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CAPÍTULO 2 MÉTODO: APREENSÃO DAS DIMENSÕES SUBJETIVAS DA REALIDADE

3.3 O trabalho prescrito: o plano do aparente

O trabalho prescrito, entendido aqui como aqueles aspectos que são predefinidos e referem-se às sua características particulares, vinculados a regras e objetivos e à descrição das tarefas, fixados pela organização de trabalho. Deparo-me com a ausência dessa prescrições, parecendo existir muito mais um acordo e uma gestão “improvisada” no dia a dia, na organização das atividade, que são combinadas no espaço das reuniões de equipe ou na informalidade entre os profissionais; contudo, naquele momento, no CAPS não existia nenhuma informação impressa, ou em arquivos on line, sobre o regulamento deste CAPS, com o conjunto de suas atribuições.

Como explicada por uma técnica, esta falta de informações se deve à própria história da implantação do CAPS II em Maringá. Segundo ela, como esse serviço sempre funcionou como extensão do CISAM, “a sensação que dá é que efetivamente o CAPS nunca existiu, sempre funcionou como um apêndice do CISAM, dividindo a mesma coordenação, a verba, os recursos”. E complementou, com muita naturalidade: “Essas informações que precisa estão no CISAM, pois toda a história do CAPS está lá”.

Indago então: que invisibilidade é essa? Que dependência é essa? O CAPS está habilitado há oito anos, então por que essa sensação de “não existência”? Por que tal dependência existe? Por que não existe uma luta e um apreço dos trabalhadores do CAPS por reescrever essa história? Aparentemente existe muita desmotivação, desvalorização, desqualificação, e certo imobilismo por parte de alguns trabalhadores. Por quê?

Sigo firme neste propósito e vou atrás da história do CAPS no CISAM. Fui muito bem recebida e as informações existentes foram colocadas à minha disposição: a monografia28 de especialização da coordenadora do CISAM, que trata do percurso da Saúde Mental no município até o período 2000 e o “ Manual do CAPS Canção”. Em linhas gerais as informações e descrições do Manual do CAPS dessa CAPS, reproduz, com poucas adequações e especificidades, as mesmas informações do Manual do CAPS do Ministério da Saúde.

28 SILVA, A. M. P. da. Serviço Municipal de Saúde Mental de Maringá: considerações e retrospectiva histórica. 2000. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização)-Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2000.

O que veio à tona neste momento foi o profundo grau de dependência, de controle ou de indiferenciação entre o CAPS e o CISAM, de modo que o cartão-ponto até aquela data (maio/2012) ainda era mantido no CISAM29, assim como a avaliação de desempenho30 dos trabalhadores do CAPS e a reunião com familiares31, que aconteciam nas dependências do CISAM. Além disso, por causa de alguns problemas da equipe, alguns trabalhadores se reportavam diretamente a coordenação do CISAM, não reconhecendo a coordenação do CAPS. Quem mantém tal dependência?

Conquanto eu não esteja aqui tratando de uma análise institucional, citar esses aspectos e correlacioná-los com meu interesse de pesquisa implica em entender como se dão as relações de trabalho neste espaço, quais implicações para os trabalhadores e para a construção deste lugar chamado Centro de Atenção Psicossocial. A impressão que passa é que no interior das relações se trava uma luta desigual, em que uns lutam para manter a dependência para com o CISAM e outros querem avançar no projeto de construir o CAPS, mas são, de alguma maneira, “atados” nestes meandros, que impossibilitam a organização do trabalho e o avanço do serviço, tal como foi pensado.

Mantenho as impressões em suspenso e volto-me para a leitura manual. Tomo algumas questões centrais (papel/função do CAPS) como um primeiro roteiro de investigação e observação na comparação entre o prescrito e o real, observando na prática do serviço lacunas e descompassos, com o cuidado de não cair numa posição de crítica “paralisante”, mas ir lendo junto com os trabalhadores, indagando e aprendendo sobre este lugar e sobre o que é trabalhar neste contexto, e ainda quais as possibilidades de escrever uma nova história sobre o CAPS.

Do prescrito sobre o CAPS, encontrei as informações a seguir, que pouco difere do manual do CAPS do Ministério da Saúde.

29 Como a distância é em torno de 1 quilometro e não há transporte, os trabalhadores têm que se deslocar a pé para “bater o ponto”.

