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Ressonâncias nos saberes/fazeres dos trabalhadores: em (des)conformidade com a norma

CAPÍTULO 6 METODOLOGIA DA ANÁLISE:

6.1 Sentidos da loucura: entre o velho e o novo no caminhar da assistência em saúde mental

6.1.2 Ressonâncias nos saberes/fazeres dos trabalhadores: em (des)conformidade com a norma

Neste sentido analisamos como uma rede de significados concretos vai sutilmente capturando o próprio pensar de alguns trabalhadores, alguns do CAPS ou de outros espaços em que se discute saúde mental no município investigado, que passam a defender, dentro de um discurso psicossocial, o Hospital Psiquiátrico como componente da rede: “Gente, ainda que houve muitos avanços em termos da reforma psiquiátrica neste

tempo todo, não podemos negar que o HP é necessário. Não dá pra imaginar o funcionamento da rede sem ele. Veja bem, ele é estruturante no funcionamento da nossa rede! Não dá pra questionar esse fato.”; “O CAPS é um equipamento fantástico, mas pra funcionar precisa do HP”; “Não adianta, há uma concordância de que a pessoa em surto só melhora se internada, o que nós podemos dizer?... Dentro de nossas possibilidades, é o caminho que temos, e ainda que não concordemos, sabemos que as pessoas aqui do CAPS que são internadas, voltam totalmente retrocedidas, embotadas, dopadas. Não adianta lutar contra isso, porque essa cultura está incrustada no funcionamento da nossa rede”; “Parece que existe um grupo convencido e que quer provar que o

HP é necessário e sem ele não dá pra ficar... e até nós profissionais, se

não tomarmos cuidado, acabamos acreditando nisso”; “no Estado do Paraná a coisa é diferente: o HP faz parte sim da nossa rede” ; “ Vocês da universidade fazem ideologia, nós que trabalhamos aqui no dia a dia é que sabemos o quanto o HP é necessário.

É o risco de reproduzir um discurso que vai gradativamente alienando o trabalhador do seu próprio ”comprometimento” como sujeito no processo de desconstrução do aparato manicomial, o que expressa essa fala: “Sou contra o HP. ... mas aqui em Maringá houve muito mudança, o HP está humanizado. Na verdade, não consigo ver muita diferença entre o CAPS e o HP, as atividades são bem semelhantes e o diálogo entre essas duas instituições é necessário”.

O que podemos perceber é que a cultura de “cumplicidade” entre a sociedade, o Hospital Psiquiátrico e a gestão municipal, somada à falta de qualquer mobilização social que faça o movimento de resistência ao instituído, favorece a perpetuação da dimensão subjetiva da loucura e do lugar do “louco” no município, a qual, por sua vez, somada à formação precária dos trabalhadores em políticas públicas nas diferentes graduações e especialidades em saúde, à falta de capacitação e o despreparo profissional dentro de uma abordagem de atenção psicossocial, empurra alguns trabalhadores para um embotamento de consciência sobre seu fazer dentro de um CAPS, fechando os horizontes e levando muitos a perder a capacidade de luta e a reproduzir um

discurso que justifica a lógica manicomial: “Não podemos ignorar a especificidade do doente mental, ele dá trabalho, exige um outro tipo de atendimento. Então eu até compreendo a resistência dos hospitais gerais ...É difícil pensar neles internados em leitos comuns, não cabe, não dá pra imaginar um doente mental dividindo um quarto com hipertenso, por exemplo”; “Sei que eles precisam ser incluídos, mas a inclusão tem seus limites, não dá pra viver de ideologia. Fazer lei talvez seja o mais fácil, mas a prática revela que não adianta ficarmos pintando de cor de rosa, uma tela que é negra”.

Essas falas denotam as acepções implícitas sobre a loucura, centradas na doença, no transtorno mental que precisa ser tratado de modo diferenciado, dentro de um outro contexto, separado das “doenças normais.

Discursos como esses se mesclam entre os profissionais que atuam nos CAPSs, numa defesa declarada ou sutil do HP, portanto, são esses mesmos significados que, descontextualizados dos ideários da reforma psiquiátrica, vão (des)orientar a postura do profissional em relação ao doente mental. Esse profissional vai expressar, tanto pela fala quanto pelos seus fazeres, sua concepção sobre a loucura e o modo como deve ser tratada.

