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Desvelando o contexto sócio-histórico em sua interconexão com a loucura

CAPÍTULO 6 METODOLOGIA DA ANÁLISE:

6.1 Sentidos da loucura: entre o velho e o novo no caminhar da assistência em saúde mental

6.1.1 Desvelando o contexto sócio-histórico em sua interconexão com a loucura

Fazendo um giro na contramão da história oficial circulante sobre a cidade em articulação com a dimensão da loucura e do lugar do louco na cidade, trazemos a história contada por historiadores comprometidos em relatar “a história não contada”, descortinando a história oficial veiculada e trazendo à cena fatos contextualizados, que cumprem a função de produzir reflexão e consciência sobre ideologias e discursos cristalizados

que bloqueiam as possibilidades de se implantar e consolidar, de fato, uma rede de atenção psicossocial nos moldes do proposto em lei.

Tomamos o município de Maringá para ilustrar como, para cumprir uma lei, o processo de estruturação de uma rede de serviços substitutiva ao hospital psiquiátrico é extremamente complexo, pois está estritamente imbricado, entrelaçado com as especificidades da história local e dos ideários produzidos sobre a loucura neste território, os quais, atendendo aos anseios da classe dominante e do poder local, determinam os limites em que tais mudanças podem se operar.

Maringá foi uma cidade projetada no contexto da modernização e da mais longa experiência liberal do país, fazendo valer a utopia desenvolvimentista amplamente veiculada em todo o território nacional pelo ambicioso Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek (1956- 1961), que produzia certa euforia ideológica, centrada na ideia de um breve futuro glorioso, sintetizado na frase “50 em 5”.

Corroborando essa ideia, Tomazi (1997) afirma que o Norte do Paraná, seguindo a linha do modelo progressista de urbanização, distinguiu-se pelas representações do progresso, da civilização, da modernidade, de uma colonização racional e de uma ocupação planejada e pacífica, de riqueza e pioneirismo.

Assim, a cidade de Maringá é construída seguindo rigorosamente os traçados do seu planejamento e alinhada a esse ideal do liberalismo vigente da “ordem e do progresso”.

Figura 9 - Vista parcial da cidade de Maringá.

Segundo Campos (2001), Maringá, fundada em 1947 e emancipada em 1951, traduz a inspiração de Le Corbusier (cidade radiosa) e Ebenezer Howard (cidade-jardim), e foi planejada pelo engenheiro Jorge Manuel Macedo de acordo com a mais avançada concepção de cidade existente na época. Foi planejada para ser bela e pensada para os ricos, portanto foi excludente desde seus primeiros traçados, ao definir rigorosamente como e por quem cada espaço seria habitado. Afirma o autor:

[...] Incorporando a ideologia que estandardizava a ordem e o progresso, obedecendo às funcionalidades que buscavam homogeneizar e racionalizar seus habitantes, a cidade de Maringá, experimentou um ordenamento de espacialidade urbana, a qual traduzia a máxima que sempre acompanhou e a qualificava como uma cidade de futuro promissor. Dessa forma os novos valores segmentados pela ideia de trabalho racional, foram adotados pela elite local, como instrumentos formadores do novo homem, adequado aos pré-requisitos impostos pela modernização, qualificação profissional e mentalidades empreendedoras (CAMPOS, 2001, p. 18).

Em todos os registros da história oficial de Maringá se destaca o papel da Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, uma empresa privada, como a grande empreendedora, responsável por comercializar as terras da região, construir estradas e implantar núcleos urbanos e criar a figura do pioneiro, mas se reportando apenas à figura dos migrantes

abastados, proprietários de bens, ocupantes de cargos políticos ou administrativos, enquanto os migrantes compostos por trabalhadores rurais que, expulsos do campo, vinham para a cidade, os nordestinos retirantes e os que vinham em busca do trabalho foram apagados da memória “artificial” circulante.

Segundo Tomazi (1989), a função deste mito foi a de internalizar valores e atitudes que visavam à manutenção de uma estrutura social desigual e de uma estratégia de poder sempre se referindo ao passado.

