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O “Bairro dos Gaúchos” e a cidade, a limpeza e a sujeira

O bairro, muito próximo da rua de DaMatta e com ela mesmo, muitas vezes, se confundindo, é um espaço local onde se dão (ou se davam), tradicionalmente, as relações cotidianas do nosso “espaço vivido”. Souza (1989) mostra que, apesar das profundas transformações da cidade contemporânea e da massificação que destruiu a vida de bairro, mesmo nas grandes metrópoles o bairro ainda é um referencial importante para os movimentos sociais e para a vida cotidiana. Em Barreiras, uma cidade cujo crescimento só se acelerou de fato nos anos 80, o bairro era uma realidade praticamente inexistente. Talvez a exceção fosse Barrei- rinhas, na outra margem do rio Grande, onde inclusive já foram geradas idéias emancipacionistas. A rápida urbanização dos anos 80 levou ao surgimento de inúmeros loteamentos, alguns totalmente isolados do resto da cidade, carentes de infra-estrutura. Estas carências, aliadas a interesses político-eleitorais, acabaram promovendo a criação de associações de moradores, muitas, entretanto, subor- dinadas à prefeitura local ou mesmo propostas por ela, sem partir de vínculos efetivos de identidade com o espaço, muito importantes para a definição de bairro. Embora raramente delimitada com precisão (não obstante os limites impostos pelos órgãos públicos), “é imprescindível que uma realidade, para ser um bairro, desperte empatia no citadino, pois é essa empatia, a sensação de entrar no bairro, por exemplo, como alude Kevin Lynch, que é a base da identidade do bairro” (SOU- ZA, 1989, p. 149-150). Apesar de não propor um conceito mais explícito do bairro contemporâneo, Souza destaca algumas mudanças em relação ao “bairro clássico”. Se o “conteúdo interacional” (“vida de relações no bairro, vida de bairro”) se dilui, o “composicional” (“composição de classe, de grupo, econômico-funcional, étnica” [p.156]) se amplia com o acirramento das desigualdades sociais e da segregação de classe (ou mesmo étnica, através dos guetos):

Os conteúdos interacionais podem se enfraquecer ou sofrer descaracterização, mas as diversidades composicionais são, no global, acentuadas com a complexi- ficação da organização social (relações de produção, tecnologia, controle social). (...) Esse enfraquecimento é (...) “compensado” pelas diferenciações socioeco- nômicas corporificadas na continuidade dos guetos, na proliferação de favelas, no surgimento de grandes condomínios fechados para uma elite insegura. E se desenvolvem outras “almas próprias”, decerto menos românticas que as pinta- das pelos culturalistas, mas nem por isso pouco contundentes: a atmosfera de fechamento do condomínio exclusivo; a superbadalada periferia de amenidades habitada pela elite; o estigma favelado (p. 164-165).

Revisando teoricamente as mudanças sofridas pelo conceito de bairro, o autor mostra que passou-se “do bairro sem conflitos para o conflito sem bairro” (p. 147),

como se na dinâmica social urbana o espaço não exercesse nenhuma interferência. No caso de Barreiras, o “esboço” de bairro que os sulistas construíram nos anos 80 é uma evidência da importância da análise da segmentação espacial da cidade para o entendimento de seus conflitos.

Em 1991, quando realizamos ali o trabalho de campo, o “bairro dos Gaúchos” revelou-se o caso mais evidente, à escala local, intra-urbana, da segregação so- cioespacial criada a partir da chegada dos sulistas. Sua condição de bairro ficava razoavelmente definida pela coesão de interesses de seus habitantes, pela identidade cultural e de classe que partilhavam (seu “conteúdo composicional” homogêneo) e pelas iniciativas conjuntas que mobilizavam os moradores, redundando em maior empatia com o bairro.

Os próprios moradores reconheciam que o bairro havia sido construído pro- positalmente para aglutinar os “conterrâneos” e afastá-los da “sujeira” e da “desorganização” dos nordestinos. Apesar de já ter entre seus moradores algumas famílias de nordestinos ricos, ele podia até então ser caracterizado como um espaço segregado, econômica e culturalmente percebido como distinto no interior da cidade. Se a “vida de bairro” (seu “conteúdo interacional”) não era tão ativa, isto se devia mais à condição de empresários rurais de grande parte dos proprietários (trabalhando na fazenda e só retornando à cidade em média a cada 15 dias), do que à falta de uma identidade e de interesses comuns.