Ilustramos com as falas a seguir como tal concepção se expressa em comentários casuais pronunciados e em tom “suave” e de brincadeira, mas um tom de ameaça, revelando de que lado está o poder: “F., você tá muito bocudinho, já, já te internamos”; “O único jeito pra aquele ali é a internação”; “Eu fico me segurando pra não chamar o SAMU, porque olha o jeito dele, ele precisa ser internado”; Ah, meu Deus, só a doutora pra dar um jeito em você. O jeito é aumentar a dose do medicamento pra te aquietar”. Outras vozes mostram descrença na capacidade dos usuários do CAPS: “Aqui me sinto trabalhando numa creche de adultos. Essas pessoas não têm cura, aqui a gente cuida, digamos, pra manter a vida deles. Que projetos essas pessoas podem ter? Não sabem nem o que

pensam nem o que falam, ainda falam que eles têm direito de ter filhos. Como? Tá provado que só vão gerar doentes mentais.”48

Como entende Daúd Junior,

“[...] há uma captura e proscrição permanentes de sujeitos e de seus discursos, cuja reelaboração pela institucionalidade interfere na intencionalidade de quem fala, ou seja, a acomodação pela captura entre o sujeito e a instituição desarticula o caráter transformador do discurso e da prática desde o próprio sujeito[...].” (2011, p. 94).

Falar nos sentidos da loucura implica em desvelar aspectos que evidenciam as incongruências e contradições que impõem aos trabalhadores o papel de reprodutores de relações sociais que querem transformar. Assim se mesclam no cotidiano do CAPS, como pudemos observar nas narrativas do cotidiano (Capítulo 6º), saberes/fazeres que expressam a enorme criatividade inventividade de alguns profissionais que têm clareza quanto à “sua missão” no novo cenário da saúde mental, e em contrapartida, neste mesmo contexto se convive com profissionais que, tendo toda sua formação de trabalho em saúde mental dentro do HP, tanto reproduzem, sem perceber, e concebem o CAPS como um extensão do HP - não somente enquanto espaço físico, mas também enquanto espaço de exercício de seus saberes/fazeres, prosseguem no mesmo continuum na percepção e no trato com a loucura -, quanto capturam, nessa corrente reprodutiva, aqueles profissionais que chegam ao CAPS sem nenhuma capacitação sobre a reforma psiquiátrica. Isto produz uma desarticulação do coletivo, bloqueando as possibilidades de transformação.

Por outro lado, na contramão desta “subjetividade manicomial”, há um grupo de trabalhadores que combate e resiste a essa concepção, por entender de modo diferenciado seus fazeres, constituindo outros sentidos para seu trabalho. Uma fala expressa muito bem o que esses trabalhadores entendem por “estar na contramão”: “Aqui subimos o rio

sem remo; aliás, os remos são nossas próprias mãos”.

48 Isso é Eugenismo como referido pela organizadora Maria Lúcia Boarini na obra Raça, Higiene Social e Nação Forte. Maringá: Eduem, 2011. 252p.

Isto significa que há um árduo trabalho para sustentar, tanto no plano do discurso quanto no das práticas, os pressupostos da atenção psicossocial. Essa sustentação passa por um alto nível de comprometimento, perseverança e desgaste do profissional engajado nesta luta para tentar imprimir nas mentes e nos corações um novo olhar sobre essas pessoas em profundo sofrimento psíquico e um novo modo de construir processos de trabalho que rompam com a lógica manicomial.

Nesse processo eles repetem, como num ritornelo, as mesmas “notas” para tentar engatar alguma reflexão: “Pessoal, temos que entender que o CAPS é outro lugar. Aqui nós precisamos esquecer a rotina rígida que é característica do HP. Às vezes fico tão chateada, porque vejo que no jeito de olhar, de falar, muitas vezes estamos expressando autoridade, impondo, demarcando que eles, como incapazes, têm que se submeter a nós. Veja, o CAPS é um espaço em primeiro lugar de atenção e acolhimento, de escuta, de atenção, de vínculo, de resgate da cidadania; se não tivermos isso, como vamos resgatar essa pessoa, ensiná-las a desejar, a querer? Elas foram tão despossuídas de si, que não sabem nem sequer ousar querer. Contudo como trazer isso pra prática, como fazer isso acontecer, se não contamos com uma equipe que não pensa desta maneira? Se este processo não começar por nós, ...é difícil, porque a sociedade envolve o mundo lá fora e nós mesmos, e se nós, que somos profissionais de saúde mental, não tivermos clareza do que fazemos e para onde queremos remar, como que as pessoas lá fora vão mudar essa concepção que reduz a pessoa em sofrimento psíquico a uma doença?”