Também Leal (2011), ao fazer uma análise crítica da história veiculada sobre a cidade, chama a atenção para o discurso ideológico que impera nas narrativas históricas do município, as quais apresentam o trinômio café/Companhia Melhoramentos/pioneiro como as dimensões que resumem toda a história local. Mostra o autor que as narrativas construídas levam a pensar que a Companhia Melhoramentos Norte do Paraná foi a formadora e indutora deste empreendimento chamado Maringá, existindo quase um “endeusamento”, com bajulação e exaltação da iniciativa privada e o tino empresarial dos grandes pioneiros, enquanto a importante participação da instância pública não aparece nestes registros, e quando aparece, é como estorvo ou impedimento à realização da iniciativa privada.

Segundo se relata, para empreender e construir o projeto “Maringá” a CMNP adquiriu as terras dos posseiros, e por interesses imobiliários e especulativos, desenvolveu uma intensa propaganda com o slogan “certeza de lucro e garantia de propriedade privada”, vendendo essas terras para ricos proprietários dos estados de São Paulo, Minas e Paraná, os quais se instalaram na cidade investindo “todos os seus bens” na construção deste “Eldorado” e “juntamente com os políticos e trabalhadores ‘dignos’”, constituíram-se como a elite local, sustentando o ideário da “ordem e do progresso”.

Acompanhando este movimento, também aportavam à cidade homens e mulheres que buscam emprego ou perseguiam o sonho de dias melhores. Assim a cidade, em intenso desbravamento, foi recebendo uma concentração urbana que trouxe, além de implicações no tocante à falta de estrutura, uma rápida proliferação de bolsões de pobreza.

Campos (2001) comenta que uma diversidade de personagens passou a figurar na paisagem da cidade, distante do perfil esperado pela elite local, que se intitulava defensora da ordem moral e dos bons costumes da “população possuidora de hábitos regulares e de uma vida digna” e considerava que a presença da população pauperizada ameaçava o progresso e a ordem estipulada pelos mandatários locais.

Na análise de Caniatto (2008), por este motivo a elite gestora deste “Eldorado” insistiu em políticas higienizadoras que encontraram respaldo na imprensa local, a qual passou a veicular artigos e matérias de primeira página afirmando que a “bela e pujante” cidade do Norte Paranaense estava sendo invadida por “figuras incomuns”, pessoas que, em sua concepção, não estavam aptas a habitar os espaços desse imaginário social.

Campos (2001) conta que foram engendradas “campanhas de moralização” e uma “operação limpeza”. Esta última atingiu de forma maciça a classe trabalhadora, supostamente desqualificada para o trabalho urbano. Alguns aspectos dessa ideologia societária foram divulgados no artigo “Ordem na Polícia: operação limpeza”, publicado no “O Jornal de Maringá”:

[...] devido a certa indulgência por parte dos responsáveis pelos respectivos setores, os maus elementos estão proliferando na cidade, o que está em desacordo com a moralidade e os costumes que se propôs a se manter e se manterá a qualquer custo. Assim, já se deu início à verdadeira 'blitz' policial, com a qual, enceta a 'operação limpeza' no propósito de sanear, de uma vez por todas, e na medida possível o ambiente citado. Mulheres de baixo mundo, vadios, ébrios, desordeiros, 'gatos oportunistas', mendigos profissionais, menores abandonados, delinquentes juvenis, playboys e playgirls, enfim desajustados de toda ordem vão estar na mira policial, que não vão dar tréguas a essa espécie de gente que só serve para atrapalhar a vida de quem trabalha e desmoralizar a cidade que mais cresce do Brasil (CAMPOS, 2001, p. 318-319).

Como analisa Caniatto (2008), a grande massa de trabalhadores expulsos do campo, do seu meio de sustentação, além de desqualificados para o trabalho urbano, passariam também por certa desqualificação social: enquanto desempregados, desabrigados e desamparados pela sociedade, eram marginalizados e colocados na “mira” para serem extirpados.