Na medida em que o sulista na Bahia “não é a realidade do lugar”, como disse uma moradora, seu caráter exógeno e “superior” devia ser mantido às custas até mesmo de uma reterritorialização segregadora que impedia a “mistura” com a sociedade local. A segregação cultural ocorria assim pari passu com a segregação econômica:

Economicamente minha vida melhorou, e como o avanço econômico também traz crescimento social, a gente procurou morar num bairro melhor e perto de gente nossa, onde você tem um convívio mais selecionado, né? (professora e diretora de escola primária, catarinense)

Fisicamente, pelo menos, a “vila dos Gaúchos” constituía uma tentativa de “ordenar a desordem”, num espaço urbano de crescimento não regulado onde proliferavam os loteamentos sem nenhuma infra-estrutura. O bairro apresentava ruas asfaltadas e casas de alto padrão, praticamente todas com fossa sanitária, numa cidade que até 1993 não possuía rede de esgoto. Contudo, apesar desse aspecto à primeira vista ordenado e regulado, o bairro também participava da “ilegalidade” dominante numa cidade de crescimento extremamente rápido: muitos proprietários aproveitavam a falta de rigor da fiscalização e realizavam

construções sem autorização da prefeitura, que só há pouco tempo começou a embargar algumas obras. Ou seja, quando podem tirar vantagem, os sulistas não se recusam a participar da “desordem” ou da “desorganização” atribuídas aos nordestinos.

O asfaltamento só foi conseguido em época de campanha eleitoral, e com todos os moradores se comprometendo a pagar as despesas da prefeitura. A segurança também era garantida pelos próprios moradores, que dividiam os gastos com guardas noturnos. Alguns moradores mais ricos compraram até mesmo os móveis no Rio Grande do Sul. Um proprietário construiu sua casa, de madeira e em estilo “europeu”, trazendo todo o material diretamente do Sul. O bairro se tornou assim tão contrastante com o resto da cidade que virou uma espécie de atração turística. Como nos afirmaram duas donas-de-casa: “Gente de fora quando entra aqui já diz: aqui só dá sulista”; “o pessoal daqui mesmo vem aqui, dá uma volta de carro no bairro e diz: isso aqui não é Barreiras, parece outra cidade”. Por outro lado, isso reforçava o sentimento de identidade dos moradores.

No “Bairro dos Gaúchos” até mesmo as festas de São João eram motivo de disputa, visando identificar “quem organizava melhor”, como fica claro nestas declarações de duas moradoras, responsáveis pela festa promovida pelos sulistas:

A gente fala mal, mas tem coisa de bom. Eles também têm as tradições deles. Tem muita coisa que é bonita, mas o que é bonito mesmo é o São João deles. No ano passado fizemos festinha aqui na nossa esquina; fecha a rua, coloca mesinhas, cada um leva um prato; só que nós fizemos pra nós, né... Nós ‘tamos mantendo a tradição deles. Eles fazem, também, mas nós organizamos melhor. Agora eles já ‘tão achando bonita a nossa. Nós organizamos e convidamos todos os que moram aqui. Só que eles ficaram com ciúme, né, porque a gente é mais orga- nizado. (...) Eles não fazem fogueira de São João, como nós, só um foguinho na frente de casa que fica lá, a noite inteira. O nosso costume é aquela fogueirona, né, bonita, quentão, pinhão... (grifos nossos)

Me infiltrei na casa deles [para conhecer as festas juninas] e acabamos fazendo festa mais bonita e organizada que a dos baianos.

A “maior organização” dos sulistas é constantemente enfatizada, como se os nor- destinos partilhassem uma cultura da desordem, da despreocupação e do desalinho. “Infiltrar-se”, por sua vez, revela um pouco o sentido de “conflito não-declarado” e de “pacto” de convivência socioespacial limitada existente entre os dois grupos, assim como os subterfúgios utilizados para conhecer o que há de melhor “do outro lado” e superá-los, como se muitos sulistas simplesmente considerassem inconcebível o fato de não serem “os melhores em tudo”.

