento do potencial hídrico e dos solos, erosão crescente, laterização). Aos poucos percebe-se que a “ignorância” de muitos posseiros e camponeses nordestinos que habitavam os Gerais e praticavam uma policultura que restituía a matéria orgânica imprescindível aos solos das veredas, resultava numa relação muito mais harmônica com os frágeis ecossistemas locais, repro- duzindo de certa forma o que Verhelst (1992) denomina de “ignorância eficiente” do camponês tradicional. Em resumo, pode-se afirmar que os sertanejos são con- siderados ignorantes pelas pessoas que, em busca do lucro rápido e fácil, “sempre têm pressa” (HOCHET, apud VERHESLT, 1992, p. 64).

Salete Massucheti justifica a segregação por parte dos sulistas pelo fato de que “queriam já encontrar mão-de-obra especializada, não encontraram e come-

çaram a judiar dos baianos e a chamar eles de burros, ignorantes”. Ou seja, na impossibilidade de uma incorporação rápida da força de trabalho local no circuito capitalista, tornava-se conveniente “confirmar” antigos preconceitos como a inferioridade e a “burrice” nordestina. Na verdade, a condição de classe e a mentalidade capitalista mais arraigada de grande parte dos migrantes sulistas fizeram deles os privilegiados monopolizadores do crédito bancário e os grandes beneficiários nas associações e acordos com os empresários locais, o que acabou provocando reações de desconfiança e mesmo de desprezo entre alguns baianos. No início, o nordestino tinha uma imagem de “dócil” e “ingênuo” amplamente difundida entre os sulistas: “o gaúcho se acha superior. Baiano sempre pode ser ludibriado, comprado, é ingênuo. Baiano é muito dócil”, afirmou-nos um gaúcho, diretor do frigorífico de Barreiras. Assim, para o receio e a desconfiança de muitos baianos foi um passo: “Dificilmente dá certo sociedade de gaúcho com baiano, pois o segundo explora o primeiro”, afirmou-nos a ex-vereadora Ignez Pita ao relatar experiência que ela própria teria vivido. Muitos baianos que já haviam feito algum tipo de sociedade com os sulistas asseguraram que nunca mais o fariam: “isso é generalizado, com certeza. Gaúchos são tidos como capitalistas, como aproveitadores; o baiano é tido como mais justiceiro, ou melhor, mais igualitá- rio...”, defendeu o poeta barreirense Clerbet Luiz. Embora em parte verdadeiras, afirmações deste tipo tendem a simplificar a questão e mascarar o fato de que a “esperteza” capitalista não é uma prerrogativa específica dos sulistas (muito menos referida ao grupo como um todo).

Muitos sulistas, que já chegam com alguma formação profissional, acabam ocu- pando os melhores postos também no setor de serviços. Segundo Conceição de Oliveira, contabilista e funcionária da Caixa Econômica Federal, dos cerca de 200 agrônomos que existem em Barreiras, mais da metade são sulistas. Nos bancos, não só em Barreiras mas também em Baianópolis, Angical e São Desidério, a maioria dos supervisores e gerentes é sulista.

“No Banco do Brasil em Angical todos os supervisores e o gerente, mais funcioná- rios, são sulistas”, afirmou Conceição. Haveria também diferença de tratamento entre “gaúchos” e “baianos” na hora de captar depósitos:

Lá na Caixa a gente vai fazer captação de recursos, poupança, conta corrente, e eu fui fazer, coincidentemente, com a colega que é gaúcha. E a gente foi procurar o pessoal do comércio que predominantemente hoje é gaúcho. Então, eu sentia que quando ela se dirigia às pessoas, as pessoas acreditavam no que ela estava falando, davam mais atenção a ela. De retorno à Caixa para abrir a conta pro- curavam ela, ela foi gerente da Caixa. Nessa época ela conseguiu captar recursos como nunca (...), dinheiro que ia para outros bancos, (...) exatamente por essa

identificação, porque ela sendo gaúcha, então existia essa identidade, então procuravam, pegavam financiamento de casa própria, enfim...