Na avaliação feita por Campos (2001, p. 325),

[...] as evidências permitem dizer que não somente o local que surgiu a cidade foi transformado, mas os valores atribuídos ao modelo de urbanização, representado pelo modelo de cidade moderna, higiênica e saudável, contribuíram para o esquadrinhamento de homens e mulheres, os pobres representavam o avesso da norma material anunciada pela CMNP.

O mesmo autor, recorrendo aos historiadores TOMAZZI (1989), MOTA (1996) e GONÇALVES (1996) evidencia que, já naquele momento, existia, por parte das elites locais, reivindicações solicitando a criação de instituições para o confinamento dos “desclassificados” e “desajustados” de toda espécie, que poluíam a imagem da cidade.

Campos (2001) explica que no bojo desta trama se construiu em Maringá, em 1962, um local específico para o “controle” dos “insanos” e “delinquentes”: o Sanatório Maringá. Destacamos. seguindo as publicações da época e o bonde da história, que essa instituição foi criada para abrigar homens e mulheres considerados no discurso oficial como contestadores da ordem, marginais perigosos, invariavelmente desqualificados para o trabalho e a convivência social, pois não conseguiam acessar os valores e práticas considerados ideais pelos padrões da cidade.

Desse modo, o Hospital Psiquiátrico de Maringá, como todos os outros, veio se somar a outras instituições de repressão e controle social destinadas a disciplinar a mão de obra excedente, a mão de obra fabril, a pobreza, a reprodução da raça negra e a ativa e rebelde pretensão do livre-arbítrio humano de desqualificar os valores morais e sociais dominantes no tocante ao padrão de conduta sexual, ao gênero, à opção política e ideológica, etc.

Esses aspectos são fundamentais para se compreender a parceria entre o poder público e o Hospital Psiquiátrico, uma instituição privada que parece ainda ocupar no imaginário social quase um “papel” de “salvador da Pátria”. Nas cenas e em falas avulsas circulantes entre alguns profissionais foram registrados alguns discursos que defendem e justificam o Hospital Psiquiátrico como necessário e como componente indispensável da rede de saúde mental, não podendo ser esquecido, pois, afinal, “é o precursor da

saúde mental no município”. Tanto assim é que em todas as feiras alusivas aos eventos de saúde mental, inclusive, no dia 18 de maio, “Dia Nacional da Luta Antimanicomial”, no dia 10 de outubro, “Dia Nacional de Saúde Mental”, essa instituição participa, com lugar, vez e voz, nos stands, no palco, etc.

Para ilustrar essa parceria, seja por falta de informação seja por manobra de “conformação”, como é público, no dia 24/09/2012, em comemoração dos 50 anos do Hospital Psiquiátrico de Maringá, o prefeito daquela gestão compareceu, abrindo o evento com as seguintes palavras:

Estamos aqui para comemorar os 50 anos de uma das instituições mais respeitadas de Maringá e que é referência no tratamento humanizado para o Paraná, e também, agradecer pelo excelente serviço prestado a comunidade. Considerando que os problemas de saúde mental é um dos que mais cresce no mundo atual, o Hospital Psiquiátrico é uma instituição que deve ser respeitada por cuidar destas pessoas, restabelecendo-lhes a saúde mental. Por isso é uma satisfação muito grande para nós, estarmos aqui para prestigiar este evento (MARINGÁ. Assessoria de Comunicação/PMM, 2012).

Trazendo para a cena fatos e atos como esses, percebemos a profunda imbricação do Hospital Psiquiátrico com o poder municipal e a sintonia com a rede de atenção psicossocial, para mostrar que, ao conviver com uma situação de parceria tão amigável e conciliatória, é muito grande o risco de, gradativamente, trabalhadores e gestores serem cooptados e confundidos quanto ao caminho a ser construído num modelo de atenção psicossocial, concebendo que esse modelo pode, sim, adaptar-se ao modelo manicomial.

6.1.2 Ressonâncias nos saberes/fazeres dos trabalhadores: em