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Resistências e confronto de identidades

(...) nós aqui quebramos uma estrutura de vida, de cidade de 100 anos, não é

fácil isso, ninguém aceita tão fácil. Chega lá no Sul, qualquer cidade, e vamos supor: tem 20 mil habitantes e chegam 20 mil baianos lá, ninguém vai querer aceitar também. Acho que o pessoal do Sul é muito mais racista, com problemas de aceitação do que o pessoal do Nordeste. (Luiz Ricardi, empresário sulista, considerado o “rei da soja” em Barreiras)

Os baianos não gostam do gaúcho, (...) no início tinha assim, um muro, ... se via de tudo, não foi fácil. (Alcides Trento, empresário, um dos sulistas “pioneiros” na região)

Temos aqui duas comunidades: os gaúchos e os japoneses, que são tipo apartheid, bem segregadas e isso é pena, porque há muito pouca miscigenação (...) é muito forte... essa brutalidade do gaúcho. Nós aqui temos uma visão do gaúcho como bruto, ele é duro pela própria essência, como eu, enquanto paulista, também sou. A gente não tem todo esse gingar baiano, ...exteriorizado na própria vida, o gingar da gente quase não existe, a gente fica uma pessoa mais rígida, ... e isso eu acho que faz com que haja mais segregação ainda, que eles fiquem mais segregados ainda. Os baianos são mais festivos, hospitaleiros. (João Bosco Pavão, antropólogo, ex-diretor da UNEB-Barreiras)

O que eu acho engraçado nos gaúchos é que eles só têm a turma deles; quando fazem uma festa, só vão eles. Isso é o que não me agrada, eles só gostarem de

andar com a turma deles. O baiano é mais liberal. (Baiana, moradora antiga de Barreiras)

Muitos gaúchos ao chegarem começaram a chamar eles de burros, ignorantes, e o baiano se revoltou contra nós, tanto que tem uma barreira até hoje entre eles e nós. Começaram a se sentir invadidos(...) aí começou a haver uma concorrência. (...) Aí começou uma guerrinha, sabe, entre os dois, mas ela não é declarada. (...) Agora o baiano nunca permitiu que o gaúcho se isolasse completamente, ele pene- tra dentro (sic). (Salete Massuchetti, uma das gaúchas “pioneiras” em Barreiras) Uma vez no rádio, eu estava discutindo (...) e uma mulher me ligou e disse assim: “você fala isso porque o gaúcho não quer mostrar pro bem, o gaúcho veio aqui, tomou a nossa terra, tomou as nossas coisas e acabou com a nossa cultura”. Eu disse pra ela: eu concordo, a senhora está certa, isso realmente aconteceu. Agora, será que não foi também um pouco de deixa pra lá, de Deus dará, da cultura de vocês? Não faltou se impor? Não faltou... “Mas a gente não sabia”. Então a culpa é de quem? Vocês não vão poder barrar o desenvolvimento, o progresso, tapar o sol com uma peneirinha, não pode, isso não existe. Eles vão ter que encarar isso, ou se juntam com essa bola de neve, e tentam segurar para evitar o ruim que ela trás, ou ficam à margem do processo. (...) Eu vi a coisa feia. Hoje já está melhor, o [bumba-meu-]boi continua saindo na rua, a cultura já está enraizada, está forte (...) Tem vez que a cidade se mobiliza, como no caso da igreja da matriz, quando o padre resolveu destruir a igreja. (Berê Brasil)

Estas declarações dão bem uma idéia do tipo de conflito que se desdobrou nos cerrados baianos entre as culturas sulista e nordestina – “cultura” vista aqui num sentido mais estrito, vinculado a traços étnicos e identitários capazes de difundir um processo de diferenciação simbólica entre os grupos sociais. Trata-se de um processo muito complexo, pois ao mesmo tempo em que tenta se impor, a identi- dade gaúcha provoca múltiplas reações na sociedade local, desde a desestruturação de laços culturais tradicionais até a reafirmação ou mesmo a (re)definição de uma identidade cultural e territorial.

A situação particular do oeste baiano, entre o Nordeste e o Centro-Oeste, o Sertão são-franciscano e os Gerais, dificulta a definição de uma identidade socioterritorial mais arraigada (ver a esse respeito o último item deste capítulo). Traços culturais “baianos” ou “nordestinos” pareciam bastante tênues quando da chegada dos sulistas. Barreiras, principal centro regional, era tida como uma cidade “sem identidade”, “cidade de forasteiros” onde dominava o “marasmo”, “uma apatia quase total”, nas palavras de João Bosco Pavão, ex-diretor da faculdade local. Resgatados ao longo do tempo, porém, o que se pôde perceber é que esses traços não eram tão incipientes quanto se imaginava, e a população local passou muitas vezes a fazer uso deles para resistir à identidade “invasora”.

Contraditório, o processo de definição e resgate de identidades locais envolve até mesmo sulistas, como Berê Brasil, uma das responsáveis pela retomada de tradições relativamente esquecidas como o bumba-meu-boi e a festa do Nazaro. Mesmo sofrendo resistência de alguns grupos, especialmente da elite baiana, que temia o uso político de sua atuação, foram implementados, ao lado das manifestações culturais gaúchas, encontros e festivais de cultura “nativa”.