30 Processo avaliado como muito negativo, por se resumir a aspectos estritamente quantitativo e despertar animosidade, rivalidade e um processo destrutivo na equipe.

31 As reuniões com familiares eram realizadas uma vez ao mês, com participação média de 3% dos familiares, e a partir de janeiro de 2013 passaram a ser realizadas no CAPS, no formato de uma reunião mais informal, a qual os profissionais chamam de “chá com as famílias”, uma vez ao mês, ainda com pouca adesão.

O CAPS II funciona durante o período diurno, das oito às dezoito horas, e atende atualmente, em média, 170 usuários/mês, em regime semi-intensivo e intensivo. A equipe é constituída de nove profissionais de nível universitário (quatro enfermeiros, dois psicólogos, um assistente social, dois terapeutas ocupacionais) e cinco não universitários (dois auxiliares de serviços gerais, dois técnicos administrativos e um motorista). Vale destacar que o CAPS tem vago o cargo de médico psiquiatra32, função que é desempenhada por residentes de psiquiatria do curso de medicina da Universidade Estadual de Maringá, que realizam consultas um vez por semana no CAPS.

Todos os profissionais são contratados mediante concurso público - portanto são estatutários -, e trabalham em um regime de seis horas diárias, de segunda a sexta-feira, no turno manhã ou tarde, exceto as zeladoras e o motorista, que cumprem oito horas diárias.

As atribuições dos profissionais são as mesmas descritas no Manual do CAPS, proposto pela divisão de Saúde Mental do Ministério da Saúde.

A demanda é adulta, havendo usuários com transtornos mentais secundários ou doenças orgânicas, transtornos psicóticos, do humor ou da personalidade, além de retardo mental, psicoses e neuroses graves. Busca-se amenizar e tratar as crises para que estas pessoas possam recuperar sua autonomia e se reinserir nas atividades cotidianas.

Pelo que está descrito no manual:

[...] O CAPS trabalha bastante articulado com a rede de serviços da região, pois têm a função de dar suporte e supervisão à rede básica também, além de envolver-se em ações intersetoriais - com a educação, trabalho, esporte, cultura, lazer, etc. - na busca de reinserção dos seus membros em todas as áreas da vida cotidiana [...]33.

32 Nos três últimos concursos não tiveram candidatos inscritos.

33 Essa reprodução do manual do CAPS/Brasil/MS, é apontada como um ideal, sendo que até aquele momento CAPS funcionava “para dentro de si” no cuidado diário com o usuário, enfrentando muitas dificuldades na articulação com a rede e com a comunidade no espaço da intersetorialidade.

Figura 2 - Fluxograma das redes de contato e encaminhamento do CAPS Canção.

Esse fluxo de atendimento ainda está em fase de implantação, enfrentando muita dificuldade de comunicação entre os serviços, de modo que cada um funciona de forma isolada e independente. Segundo relato dos profissionais, existe ainda muita falta de informação que circule entre os profissionais que compõem os diferentes serviços e sobre o próprio CAPS, sendo frequentes equívocos nos encaminhamentos por desconhecimento do serviço. Destacamos também que o relacionamento do CAPS com as RTs se resume no fluxo de atendimento normal dos usuários, mas hierárquica e administrativamente as RTs estão diretamente subordinadas ao CISAM.

As ações desenvolvidas pelo CAPS que constam no manual são as seguintes: consultas de psiquiatria individual. atendimentos de psicologia individual e grupal; atendimento de enfermagem individual e grupal; dispensação de medicamentos (farmácia do CISAM); oficinas terapêuticas (horta, jardinagem, pintura, bordado, découpage, beleza, cozinha terapêutica e outros); atendimento de terapia ocupacional individual e grupal; grupos informativos; grupos de orientação a familiares; atividades culturais externas (passeios, teatros, cinema, exposições, etc.); visita domiciliares; reuniões da

equipe (reunião administrativa, discussão de plano terapêutico e atualização teórica/rotina); orientação ao PSF e outros.

O fluxograma de atendimento no CAPS segue aos seguintes procedimentos:

 Recepção se refere ao momento em que o usuário ou familiar entra em contato com o CAPS para agendar o atendimento, que é feito conforme a disponibilidade de horário e a agenda dos técnicos.