Apesar das mudanças que vêm ocorrendo, com o aparecimento de outras “áreas nobres”, elitizadas, em Barreiras (incluindo o primeiro condomínio fechado), e a formação de uma classe de “novos ricos” que inclui empresários nordestinos e do Sudeste do país, o bairro ou vila dos Gaúchos permanecia como símbolo da modernização “sulista” no interior da cidade. Nas palavras de uma dona-de-casa, “tudo aqui é à moda antiga. Já o nosso bairro é uma coisa mais moderna”. Políticos baianos, como o então prefeito Paulo Braga, que entrevistamos em 1991, tentavam minimizar a segregação:

(...) existe um bairro chamado vila Regina onde existe uma concentração maior de gaúchos, é um bairro novo, e como eles procuraram a prefeitura e fizeram um programa de contribuição de melhoria para asfaltamento, muita gente dizia: não, ali é o bairro dos gaúchos, mas na realidade tem muitos baianos também, nativos (...). Mas não deixa de ser um bairro de predominância de gaúchos, pode ser até que o termo seja justificado.

Para empresários que ali residiam, só o nome oficial era Vila Regina, pois “todo mundo conhece como vila dos Gaúchos”. A forte ligação dos moradores com o local ficava evidente em declarações como: “não gosto da cidade, gosto do bairro onde eu moro” (dona-de-casa); “a única semelhança daqui com o Sul que eu vejo, que quem vem de fora vê, é o bairro em que nós moramos” (empresário rural). Apesar das afirmações do ex-prefeito, tentando ignorar a segregação socioespacial, as afirmações dos moradores deixam claro o grau de distinção que o bairro conferia a quem nele reside, locus ao mesmo tempo da “modernidade” e do “sulismo”. Não podemos esquecer que se trata fundamentalmente de um bairro de classe média e classe média alta, ciosa de um padrão identitário e de um conjunto de valores morais pelos quais deve zelar. Assim, o preconceito alimenta e ao mesmo tempo é estimulado por essa segregação no espaço. Ignorando a desigualdade social e a diferença de classes, a comparação entre a “limpeza” e a “ordem” do bairro com o restante da cidade eram utilizadas como provas concretas para a concepção previamente forjada de que o baiano ou o nordestino é indisciplinado e convive “normalmente” com a desordem e a sujeira.

Ainda que, a exemplo do que predomina no conjunto das cidades brasileiras, exista a tendência de se afirmar a segregação econômica sobre a segregação cultural (ou, talvez mais ainda, de confundi-las), muitas são as evidências de que, pelo menos até aqui, o componente cultural, o predomínio de sulistas na composição da população do bairro é um elemento crucial e que não pode ser menosprezado. Um exemplo disso é dado pela declaração de uma moradora que, indagada sobre os traços da cultura baiana (em junho de 1991), assim se expressou: “A cultura

deles? É esgoto a céu aberto pra gente cheirar, essa é a cultura deles”, indignada com o morador nordestino do bairro, seu vizinho, que não havia construído fossa séptica e jogava o esgoto diretamente na rua. Mais uma vez se revela, aqui, o confronto entre a “sujeira” atribuída aos nordestinos (mesmo dos ricos) e a “limpeza” atribuída aos sulistas.

Douglas (1976) analisa os “rituais de poluição” ( = que provocam a sujeira) em diversas culturas, levando em conta oposições como pureza/impureza, limpeza/ sujeira e ordem/desordem, defendendo sua integração num todo funcional onde essas contraposições seriam relativizadas. A autora, corroborando fatos que cons- tatamos entre os “gaúchos” no Nordeste, associa a sujeira com a desordem, parte rejeitada num processo de ordenação social:

Como se sabe, a sujeira é, essencialmente, desordem. (...) A sujeira ofende a ordem. Eliminá-la não é um movimento negativo, mas um esforço positivo para organizar o movimento (p. 12). Não há nada de amedrontador ou irracional em nosso evitar a sujeira: é um movimento criativo, um esforço para relacionar forma e função, fazer da experiência uma unidade (p. 13).

“Amedrontadora” pode ser, contudo, a forma com que alguns grupos lidam com essa “eliminação da sujeira” atribuída aos nordestinos e a imposição de uma ordem irrestrita, tecnocrática, onde “forma e função” devem estar perfeita e permanentemente articuladas.