João Bosco Pavão, antropólogo, afirma que uma das questões mais sérias que explica a segregação entre “baianos” e “gaúchos” (para a qual ele chega a utilizar os termos apartheid e “xenofobia”) é o fato dos empréstimos bancários saírem muito mais facilmente para os sulistas do que para os nordestinos: “Isso é notório; tanto assim que quem é o gerente dos principais bancos aqui, sobretudo o Banco do Brasil que é o principal financiador, é sulista, e era baiano quando eu cheguei, o baiano foi logo descartado”.

Uilio Chibiaque, sulista, então presidente da Copergel, coloca uma outra ques- tão. No lugar dessas facilidades que acabam privilegiando o sulista sojicultor na obtenção de financiamentos, ele enfatiza o fato do nordestino não querer correr riscos e ser um “pecuarista por excelência”:

O sulista é bastante trabalhador, (...) é muito ‘atirado’, vai metendo a cara, corre risco, enquanto o nordestino, basicamente o baiano, ele tem um medo danado de dever em banco, isso é um aspecto também cultural. Mesmo que queiram dar dinheiro pra ele, ele não quer pegar, tem medo da correção monetária e não é empreendedor, ele está na terra, viveu a vida toda assim. Agora, quem vem pra cá, se dispôs a vir pra cá, se submeter a outra vida, reduzir sua qualidade de vida, esse veio aqui pra decidir, e quem está aqui não vê razão de correr esse risco. Além do mais, o nativo é pecuarista por excelência. E esses recursos naturais que têm aí permitem fazer uma pecuária de baixo nível (...).

Essa segregação, via mito da superioridade “gaúcha” (aquele que “veio pra decidir”), poderia ser atribuída apenas às classes privilegiadas que, por estarem muito mais integradas ao circuito capitalista, impõem-se sobre os nordestinos de uma maneira incontestável. Entretanto, vários exemplos demonstram que esse sentimento de superioridade permeia também as relações entre as classes subalternas, em grande parte devido à identidade comum que acreditam partilhar, especialmente em relação a um atributo básico, de caráter étnico-cultural, que é a “descendência européia”.

Costa (1994) confirma esta característica entre os agricultores sem-terra, sulistas e nordestinos, num assentamento do Mato Grosso do Sul. Ele relata o depoimento de um pequeno agricultor sulista para quem “o nordestino não tem raíz, não trabalha, está hoje aqui, outro dia lá”. Para Costa, ele “parte do pressuposto de que a dedicação e o amor ao trabalho, a eficiência, a habilidade, enfim, todos aqueles traços que os tornam diferentes e melhores que os nordestinos decorrem da sua condição de descendentes de povos europeus” (p. 12).

Em nossa pesquisa, alguns relatos foram muito representativos. Até mesmo o operário não admite ser comandado por um “nativo”, como fica nítido nesta declaração de um agrônomo salvadorenho e sua esposa, baiana, a respeito de um pedreiro catarinense:

(...) uma pessoa sulista, ela age diferente (...) “a gente lá no Sul faz assim”... Por exemplo, aqui em casa a gente teve uma briga, foram brigas e brigas, porque...: se supõe que quem está construindo a casa e pagando o serviço determina como quer o serviço, e o nosso pedreiro brigava com a gente porque ele dizia: “mas no Sul é assim”, e fazia como ele queria, (...) depois já no fim do dia, a gente chegava aqui e tinha que desmanchar o serviço todo, como se ele pensasse da forma mais correta. E a gente aprofundou mais a análise, porque ele insistia, e o argumento era “porque lá no Sul era...” ou seja (...) você tem que se submeter ao raciocínio dele, porque lá é... (...) tem que ser assim, né? (...) uma coisa pirante...

