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O gaúcho tem tradição, né? O pessoal do Sul tem tradição. Pergunta pra um baia- no: “é... esse negócio de tradição...”, ficam com inveja, né? Porque a gente cultiva as coisas, mantém, e eles nem... “Mas por que vocês não fazem?” – “Tradição? O que é isso?” Eles não sabem. É que nem paulista, não tem tradição nenhuma. (...) nas origens, não tem, que eu saiba. A não ser os portugueses, a colônia japonesa.

Um outro intervém: Eles têm uma tradição, sim: na revolução de 35, quando eles apanharam dos gaúchos. O riso é geral.

Nesse diálogo informal com fundadores do Centro de Tradições Gaúchas Sinuelo dos Gerais, no oeste baiano, eles advogam para o “tradicionalismo” gaúcho o monopólio da tradição, como se somente a sua cultura, os seus costumes e a sua história tivessem valor, valessem a pena ser cultuados, rememorados, como se apenas eles tivessem “origens”, memória, identidade. Num sentido mais amplo, isso reflete a distinção que, eivada de preconceito, separa dois dos principais gru- pos migrantes do país: o dos sulistas, descendentes de imigrantes europeus, que se dizem os arautos da tradição, e o dos nordestinos que, por contraposição, com uma identidade definida antes de tudo pela falta, aparecem privados até mesmo de história. Para Francisco de Oliveira (1987):

É interessante (...) verificar a sede de recuperar a história da imigração italiana para São Paulo: enquanto se louva aquela, inclusive no seu aspecto cultural, a migração de nordestinos parece uma história sem história. A diferença radica em que, desde o princípio, a imigração estrangeira confere por antecipação aos estrangeiros que chegam o estatuto de operário, enquanto tal não se dá em relação aos nordestinos (p. 110).

Se os imigrantes italianos em São Paulo eram “operários a priori”, no Rio Grande do Sul, juntamente com alemães e poloneses, eles eram em sua maioria “camponeses a priori”, atributo que, hoje, mesmo na condição de sem-terra, eles imaginam levar consigo às regiões do país para onde migram.

Num sentido mais estrito, o discurso dos “tradicionalistas” do oeste baiano reflete claramente o peso do gauchismo organizado, do culto formalizado às tradições gaúchas empreendido por um movimento sui generis no país, o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). O MTG reivindica nada menos do que “a posição de maior movimento de cultura popular do mundo ocidental, com mais de dois milhões de participantes, mais de 40 festivais de música nativista, envolvendo um público em torno de um milhão de pessoas, e vários rodeios”, além de um imenso mercado de produtos vinculados a essas práticas culturais (OLIVEN, 1993, p. 404). Embora dividido entre nativistas, mais críticos (ligados principalmente aos mais conceituados festivais de música e a uma parte da imprensa), e tradicionalistas, mais conservadores (ligados ao MTG oficial), o movimento tem como pontos comuns a “preocupação com as coisas gaúchas”, a disputa pelo “mesmo mercado de bens simbólicos” e a utilização de “instâncias de consagração como os festivais de música, o debate jornalístico etc.” (OLIVEN, 1993, p. 406).

O primeiro CTG, o “35” (numa alusão a 1835, quando iniciou a Revolução Far- roupilha), foi fundado em Porto Alegre em 1948. Segundo Oliven, de 1948 a 1954 (ano do I Congresso Tradicionalista) teriam surgido 35 novos CTGs no estado, e em 1959 foi fundado o primeiro CTG de Santa Catarina, em São Miguel d’Oeste. O presidente da Confederação Brasileira do Tradicionalismo Gaúcho, Rubens Sartori, informou-nos que o primeiro CTG paranaense é ainda anterior, criado em 1956, em Ponta Grossa.

Impulsionado a partir do final dos anos 70, o movimento, que no início parecia incipiente, acabou se expandindo e até o início dos anos 90 não parou de crescer. Embora ele não se restrinja aos CTGs formalmente ligados ao MTG, o crescimento numérico das associações filiadas no Estado do Rio Grande do Sul é um claro indicador de seu dinamismo, como demonstra a Tabela 1, a seguir. Nela aparece o número de CTGs filiados ao MTG no Rio Grande do Sul a partir de sua fundação, em 1966.

Tabela 1 - Número de Centros de Tradições Gaúchas filiados ao MTG no RS

1966 10 1975 398 1980 607 1985 943 1990 1.414 1993 1.616

Fonte: Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), Porto Alegre.