Queremos ainda retomar a frase acima “Aqui subimos o rio sem remo; aliás, os remos são nossas próprias mãos”, para mostrar que

profissionais como esses mantêm uma atitude de reflexão neste processo de construir trabalho no CAPS, na luta por resistir a um agir manicomial e criar outras possibilidades: “Professora, vem cá...Olhe bem! O que você vê? Alguns participam de oficinas, outros se destacam. É incrível acompanhar com o pouco que fazemos o desenvolvimento deles, mas, aqui também temos pessoas, como aquela que fica o dia inteiro perambulando sem sentido, porque não se encaixam naquilo que

oferecemos. Percebe? ... Ainda que queiramos negar, existe um perfi, que define uma preferência, se é paciente do HP e do CAPS, por exemplo: se a pessoa que passa pela abordagem demonstrar que sabe fazer coisas, isto é, é ativo, pode se encaixar nas oficinas que oferecemos, ele é do CAPS; contudo, se está bastante comprometido, uma família complicada que não pode trazer... que a gente fareja que vai dar problemas, existe quase que uma concordância de que essa pessoa não é paciente pro CAPS. Agora eu me pergunto: não é um centro de atenção psicossocial? Meu Deus! Que atenção estamos dando para essas pessoas? Que inclusão estamos fazendo? Incluímos nas nossas oficinas aqueles que não dão trabalho, têm habilidades, etc., e esses que, no seu sofrimento, não conseguem participar de nada? Nós os largamos ele de lado, porque ele é paciente do HP?. Enfim eu me ponho a pensar: que atenção é essa?

Então, na contramão existem algumas vozes que ressoam para pensar o sentido do serviço, das suas ações, tentando fugir de algumas questões que vão produzindo aquilo que Daúd Junior (2011) chama de capsização, na sua tênue separação com o manicômio, mesclando ações que revelam como driblam, na prática, as normas que ainda sustentam o CAPS como um lugar de segregação.

Por exemplo, explicam como fora do muro e do portão trancado com corrente e cadeado esse serviço funciona na modalidade porta aberta: “Ainda que tenhamos muitas dificuldades, este serviço é porta aberta, mesmo tendo um cadeado no portão, porque ser porta aberta significa ser atendido quando busca atendimento, e isso nós fazemos. Ser porta aberta significa acolher a pessoa tal como ela está, em seu delírio. Então o CAPS precisa ser este lugar onde o paciente vai ser respeitado na sua diferença; vai ser ouvido, vai aprender a querer, porque a sociedade, os aparatos do poder foram tirando dessas pessoas tudo; elas perderam até mesmo o direito de viver, de ser gente, e foram transformadas só numa doença. E a gente faz o possível para implantar isso aqui dentro. Mas é uma luta solitária e difícil, porque cada um faz à sua maneira, além de nesta cidade reinar uma política tão contrária a tudo isso, que aqui, se nós queremos construir um trabalho que de fato valorize a pessoa em

sofrimento, temos que ir na contramão, ir driblando e inventando, sob a reprovação de alguns colegas, sem condições materiais, financeiras, sem apoio da gestão”.

Observa-se que ao significar o CAPS, mais do que uma abreviatura, como um centro de atenção psicossocial, esse grupo de trabalhadoras imprime um outro sentido a seus fazeres, entendendo a atenção, o acolhimento, a escuta e o respeito como atividades que criam uma outra instância de significação para suas práticas.

Embora contemos com profissionais com uma visão clara do modelo de atenção psicossocial, que os leva a sustentar uma crítica ao aparato manicomial, torna-se importante demarcar que a luta diária travada por esses profissionais é atravessada por um discurso em que se concebe a loucura como doença, como anormalidade, e o doente mental como incapaz, como desqualificado para a vida social.

Nos eventos alusivos à saúde mental realizados na cidade as autoridades, em discursos acalorados e cheios de “boas intenções”, afirmam: “A prioridade do nosso governo é a saúde mental, tanto que Maringá é apontado como centro de excelência, e vamos nos empenhar em tornar isso, cada vez mais, uma realidade no nosso município, pelo trabalho que desenvolveremos no nosso Centro integrado de Saúde Mental, que será um modelo para o Paraná e para o Brasil” (discurso do secretário municipal da Saúde, proferido em 18/05/2012). Essas autoridades tentam mostrar um tom de compatibilidade com a reforma psiquiátrica, mas ao olharmos para os blocos de concreto que se erguem a cada dia, dando forma ao que será esse “centro de excelência”, os paradoxos são visíveis a olho nu. Realizam no plano do concreto o modo como o município pensou, planejou e definiu os equipamentos de saúde mental e o lugar que a loucura e as pessoas em sofrimento psíquico devem ocupar no espaço da cidade, como veremos a seguir.

6.1.3 A materialização da dimensão subjetiva da loucura no espaço