“Muito teimoso”, o pedreiro era “disciplinado, trabalhador, muito eficiente, mas ‘dono-se-si’”, queria “impor a sua forma de trabalhar, impor como vão ficar os menores detalhes da construção”. A expressão “dono-de-si” (ou “aquele que sabe o que quer”, “o que decide”) era sempre muito utilizada pelos entrevistados baia- nos para definir o caráter dos sulistas, tidos em geral como mais independentes e muito mais individualistas que os nordestinos.

O único argumento utilizado pelo trabalhador era “porque no Sul é assim”, e se no Sul é assim é porque está correto, deve ser reproduzido, imitado, sem conces- são, como se a origem geográfica do migrante por si só já representasse todo um “capital simbólico” (nos termos de BOURDIEU, 1989) que o sulista incorpora e naturaliza, como se a competência, a capacidade de um indivíduo fosse dada pela sua naturalidade, seu local de nascimento.

Trata-se assim, pode-se dizer, de um neodeterminismo geográfico, onde não é a “natureza natural”, mas a “natureza cultural”, a cultura naturalizada ou a “na- turalidade” em sentido amplo, que determina a identidade de uma pessoa, suas qualidades e sua competência. Propomos denominar sulismo esta identidade mol- dada fundamentalmente pela origem étnica, européia, que vai além do gauchismo vinculado aos símbolos e práticas culturais das estâncias da Campanha Gaúcha. Nas suas manifestações mais extremadas, podemos denominar esse novo/velho determinismo da naturalidade de neoterritorialismo, partindo da definição de territorialismo formulada por BRUNET et al. (1993, p. 481) como:

Mau uso da territorialidade, desvio pelo qual se sobrevaloriza um território de pertencimento, ao ponto de excluir toda pessoa considerada como estrangeira, e eventualmente de estendê-lo em detrimento dos vizinhos: o territorialismo tem a ver com o terrorismo. Isso se produz notadamente quando se introduz na rela-

ção com o território uma idéia de naturalidade, em detrimento da historicidade fundamental do objeto (...).

Essa superioridade “natural” do sulista muitas vezes encontra-se ainda mais impregnada no cotidiano dos migrantes mais pobres. Estes, apesar de se integra- rem mais rápido e com mais facilidade à sociedade local, principalmente pelas imposições de sua condição econômica, acabam, pelo menos no início do processo, afirmando sua identidade de maneira muito incisiva, geralmente como forma de compensar a condição social inferior a que estavam subordinados no espaço de origem. Mesmo quando são tão pobres quanto os nordestinos, eles imaginam ter uma “obrigação moral” (ou “cultural”) de se afirmarem como superiores, apegados ao mito do gauchismo e/ou da “herança imigrante” que carregam, legado ilusório de um tempo em que, no capitalismo ascendente do Sul do país, o imigrante ainda tinha chances de ascensão social, seja como proletário ou pequeno empresário, seja como camponês.

Um dos exemplos mais significativos foi obtido pelo depoimento de um dos primeiros migrantes sulistas em Piatã, nos Gerais da Chapada Diamantina, “caseiro” na grande propriedade de um empresário gaúcho de Três Passos (RS) e descendente de alemães:

De primeiro (sic) quando a gente chegava eles ficavam meio assim, agora a gente chega no meio desse pessoal (...), nesses pés de serra aí... pra esses lados aí tudo eu já... tenho uma moto 250 e enfio nessas terras pra tudo quanto é lado. Lugar que os caras só enfiam cavalo e burro eu enfio a moto pra dentro. Sei que tem um forró lá não sei aonde, vou cortando mato até chegar.

