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A materialização da dimensão subjetiva da loucura no espaço urbano: a reprodução do não-lugar do louco no espaço da cidade

CAPÍTULO 6 METODOLOGIA DA ANÁLISE:

6.1 Sentidos da loucura: entre o velho e o novo no caminhar da assistência em saúde mental

6.1.3 A materialização da dimensão subjetiva da loucura no espaço urbano: a reprodução do não-lugar do louco no espaço da cidade

Considerando a indissociabilidade entre objetividade e subjetividade na abordagem sócio-histórica, demonstramos como o plano da objetividade expressa a subjetividade, e vice-versa, pela análise das próprias condições materiais que se apresentam. Utilizamos como argumento para essa análise como o campo dos significados se inscreve no tecido social, determinando os sentidos para muitas ações.

Embora o município de Maringá apareça acima da média nacional de 7,6 (BRASIL, Ministério da Saúde, 2012) e seja referida como centro de referência em saúde mental do estado, destacando-se por seus projetos na captação de recursos financeiros investidos na implantação dos serviços. Na realidade, o que isso significa?

Pudemos constatar, nos muitos discursos e ações desenvolvidas, que a visão ainda predominante no município, entre os gestores e donos do poder, é uma visão manicomial. Tanto assim é que, contrariando os princípios da Reforma Psiquiátrica, da lógica do território e dos princípios de inclusão e de cidadania, os CAPSs que hoje ocupam lugares diversos na cidade, serão todos realocados e reunidos em um único espaço, em um Centro integrado de Saúde Mental (CISM) (Figura 8, p. 148).

Os prédios estão em fase de construção e serão ocupados, respectivamente, pelo CISAM, CAPS II, CAPS ad e CAPSi49, um ao lado do outro, sendo que o e os demais serão inaugurados até julho de 2014.

Há uma defesa acalorada, entre alguns profissionais que integram a rede, os quais, talvez pela imensa complexidade com que convivem no seu dia a dia, somado ao sofrimento diante de tantos impasses, pela sobrecarga de trabalho, pela pressão por respostas e tantas outras razões vão, gradativamente, sendo assujeitados pelo sistema e perdendo sua capacidade de crítica. De modo que, à menor indagação sobre esse “novo” lugar para “os loucos e a loucura”, a pronta defesa se manifesta: “Professora, você não sabe o que passamos, dependendo de prédios

alugados, sem acomodações próprias. Agora teremos sede própria e espaço para as atividades que precisam ser realizadas e isso não vai inviabilizar o trabalho dos CAPSs, mas viabilizar a integração entre os vários serviços”. “Os problemas que enfrentamos em cada CAPS serão os mesmos que teremos lá, a distância não será problema”; “Lá poderemos operacionalizar o conceito de rede”.

Tais afirmações causam estranheza e inquietação, sentimentos que poderiam nos levar a “taxar” tais profissionais que partem em defesa deste centro como “manicomiais”; mas é importante percebermos quão importante é o papel desempenhado pela dimensão da loucura neste território para a produção de subjetividades dos próprios trabalhadores. A isto se associa ainda a precariedade da formação profissional, que produz, por falta de crítica, profissionais sem qualquer possibilidade de resistir e fazer enfrentamentos em tais contextos.

O que desejamos destacar é que este projeto, além de expressar, em todas as suas dimensões, a concepção da loucura predominante no município, denota que, na contramão da orientação da Política Nacional de Saúde Mental, reproduz-se a mesma política higienista - caracterizada pela lógica de exclusão - de século atrás.

Prosseguindo nesta reflexão, observemos atentamente algumas “curiosidades” sobre este CISM:

 Está localizado no bairro chamado Santa Felicidade, um dos mais pobres da cidade e afamado como bairro violento e ponto de tráfico de drogas. Deste lugar se visualiza a cidade ao longe. O “muro” branco delimita o espaço em que estão sendo construídos os prédios.

Figura 10 - Perspectiva do canteiro de obras do CSM em relação à cidade.

 Está localizado no extremo da Zona Sul da cidade, sendo que a maior parte da população maringaense reside na Zona Norte, motivo pelo qual é nesta zona que se concentra o maior número de unidades básicas, conforme mostra o mapa a seguir.

Figura 11 - Mapa de Maringá, com a localização das 28 UBS e o CISM.  A justificativa para a escolha do lugar é a especulação

imobiliária, pois a área escolhida para a construção do CISM é um terreno de fundo de vale, portanto, de baixo valor especulativo - como mostra a figura a abaixo:

Figura 12 - Vista aérea da localização do terreno ocupado pelo CISM.