No processo da imposição da ordem, seja na mente ou no mundo exterior, a atitude para com os pedaços e partes rejeitados passa por dois estágios. Primeiro estão, reconhecidamente, fora de lugar, uma ameaça à boa ordem, e assim são considerados desagradáveis e varridos vigorosamente. (...) Este é o estágio em que são perigosos; sua semi-identidade ainda adere-se a eles e a claridade da cena na qual se intrometeram é prejudicada pela sua presença. Mas, um longo processo de pulverização, decomposição e putrefação aguarda qualquer coisa física que tiver sido reconhecida como suja. No fim, qualquer identidade desapareceu. (...) Enquanto a identidade está ausente, o lixo não é perigoso. Também não cria percepções ambíguas, pois pertence, claramente, a um lugar definido, um monte de lixo de uma espécie ou outra. (...) Onde não há diferenciação não há contaminação (DOUGLAS, 1976, p. 194-195).

Ao contrário da sujeira a que se refere a autora, no caso da sujeira que muitos sulistas atribuem aos nordestinos, eles sabem que, por sua abrangência, ela não pode simplesmente ser “varrida” e/ou transformada “num monte de lixo” sem identidade. Seria praticamente impossível generalizar o estigma da sujeira nordestina ao ponto de fazer com que seus portadores produzissem um espaço indiferenciado, cuja identidade, associada a uma configuração confusa, seria dada pela própria falta de identidade, ou seja, de coesão e de ordem. Como diz a autora,

“a sujeira foi criada pela atividade diferenciadora da mente”, sendo portanto “um subproduto da criação da ordem” (p. 195). Assim que é discriminado como espaço da desordem, o espaço nordestino, baiano, se torna também uma ameaça às distinções aparentemente tão claras que moldam o mundo dos valores, das convenções e dos pré-conceitos “gaúchos”.

Uma identidade clara, “decidida”, “dona-de-si” e “limpa”, como a que muitos sulistas pensam difundir, se assemelha à pureza, no sentido de que esta “é ini- miga da mudança, da ambigüidade e do comprometimento” (DOUGLAS, 1976, p. 196). Como a “pureza”, a lógica identitária é uma lógica da não-contradição. Mas no momento da experiência, da prática, como sugere a autora, nada é assim tão simples.

Os gaúchos, por exemplo, que no Sul muitas vezes são tão ciosos de sua pureza, no sentido de autenticidade dos símbolos e mitos que estruturam seu tradicionalismo (“os tradicionalistas estão constantemente preocupados em demarcar fronteiras, separando o puro do impuro”, afirma Oliven, 1993, p. 405), ao se defrontarem com a “sujeira” e a “desordem” nordestina se vêem questionados e as ambigüidades de sua identidade podem rapidamente vir à tona. “Normalmente destrutiva”, diz Douglas (1976, p. 193), a sujeira, como a desordem, precisa ser vista também em sua virtualidade criadora.

Como fica bastante claro nas reações de muitos sulistas classe média no Nordeste, “a reação à sujeira é contínua com outras reações à ambigüidade ou anormalida- de” (DOUGLAS, 1976, p. 15), pois o nordestino é temido justamente pela “ambi- güidade a-normal” de sua “ginga” e de sua liberalidade (muitas vezes mais fábula do que realidade nas representações moldadas pelos “gaúchos”). Estas, no olhar sulista, significariam subversão e desordem num mundo firmemente alicerçado em noções que se pretendem nem um pouco ambíguas de certo e errado, puro e impuro, ordem e desordem.

Douglas decompõe o combate à “sujeira” em duas partes: “cuidado com a higiene e respeito por convenções” (p.19). Poderíamos dizer que o “respeito às convenções”, uma característica atribuída mais aos sulistas do que aos baianos (ou melhor, as convenções baianas seriam mais maleáveis), é associado à “limpeza”, pois a “sujeira” da rua e da casa nordestina, na visão “gaúcha”, é sempre tratada como uma “falta de respeito” (termo muito utilizado pelos sulistas em várias situações); ou seja, falta de respeito às regras convencionadas como o padrão social ideal a ser seguido.