Trata-se, portanto, segundo Oliven (1993), de um fenômeno que não é simples modismo nem “ideologia ultrapassada” (p. 407), como querem alguns. Ele surge associado à abertura política do final dos anos 70, quando começaram a se formar novas ou a serem retomadas antigas identidades sociais, marca de distinção diante da globalização cultural crescente e de uma identidade nacional desacreditada (após o “ame-o ou deixe-o” da ditadura). No caso do Rio Grande do Sul os únicos “sinais diacríticos” (utilizando os termos de Oliven) de caráter regional suficientemente sedimentados na memória da população eram os do gauchismo rural e latifundiário.

Um dos principais objetivos que parece unificar o movimento é a luta contra a homogeneização cultural imposta do exterior. O manifesto de criação da Confede-

ração Brasileira da Tradição Gaúcha (CBTG), assinado em Ponta Grossa, Paraná, em 1987, é muito incisivo a este respeito, pois considera que:

o laborioso e sacrificado povo brasileiro (...), além da espoliação econômica, tem, como realidade amarga, a colonização cultural da nossa gente, por interesses alienígenas que não nos dizem respeito e ferem danosamente os nossos princípios, nossos usos e costumes e a própria filosofia de vida de nosso povo (...)

É importante não esquecer que se tratam de elementos culturais que, ao mesmo tempo em que se reafirmam como “brasileiros” e fazem um recorte no interior do país, lutando contra a “colonização cultural” do “laborioso e sacrificado povo brasileiro”, mantêm fortes ligações com os vizinhos do Prata. Anterior mesmo à criação da Confederação Brasileira, em 1987, ocorreu em 1984 em Canelones, no Uruguai, a fundação da Confederação Internacional da Tradição Gaúcha, reunindo tradicionalistas da Argentina, do Brasil e do Uruguai. Esta extrapolação das fronteiras nacionais, conjugando-se com a cultura dos vizinhos platinos, tida como “a mais européia” da América Latina, é um elemento a mais a fortalecer esta identidade.

A difusão do tradicionalismo gaúcho é paralela à “diáspora” de sulistas para fora do Rio Grande do Sul e da Região Sul. A Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha (CBTG) congrega atualmente sete federações estaduais, os MTGs do Rio Grande do Sul, Santa Catarina (245 CTGs), Paraná (222 CTGs), São Paulo (51 CTGs), Mato Grosso do Sul (15 CTGs), Mato Grosso (39 CTGs) e Planalto Central (DF, GO, TO, oeste da BA e MG), cada um deles reunindo no mínimo 25 CTGs, além da União Gaúcha do Nordeste, fundada em 1994 em Natal. Trata-se de um fenômeno social muito importante, pois, apesar de não se restringir ao grupo sulista, tem nele sua base fundamental, tornando-se o indicador mais concreto da difusão cultural que estes migrantes promovem e fortalecendo a coesão social que essa prática lhes confere.

Através dos CTGs, revive-se, mesmo em áreas muito distantes da Campanha gaú- cha, uma identidade regional que de alguma forma tenta reproduzir no interior dessas associações o modo de vida das estâncias do Pampa fronteiriço – a come- çar por sua sede, o “galpão”, uma espécie de réplica do local mais tipicamente gaúcho dentro das fazendas, abrigo da peonada, que se confraterniza em torno do “fogo de chão”.

Para evocar o ambiente da estância, entre os primeiros Centros de Tradições Gaúchas, diz Oliven (1992):

No lugar de presidente, vice-presidente, secretário (...) empregaram-se os títulos de patrão, capataz, sota-capataz, agregados, posteiros, etc. No lugar de Conselhos

Deliberativos ou Consultivos, foi colocado o Conselho de Vaqueanos, e em vez de de- partamentos foram criadas invernadas. De forma semelhante, todas as atividades culturais, cívicas ou campeiras, receberam nomes que tivessem origem nos usos e costumes das estâncias gaúchas, tais como rondas, rodeios, tropeadas etc. (p. 78).

Embora divisões internas, como aquela mais ampla entre “nativistas” e “tradi- cionalistas”, também comecem a se manifestar entre os migrantes sulistas no Nordeste, e o movimento congregue de modo efetivo apenas uma minoria dos migrantes, geralmente ligada a uma parcela da classe média e classe média alta, não se pode negar que seu papel simbólico, como fator de coesão social e identidade do grupo, é muito relevante. Além disso, em outras áreas o tradicionalismo tem revelado cada vez mais uma face mercantil, ao mobilizar um grande mercado de produtos e eventos “regionalistas”, o que às vezes provoca fortes reações, como manifestou-nos o presidente do MTG de São Paulo (Itapetininga), indignado com “o grande comércio” em que haviam se transformado os “rodeios crioulos” na região.