Com poucos signos capazes de projetar positivamente os símbolos de sua identidade, a maior parte dos nordestinos acaba corroborando a imagem de superioridade que a cultura sulista tende a difundir. Isto se revela em fatos corriqueiros como o uso de elementos do linguajar sulista (apesar de considerado “mais errado” por alguns, muitos enaltecem o sotaque gaúcho, principalmente o do erre palato-nasal, considerado “mais correto” e indicador de maior status).

Essa espécie de autodepreciação frente ao “colonizador” sulista, lembra a afir- mação de Lévi-Strauss (1987), lamentando a recusa das culturas tradicionais ao relativismo cultural: “(...) estes povos se unem às teses de um velho evolucio- nismo unilinear como se, para participar mais rapidamente dos benefícios da industrialização, preferissem considerar-se antes provisoriamente atrasados do que diferentes, mas então a título permanente” (p. 61).

Isso não impediu, entretanto, várias manifestações que, em meio a esses conflitos geralmente sutis e velados, acabaram configurando formas de resistência de grupos locais às mudanças trazidas pelos sulistas. Entre elas podemos citar, especialmente durante a primeira década de contato:

• o aumento do preço das mercadorias e dos aluguéis quando observavam que o cliente era “gaúcho”;

• a partir de determinado momento, a recusa a fazer acordos ou sociedades a nível econômico com sulistas;

• no âmbito político-eleitoral, a rejeição a candidatos gaúchos (ver item A “democracia” gaúcha e o “coronelismo” nordestino, p. 197).

• sermões da igreja católica acusando os sulistas de “grileiros” (o que fez com que algumas famílias deixassem de freqüentar a igreja);

• alguns boicotes a projetos culturais de iniciativa dos sulistas;

• recusa a freqüentar clubes e festas de sulistas (embora neste caso importasse muito mais a segregação imposta pelos próprios “gaúchos”) e ouvir suas músicas: por exemplo, num restaurante de Barreiras onde se apresenta um músico gaúcho muito popular, o proprietário afirma que “ele sabe a hora de tocar música sulista, é a hora que tem sulista, porque tocar na

hora que tem baiano, o baiano não gosta e eu tenho que fazer sinal pra ele: ‘não toca porque tem baiano, baiano que não está gostando’”; • composição de algumas letras de música, literatura de cordel e poesias criticando

ou ironizando a atuação dos sulistas, como na poesia “Chimarrão e Sete Dores”, de Clerbet Luiz (s.d.), onde ele diz:

Eles vieram cavalgando / não queriam bang-bang / só Oeste, sol e água fresca / eles vieram às pampas / sem sangue azul na pele branca / esporas me doíam mais que canhão / e tinham botas de sete léguas / cabelos de milho sem sertão (...) minhas vistas eles me pagam / e a cada marcha do cavalo herói / só de calado esse canhão me dói / e pra resistência das verduras / traziam outro outono / suor fuçando nosso chão (...) Eles vieram adivinhando / que pouco importa contra- bando / chegando em nós, boa gente: / “que preguiça hospitaleira” / chegando cegos de cataratas / caindo nossas corredeiras / e pras feridas das sete quedas / tomaram chá de sete dores no chimarrão.

• relutância em aceitar professores “gaúchos” nas escolas: “é muito grande a resistência do pessoal daqui pro nosso trabalho”, disse uma professora catari- nense que fundou uma escola particular em Barreiras onde mais da metade dos alunos são sulistas, “a nossa escola é de clientela mais selecionada, então a gente sente que o pessoal procura a gente, (...) porque sabe que você tem uma coisa diferente pra oferecer, pela experiência que a gente tem, mas no fundo sempre existe e sempre vai existir aquela resistência”. Em Morro Redondo, na zona rural de Corrente (PI), os pais de um estudante gaúcho reclamavam muito do professor, nordestino, que “até inventava erros pra não dar 10 pro menino”; segundo eles seu irmão mais velho, ao participar de um concurso de poesias em Corrente não teria obtido o primeiro lugar “porque eles não poderiam admitir o primeiro lugar pra um sulista”.

• ênfase maior nas notícias do rádio e da televisão à atuação dos baianos: segundo o pastor luterano Valter de Oliveira, “nós notamos um pouco de discriminação por parte dos baianos em relação ao gaúcho (...), alguma coisa, por exemplo, quando se apresenta o noticiário na televisão se enaltece a região e o baiano, deixando o sulista de fora”. Inaugurada em 1991, a emissora da rede Globo em Barreiras, mesmo controlada pelos grupos mais tradicionais da política local, na verdade é um instrumento ambíguo que pode tanto servir para acelerar a “integração modernizadora” em seu conjunto quanto ser utilizado para, na linguagem mais radical de alguns “gaúchos”, “boicotar suas realizações” na

região, em benefício das “coisas da terra” e das oligarquias locais.1

1 “Boicote” esse, entretanto, que passa muito mais pelo recorte político das disputas intra-elites políticas

regionais (PFL de Antônio Carlos Magalhães e, localmente, do “coronel” Baltazarino Andrade, PMDB de Nilo Coelho e PSDB do então prefeito de Barreiras, Saulo Pedrosa), do que pelo recorte gaúchos x baianos. Esses conflitos são um tema relevante e polêmico que, por esse motivo, será tratado com mais atenção no subtítulo A “democracia” gaúcha e o “coronelismo” nordestino, p. 197.