É por ter uma ligação profunda com a pureza e com o “sagrado” (uma expressão também muito freqüente) que o “ser limpo” e o viver num lugar limpo adquire conotações tão fortes no discurso das classes médias sulistas no Nordeste. Embora os padrões de religiosidade sejam muito diversos, é verdade que uma das caracte- rísticas das classes médias do interior da região Sul, geralmente descendentes de italianos e alemães, é a prática católica ou protestante (luterana) muito arraigada. Daí que não se pode negar também o vínculo com uma fundamentação religiosa na distinção limpeza/sujeira que envolve esses grupos. Comumente associar-se- -ia pureza (o “sagrado”) com o limpo e impureza (o “profano”, o “maculado”) com o sujo. Mas, como “o que é limpo em relação a uma coisa pode ser sujo em relação a outra e vice-versa” (DOUGLAS, 1976, p. 21), a ambigüidade também permeia esses atributos.

No Nordeste os parâmetros ditos “europeus” de muitos migrantes acabam se impondo sem as nuanças de que “no Sul nem tudo é tão limpo”. No confronto com a alteridade nordestina forja-se um quadro muito genérico de um modelo de sociedade sulina “limpa”, organizada e disciplinada, ocultando toda e qualquer contradição. Algumas declarações de sulistas, mesmo deixando entrever o precon- ceito, relativizam, entretanto, essa oposição que alia o nordestino à desordem e à sujeira e o sulista à ordem e à limpeza:

...todos dizem que esta cidade é imunda (...). Se você servir de exemplo pra eles, garanto que eles vão aprender, porque o baiano não é acostumado à limpeza e de repente o gaúcho vem pra cá e em vez de ensinar, critica, mas também não faz. O gaúcho também não faz. Se olhar a quantidade nesses bairros gaúchos, o lixo está dessa altura, lá em cima. (empresário sulista)

O pessoal mesmo, a sujeira da cidade, era tudo estranho pra gente. (...) Isso aqui é... o povo não ajuda. O prefeito, querem fazer, ajudar na limpeza, tudo, mas o povo não ajuda. (...) ...e os sulistas quase entraram no ritmo dos baianos (...) tem baianos que não querem ver a sujeira mesmo, mas tem outros que parece que não vivem sem aquilo. (dona-de-casa, moradora do bairro dos Gaúchos)

Douglas (1976) destaca a natureza contraditória da desordem, que ao mesmo tempo que “estraga o padrão”, fornece o material para construí-lo, tem um po- tencial, significando ao mesmo tempo perigo e poder:

Admitindo-se que a desordem estraga o padrão, ela fornece os materiais do padrão. A ordem implica a restrição; (...) uma limitada seleção foi feita e de todas as possíveis relações foi usado um conjunto limitado. Assim, a desordem por implicação é ilimitada, nenhum padrão é realizado nela, mas é indefinido seu potencial para padronização. Daí porque, embora procuremos criar ordem, nós simplesmente não condenamos a desordem. Reconhecemos que ela é nociva

para os modelos existentes, como também que tem potencialidade. Simboliza tanto perigo quanto poder. O ritual reconhece a potência da desordem. (p. 117).

Machado (1993) corrobora esta assertiva:

Se é verdade que a ordem/organização foi postulada como necessária, em prin- cípio para reduzir o dispêndio de energia, a ideologia econômica e tecnocrática transformou em resíduo do irracional a existência de conflitos e os riscos de instabilidade. Na perspectiva dos sistemas dinâmicos complexos, no entanto, ordem e desordem ocorrem simultaneamente, e o não-equilíbrio pode gerar efeitos construtivos na medida em que os sistemas nessa situação podem transformar em fator de organização aquilo que se afigurava, de início, como “informação sem significado” ou “desordem” (p. 86).

Cabe assim, portanto, estimular o diálogo entre sulistas e nordestinos, a fim de que a “descoberta da desordem” signifique a predisposição para reavaliações e mudanças, um novo rearranjo socioespacial no rumo de uma sociedade capaz de enfrentar ao mesmo tempo os riscos perversos da desordem e o conservadorismo que a sobrevalorização da ordem acaba sempre promovendo.

Como veremos no próximo item, a preservação da ordem, num sentido mais explicitamente político, em escalas mais amplas do que as do espaço público- -privado cotidiano, se encontra muito arraigada também na sociedade nordestina, colocando por terra não só o estigma do sulista moralmente conservador x baiano liberal como o do sulista politicamente mais democrático x baiano conservador.