Os trechos por nós grifados evidenciam bem a forma agressiva com que esse “con- quistador” moderno, cujo símbolo básico é a motocicleta, relata suas proezas e impõe um novo ritmo à “pasmaceira” dos sertões. Alguns mitos, como o do gaúcho “valente”, batalhador e “decidido” (mas também “brigão”), que tudo pode, tudo vence, acabam se tornando ainda mais fortes ou mesmo sendo completamente

recriados no espaço de muitos migrantes.2 Assim como na fronteira do extremo-sul,

2 Utilizando mais uma vez as declarações do “caseiro” da fazenda de Piatã: “(...) quando chega num baile desses só

tem pinga. Tu toma umas duas cachaças dessas brabas, já sobe pra cabeça e seja o que Deus quiser. (...) Uma vez eu fiz uma bagunça aí. Os caras fizeram o baile e disseram que se eu fosse homem e quisesse apanhar que eu fosse lá, aí não deu pra mim ir porque eu tava plantando, os caras tornaram a fazer outro baile e mandaram o aviso. ‘Fala pr’aquele gaúcho lá da soja que se ele for homem e quiser apanhar que ele venha aqui que nós vamos dar um couro nele. Aí eu arrumei um 38 e enchi de bala e fui lá. Comecei a dançar e numa dessas a camisa subiu e apareceu o cabo do revólver. Pronto, ninguém mais abriu a boca”. – Mas porque eles queriam briga? “Por causa que nós fumo (sic) lá e o baile não prestou, tava meio ruim aquilo lá e nós começamos a bagunçar. Botei fogo no galinheiro (...), joguei uns pedaços de pau encima da casa (...). Teve uma porteira lá que eu também derrubei, com a Ford”. Por ter muito maior mobilidade, com sua moto e a “Ford” (do patrão), ele se impõe sobre toda a comunidade e passa uma imagem do gaúcho viril, poderoso e “decidido”, quando na verdade isso (incluindo os prováveis exageros de seu relato) corresponde a uma espécie de compensação pela marginalização a que sua condição, no Sul, o relegava.

em que ele lutou contra os “bárbaros” caudilhos platinos, e nas zonas coloniais, onde teve a natureza e o indígena ou bugre como “competidores”, é como se aqui também, nas novas fronteiras do capital nos cerrados, o sulista continuasse uma espécie de conquista e missão civilizatória frente ao atraso, à rusticidade e à ignorância, agora, do sertanejo nordestino.

Os estereótipos de valentia e virilidade dos “gaúchos” acabam sendo um pouco relativizados quando estes se deparam com remanescentes de “coronéis” e “jagun- ços” do sertão. Estes também compartilham de mitos semelhantes e muitos sulistas acabam se surpreendendo com práticas sociais autoritárias que, embora prefiram ignorar ou rechaçar, mais os aproximam do que os distinguem dos nordestinos. A ambigüidade dessas qualificações da identidade ficou visível em certas declara- ções. Dependendo das circunstâncias, a identidade baiana se transforma em seu oposto: o sulista pode ser mais agressivo, mas nem por isso é sempre o mais sincero, na hora de xingar muitas vezes é o mais comedido, quem xinga mais é o baiano, quem é mais “audacioso”, transgredindo as regras dominantes no cotidiano, é o baiano. Como disse um agrônomo local: “O gaúcho é mais agressivo na forma dele ser, nos negócios, mas ao tratar as pessoas, é mais sutil. O baiano é mais caloroso nas suas relações humanas, é mais humano, mas é mais agressivo ao xingar, ao pular a roleta do ônibus, ao soltar um ‘porra louca’”.

Se o “gaúcho”, na sua “dureza”, é mais formal e o baiano, em sua modéstia, mais espontâneo, nem por isso o primeiro deixa de ser “mais direto” e o segundo deixa de fazer uso de “arrodeios” para se expressar:

O baiano é cheio de rodeios, “arrodeios” como a gente chama aqui (...) nós temos grande capacidade de “cantar” os outros, de convencer com rodeios, com o jeito baiano. O brasileiro tem um jeito, e especificamente o baiano, tem um jeito de rodear, de fazer o seu rodeio, e não dizer não, por exemplo, não ser taxativo, de não ferir... vem da índole, da coisa mais amável do baiano. (...) Talvez a soli- dariedade nos levasse a sermos meio termo, sermos rodeio, muito mais do que direto (Clerbet Luiz).