Evidenciam essas divisões internas a grande disputa e os entraves enfrentados para a criação de um CTG no oeste baiano. A iniciativa pioneira havia se dado em Barreiras, frustrada, segundo alguns participantes do movimento, por pro- blemas e divisões envolvendo desde aqueles que não concebiam um clube voltado exclusivamente para o que eles chamam de “bombachismo” dos gaúchos mais tradicionalistas ou “da fronteira”, até aqueles que disputavam entre si a hege- monia da associação (e o conseqüente prestígio que a sua direção proporciona). Ficaram nítidas, nesta disputa, as diferenças entre um “tradicionalismo bairrista” de muitos migrantes, em geral originários do Rio Grande do Sul, e um gauchismo mais aberto e nuançado, defendido principalmente por migrantes do Paraná e Santa Catarina.

O CTG Sinuelo dos Gerais, considerado o primeiro da Bahia (dado contestado pelo presidente da CBTG, que cita como anteriores os de Salvador e Ilhéus), acabou surgindo em um espaço mais nitidamente “gaúcho”, a localidade de Mimoso do Oeste. Inaugurado em 1991, ele congregava em 1992 cerca de 200 associados. Considerando uma média de cinco dependentes para cada associado, mil pessoas é um número bastante significativo para a participação direta de uma associação criada em uma área de migração sulista recente como é o oeste baiano. A força do movimento é atestada por uma espécie de rede tradicionalista que se confi- gurava mesmo antes da inauguração do CTG, quando muitos sulistas chegavam a se deslocar quase 400 quilômetros, em excursões de ônibus, para freqüentar “fandangos” no CTG mais próximo, localizado em Formosa, no Estado de Goiás.

O papel ambíguo, gauchista, segregador, e ao mesmo tempo aglutinador, fortale- cendo um sentimento comunitário muito exaltado pelos sulistas, pode ser inferido a partir da matéria intitulada “CTG consolida tradição sulista”, publicada em um jornal de Barreiras:

O CTG Sinuelo dos Pagos

é um marco da colonização gaúcha na Bahia, posto que o primeiro do gênero no estado (...). Realiza bailes típicos onde só entra quem estiver pilchado, ou seja, vestido com trajes típicos (...). Esses bailes acontecem mensalmente, e também bailes livres (mas nem tanto). Também compõe o Centro uma cancha de bocha, esporte típico no Rio Grande do Sul, freqüentada todos os dias pelos associados. (...) A sede do CTG é fruto do esforço de toda a comunidade, que colaborou na construção do típico salão e da cancha de bocha, e da quadra de vôlei de areia, esporte também muito popular do Mimoso (NOVOESTE, 21 de maio de 1992).

Embora a reportagem revele um cunho segregador no CTG, ao só aceitar, na maioria dos bailes, pessoas “pilchadas”, ou seja, trajando vestimentas típicas, ela ressalta sobretudo o traço aglutinador ou comunitário do tradicionalismo. Ao aliar os bailes típicos ou “fandangos” com esportes tradicionais no Sul, como o jogo de bocha, o CTG amplia sua atuação e sua esfera de congregação social. Apesar de seu papel fundamental no fortalecimento de uma posição conservadora, as tradições, num sentido geral, tornam-se vitais a uma comunidade na medida em que “têm sempre uma parte de legitimidade histórica” e “permitem aos seus membros formar suas identidades (...) e construir solidariedades coletivas” (RO- CHLITZ, 1992, p. 168).