 Abordagem e acolhimento – A abordagem consiste numa entrevista estruturada durante a qual o profissional coletará dados de vida do usuário como condições físicas e psíquicas, constituição familiar, relacionamento familiar e social, tratamentos já realizados, escolaridade, situação socioeconômica, medicação em uso e outros dados. A abordagem será realizada por um profissional graduado da equipe técnica. O acolhimento consiste em apresentar ao usuário e seu familiar o serviço e seu funcionamento, as características físicas do imóvel, as rotinas e normas do serviço, as oficinas e grupos em andamento e outras informações consideradas necessárias.

Vale destacar que as atividades de abordagem e acolhimento não são distintas. No CAPS investigado funcionam como atividades “sinônimas” e acontecem simultaneamente, e também não existe um protocolo a ser seguido, cada técnico segue sua própria orientação: uns só fazem a entrevista, outros apresentam o serviço e outros se limitam a preencher o formulário, sem interagir com o familiar e usuário.

 Plano terapêutico singular: é elaborado na reunião da equipe para discussão de casos, que acontece uma vez por semana, no intervalo do almoço (uma hora), quando os dois turnos se encontram. O técnico que fez a abordagem informa a equipe sobre o caso atendido, e após discutirem as especificidades do caso, do transtorno, define-se a modalidade de atendimento (intensivo, semi- intensivo, não intensivo), em qual oficina ele poderá ser incluído, e

em concordância com usuário e seu familiar, decidem o dia e o horário em que o usuário passará a frequentar o CAPS.

Sobre o planejamento das atividades no CAPS - que funcionam como mais como um roteriro de atividades- estão expostas como no quadro a seguir:

Quadro 1 - Quadro de atividades.

Período 2ª feira 3ª feira 4ª feira 5ª feira 6ª feira

Manhã 8:00 às 12:00 h Café matinal Acolhimento Caminhada Oficina de guardanapo Grupo de mulheres Café matinal Acolhimento Horta Oficina de panificação Matriciamento UBs Café matinal Acolhimento Caminhada Consultas psiquiátricas Oficina musical/grupo Delirius Café matinal Acolhimento Oficina temática Oficina de guardanapo Grupo de homens Café matinal Acolhimento Atividade livre Oficina musical/grupo Delirius Almoço 11:30 as 12:30

Abordagem Reunião dos

Técnicos/discussão de casos

Abordagem Abordagem Reunião

administrativa dos técnicos Tarde 13:00 às 17:00 h Alongamento Oficina de Teatro Matriciamento UBSs Oficina de cinema Oficina de Pintura Atividades dirigidas por estagiários de

enfermagem Relatórios

Alongamento

Grupo operativo com estagiários de Psicologia Relatórios Alongamento Atividades com estagiários de enfermagem Oficina de Pintura Oficina de cinema Relatórios Alongamento Atividades com estagiários de enfermagem Oficina de beleza Oficina de Tear Relatórios Chá com famílias (última 5ª.feira do mês) Assembleia com

usuários (a cada dois meses) Alongamento Oficina de Poesia Atividade livre Relatórios 87

Como exposto, as atividades diárias estão organizadas numa rotina que envolve o café da manhã, acolhimento, oficinas, almoço, descanso, alongamento e oficinas.

Os usuários que chegam circulam pelo CAPS, ou sentam e esperam. O técnico que entra às sete horas prepara o café da manhã. No horário do café todos se põem em fila pra pegar sua xícara de café e uma fatia de pão ou bolo. Depois eles se sentam em círculo na varanda para as atividades de alongamento, que são sempre conduzidas por um técnico, e após essa sessão de alongamento são distribuídas as tarefas do dia. A seguir, o técnico expõe o que tem para ser feito e solicita a participação, que nem sempre é espontânea, é quase sempre induzida. Também nesse momento são feitos os informes gerais e propostas as oficinas do dia; uns já participam cotidianamente dessas oficinas, outros são aleatórios e outros não participam de nenhuma oficina e ficam livres para circular pelo CAPS.

Outras atividades como, por exemplo, passeios, visitas, cinemas no espaço da cidade são feitas, em média, duas vezes ao ano. As assembléias (profissionais, usuários e familiares) ainda são objeto de muita discussão no CAPS, ora acontecem, ora deixam de acontecer, pois não se constitui em uma reivindicação dos usuários e dos familiares, mas muito mais, uma necessidade dos trabalhadores, que entendem que este é instrumento importante de participação e inclusão dos usuários como participantes do serviço e um exercício de cidadania.