Para uma jornalista gaúcha em Barreiras, “o baiano não sabe dizer não (...) parece que eles dizerem não é uma ofensa, né? Então, a boa política aqui é não deixar numa situação que eles tenham que dizer não. É uma coisa que a gente estranha (...).” Para quem tem fama de “decidido” e “direto” fica realmente difícil encarar o “jeitinho baiano de resolver as coisas”. Esses “arrodeios” e um ritmo mais comedido de tomar decisões são utilizados como um argumento a mais para comprovar a superioridade e a competência dos sulistas.

A “ambição”, o caráter empreendedor e “decidido” e a conseqüente superioridade do sulista frente ao nordestino “despretensioso e resignado” tem muito a ver, conforme já ressaltamos, com as formas de sua inserção na moderna sociedade capitalista. Nesse sentido, o depoimento fornecido por Conceição de Oliveira foi muito rico, motivo pelo qual iremos comentá-lo com mais detalhe. Ela associa uma “mentalidade pré-capitalista” (na verdade mais uma variante embrionária de capitalismo do que um pré-capitalismo) com o coronelismo parcialmente ainda em vigor no interior nordestino:

[A mentalidade que havia era] pré-capitalista, era aquela mentalidade da ex- ploração, mas do não assalariamento, (...) ele não pagava pelas suas horas de serviço, existia uma relação muito mais de troca, de que o patrão representava o poder, pra você... digamos, ir ao médico quando precisasse do médico, de comprar uma casa quando precisasse de avalista, e muito menos em termos de troca do trabalho pelo salário. Isso tinha mais exploração, exploração.3

A visão de que “aquilo que você deixa de ganhar você perde, é a visão do gaúcho”, do empresário, a visão do lucro e da criação de novas necessidades. O baiano, segundo ela “vivia mais em equilíbrio. Se a loja dele vendesse seis sapatos durante a semana, e se isso dava pra ele comprar carne e se manter, ele iria vender esses seis sapatos. (...) Ele não ia pensar em ampliar, não ia pensar em pagar seus em- pregados com carteira assinada e melhorar a qualidade da venda, vender melhor. (...) eles estavam muito mais preocupados com o seu cotidiano: ‘vendi 6 sapatos, vou comprar minha carne, meu arroz, meu feijão, se sobrar eu compro minha TV’, entendeu?” Perguntei a Conceição sua opinião sobre a afirmação feita por muitos sulistas de que “o baiano não tem ambição”:

Ele tem ambição, mas não passa por cima, por exemplo, do conforto, do conforto, digamos assim, espiritual dele. Se é para ele dormir preocupado porque tem uma dívida para pagar, ele não vai contrair a dívida. (...) ele prefere não se arriscar. Isso é o que eu verifico muito de perto lá em casa (...). “Meu pai, vamos fazer assim, a gente precisa mudar, precisa comprar mais, estocar mais, porque o senhor vende uma mercadoria assim, assim, (...) mas o senhor tem que ter outra visão administrativa”. “Ah, minha filha, mas se eu fizer isso eu vou ter que ter outras preocupações também, e eu não quero abrir mão da minha tranqüilidade”.

3 Segundo Conceição, mesmo “os donos de empresas não viam a empresa como empresa, viam como um

meio, digamos, de vida (...), mas não tinham naquilo ali visão empresarial, ou seja, de acumulação, de acompanhamento de novas técnicas (...), muitas vezes nem sequer acompanhavam a contabilidade da empresa. Por exemplo, um computador para um empresário aqui, era uma coisa do outro mundo, ‘porque que eu vou usar um computador? (...) Escrituração contábil só serve para a gente sair da boca do leão, a escrituração só serve pra isso’, diziam”.

É evidente que se confrontam aí pelo menos dois padrões de acumulação, vincu- lados a dois ritmos ou duas concepções distintas do trabalho (conforme comen- taremos no próximo item), da competição e da lucratividade.