O CTG, por outro lado, ao se manifestar como um espaço profundamente disci- plinador (tomando a acepção de disciplina de FOUCAULT, 1984), onde os papéis se pretendem muito bem definidos, os “bons costumes” são sempre enaltecidos e preservados (por exemplo, na proibição do uso de minissaias) e um “clima fa- miliar” é mantido, algumas famílias nordestinas, identificadas com esses valores de classe média, também começam a identificar-se com o “ambiente sadio” do Centro de Tradições Gaúchas. O mesmo ocorre em outras áreas do país como o Mato Grosso, onde em 1994 dois dos 39 CTGs eram dirigidos por mineiros, e a periferia de São Paulo, onde a maioria dos membros do CTG de Embu é constituída

por paulistas e descendentes de nordestinos.15

Considerado anacrônico por alguns grandes empresários, como Luiz Ricardi, defendido abertamente por outros, como Alcides Trento, a verdade é que o “tradi-

15 Os dados referentes ao Mato Grosso foram obtidos através de contato com o presidente da Federação do

MTG de Mato Grosso, José Antônio de Oliveira, e os de Embu (SP) provêm de informações fornecidas pes- soalmente pela estudante Dircelene Kohte, referentes a sua pesquisa de final de curso, no Departamento de Geografia da USP.

cionalismo” não significa em si uma contradição com a “modernidade” defendida pelo conjunto dos migrantes:

O culto à tradição, longe de ser anacrônico, está articulado com a modernidade, o progresso. A evocação da tradição manifesta, freqüentemente, em épocas de processos de mudança social, tais como a transição de um tipo para outro de sociedade, crises, perda de poder econômico e/ou político etc.(...) Se o gauchismo reedita a tradição e a vida rural, ele o faz num estado urbanizado que se quer moderno (OLIVEN, 1993, p. 406 - 407).

Na verdade, pode-se mesmo afirmar que a tradição só foi produzida, “inventada”, definida, quando seu contrário, a modernização, se firmou. O culto ao novo e à transformação social gera seu oposto: a necessidade, inicialmente com caráter conservador e/ou de resistência, de revalorizar ou de reconstruir o passado, preservando assim uma memória, um “patrimônio” colocado em questão pela avalanche modernizadora que, ao dessacralizar o mundo, dá à história social e ao culto às “tradições” uma função que cabia aos mitos e rituais religiosos nas sociedades tradicionais. Além disso, “sempre que a civilização ocidental experi- mentou as dores da modernização, o lamento nostálgico por um passado perdido a acompanhou como uma sombra que mantém viva a promessa de um futuro melhor” (HUYSSEN, 1988, p. 156).

A história da modernidade (ou melhor, das sucessivas modernizações, como veremos no próximo capítulo) foi assim um sucessivo ir-e-vir na retomada das tradições – não no sentido das sociedades pré-modernas, mas como parte da própria modernidade (daí o sentido da “reinvenção” das tradições proposto por HOBSBAWM, 1984). A criação de museus, bibliotecas e exposições, que tomou vulto no século passado, seria um resultado concreto dessa preocupação. Segundo Harvey (1989):

O trabalho ideológico de inventar a tradição tornou-se de grande significado no final do século XIX precisamente porque esta era uma época em que as transfor- mações nas práticas espaciais e temporais implicavam uma perda de identidade com o lugar e repetiam rupturas radicais com todo sentido de continuidade histórica (p. 272).

Esta invenção não é, contudo, um puro produto da manipulação/idealização de classes sociais hegemônicas. Hobsbawm (1984) destaca a “relação entre ‘invenção’ e ‘geração espontânea’, planejamento e surgimento” das tradições:

As “tradições inventadas” têm funções políticas e sociais importantes, e não po- deriam ter nascido, nem se firmado se não as pudessem adquirir. Porém, até que ponto elas serão manipuláveis? (...) também parece claro que os exemplos mais bem-sucedidos de manipulação são aqueles que exploram práticas claramente

oriundas de uma necessidade sentida – não necessariamente compreendida de todo – por determinados grupos (...). Os gostos e as modas, especialmente na área do divertimento popular, podem ser “criados” apenas dentro de limites bastante estreitos; têm de ser descobertos antes de serem explorados e modelados. Cumpre ao historiador descobri-los num sentido retrospectivo – também tentando entender por que, em termos de sociedades em transformação dentro de situações históricas em transformação, sentiram-se tais necessidades (p. 315-316).

Assim, no caso da identidade gaúcha, como vimos neste capítulo, é evidente a relação entre elementos inseridos no mundo vivido, no cotidiano de expressiva parcela da população (inclusive os indígenas, nos primórdios da construção da identidade gaúcha), e sua apropriação e transformação pelos “inventores de tradições”, personagens/processos que, muitas vezes engajados numa dinâmica modernizadora, nem sempre são facilmente identificáveis. É em meio a essa di- nâmica complexa, contraditória e não raro paradoxal, que se coloca o embate de identidades e o processo reterritorializador promovido pelos sulistas nos cerrados do Nordeste.

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MODERNIZAÇÃO ARRASADORA