Para a gaúcha Salete Massuchetti “resistência só houve por baixo dos panos (...)”, mas “...o sulista violentou completamente o baiano, em todos os sentidos. A vio- lência foi grande, violência cultural, econômica”. Barreirenses tradicionais, como seu Napoleão Macêdo, também concordam com a “violência” das transformações mas afirmam que não houve resistência (“represália”) por parte dos baianos porque “baiano é compreensivo, justo, pacato. Todos os nordestinos são acessíveis”. O retraimento e uma certa recusa ao diálogo também foi uma forma de resistência encontrada pelos moradores mais antigos. “Dessas duas mil famílias [de gaúchos] que acredito que tenha em Barreiras hoje, sou a única mulher aceita pelo povo antigo... Eles têm medo. Agora, se eu for junto eles conversam. Eles têm confiança. (...) Eu consigo tudo deles”, afirmou-me com orgulho Salete Massuchetti. Entre- tanto, quando se propôs a auxiliar-me na obtenção de uma entrevista com um dos moradores mais antigos, a recusa foi veemente.

Essas formas de resistência, evidentes principalmente na primeira década da migração sulista, fazem parte de um jogo bem mais complexo, envolvendo os inúmeros estereótipos concebidos ao longo do tempo na construção das duas identidades. Retomemos, em síntese, alguns dos qualificativos utilizados por José de Alencar e Euclides da Cunha para definir gaúchos e sertanejos, ou adjetivos a eles associados, conforme abordamos no Capítulo 3:

gaúcho: cavalheiresco, valente, fanfarrão, despreocupado, jovial, aventureiro; fes- ta, elegância, correção, decência; natureza “carinhosa e deslumbrante”; sertanejo: desengonçado, xucro, selvagem, rústico, instável; resistência, dureza,

desgraça, resignação, vexame; “horrores da seca”, “terra árida e ex- sicada”.

Muitos desses qualificativos e associações, de tão difundidos, acabam sendo incorporados pelo senso comum. Outros, no entanto, expõem abertamente sua ambigüidade, sua transformação ao longo do tempo e a abertura para novas interpretações. Analisando todas as entrevistas e questionários que realizamos, foi possível identificar vários estereótipos (ou estigmas) que se reproduzem na vivência cotidiana sob a forma de dualidades, ao mesmo tempo contrapondo e distinguindo, respectivamente, as identidades de gaúchos e nordestinos.

Alguns desses estereótipos, como veremos, adquirem hoje exatamente o sentido oposto àquele identificado no início do século pelos referidos autores, demons- trando a mutabilidade a que estão sujeitas as identidades e, especialmente, o fato de que a transposição da figura do sertanejo como emblemática da identidade nordestina em seu conjunto, além das simplificações que impõe sobre o próprio

sertanejo, ignora, entre outras, características peculiares da parcela mais expressiva dos nordestinos, a do litoral (onde eles são considerados “muito mais abertos” e “festivos” pelos próprios habitantes do oeste baiano).

Nossa pesquisa permitiu definir um amplo espectro de qualificações que pode ser sintetizado no seguinte conjunto (aparentemente) dual de qualificações identitárias:

“Gaúcho” “Baiano”

Inteligência “Burrice”

Trabalho Preguiça, festa

Ambição Despretensão

“Esperteza” Simplicidade; ingenuidade

Agressividade Modéstia, meiguice

Dureza, rigidez Tolerância (com “ginga”, “arrodeios”)

Conservadorismo Liberalidade

Limpeza, ordem Sujeira, desordem

Agressividade, ambição e inteligência (“esperteza”) x tolerância, modéstia e ignorância (“ingenuidade”), trabalho x preguiça e moral conservadora x liberal foram considerados os atributos mais recorrentes e, por isso, mais importantes para serem questionados, no sentido de desmistificar o dualismo com que são apresentados. É importante observar que essas contraposições aparecem de for- ma a conceder quase sempre um valor superior, mais positivo, ao “gaúcho” (os símbolos que o identificam são basicamente “símbolos de prestígio”, para usar os termos de GOFMANN, 1988) e mais negativo ou depreciativo ao “baiano” (cujos símbolos de identidade são sobretudo “símbolos de estigma”), onde até mesmo a “brandura” e a “ginga” baianas, que a princípio nada representariam de negativo, no discurso de muitos sulistas são tomados pejorativamente como signos de “falta de masculinidade”.

Analisemos com mais detalhe essas oposições a partir do senso comum, passando logo depois para a verificação de como essas distinções simplificadoras entre sulistas e nordestinos se reproduzem e mesmo são reforçadas através do próprio espaço geográfico.