 A justificativa dos políticos, segundo depoimento de alguns trabalhadores: “é que este local foi escolhido para beneficiar os pobres, visto que este é o bairro referido como o mais pobre da cidade, e por esta condição, provavelmente, essas pessoas serão as que mais farão uso deste tipo de serviço”. Esse tipo de discurso parece demonstrar uma positividade ao trazer a preocupação com o pobre, e também desvela o equívoco de associar o adoecimento com a vulnerabilidade social em que vivem os supostos “desfavorecidos”.

 Outro motivo alegado, relacionado ao anterior, é que esse lugar foi escolhido para facilitar o acesso àqueles que se utilizam do serviço. Profunda contradição, pois, a maioria da população maringaense reside na Zona Norte da cidade e dependerá do transporte urbano para sua locomoção, quando não há ainda uma política clara sobre a concessão ou não do recurso do “vale transporte” aos usuários dos CAPS.

Assim, são várias as questões postas para se pensar que rumo tomará a “consolidação” da rede de atenção psicossocial neste contexto, em sua especificidade.

Como registramos, nos discursos do cotidiano, as falas de alguns trabalhadores ligados direta ou indiretamente com a saúde mental nos chamaram a atenção ao se referirem a esse Complexo e ao modo como o interpretam: [...] mas vai ser bem melhor assim, porque, com todos os serviços uma ao lado do outro, certamente vai ser mais fácil pensarmos em redes, na integração entre os serviços, então tem o lado bom”; (...) “e não adianta vocês começarem a fazer ideologia (referindo-se à Universidade), porque lá não vai mudar nada, o atendimento vai continuar o mesmo; as mesmas dificuldades que os pacientes têm hoje para chegar ao serviço, serão as mesmas lá”; “(...) ainda que não seja o que é necessário, não há o que fazer, porque são os que mandam que decidem”.

O que significa esse tipo de defesa vinda dos próprios profissionais? Falta de informações/formação mínimas sobre a proposta antimanicomial? Visão psicossocial? Falta de compreensão dos princípios que embasaram a reforma psiquiátrica brasileira? Resiliência? Estratégia de sobrevivência para manutenção do emprego?

Enfim, as questões são muitas, e sem qualquer intenção de culpar o trabalhador, o fato que nos perturba é: se os trabalhadores ocupam papel central no processo de construção no modelo de atenção psicossocial, como lidar com tamanha incompatibilidade?

De outro lado, outros trabalhadores mostram-se desinformados sobre de que lugar ou de quem partiu a ideia deste complexo: “Até hoje não sabemos de quem foi esta determinação de juntar tudo no mesmo lugar e a escolha da localização [...]”.

Com respeito a esta última fala, quando, no discurso do Secretário da Saúde pronunciado no evento comemorativo de 18 de maio - data em que se celebra a luta antimanicomial -, diante da plateia e das autoridades presentes, inclusive do assessor do Ministério da saúde, o CISM foi mencionado como “entidade” que encarna e representa o avanço e a conquista do campo da saúde mental no município, aos trabalhadores presentes foi endereçada a seguinte fala: “Neste complexo os trabalhadores participaram de cada etapa do seu planejamento e do desenho arquitetônico, de modo que não terão direito a qualquer reclamação quanto às novas instalações, pois participaram ativamente de cada etapa do projeto do complexo de saúde mental, definindo como seria cada espaço, a disposição de salas e área externa”.

Não obstante, quando indagados pela pesquisadora sobre o complexo, os trabalhadores responderam unanimemente que “nunca sequer viram a planta deste projeto”. Outras falas se somam: “O curioso, é que tudo isto aqui foi aprovado pelo Conselho Municipal de Saúde!”.

Essas considerações evidenciam os paradoxos e embates presentes neste campo, em que os trabalhadores são colocados no centro dessa trama e solicitados a se posicionar, porém convivem com mecanismos de gestão que os colocam “fora” de qualquer processo decisório, sendo desconsiderados como sujeitos de todo esse processo.

Retomando a questão posta em análise, ou seja, como numa cidade planejada constatamos que o desenho arquitetônico traz não só a delimitação do espaço e do lugar que deve ser ocupado por cada coisa, mas também a determinação do lugar que deve ser ocupado pelas pessoas de acordo com sua classe social e outras especificidades. Ademais, há o agravante de que, se essas pessoas fugirem da “norma” e do “padrão de normalidade”, desvirtuando a imagem da “bela cidade”, como é o caso das pessoas com transtorno mental, elas ficam “sem lugar” no espaço de circulação da cidade.

Desse modo verificamos que as concepções enraizadas sobre a loucura reproduzem, no plano concreto, o lugar do louco, dos insanos e dos drogaditos colocando-os “fora da cidade”, e no plano do simbólico, fica evidenciado o seu “não-lugar”, como aqueles que, “fora da vista”, continuarão esquecidos pela comunidade.

Para complementar a sucessão de eventos, em que se reforça a dimensão subjetiva da loucura, presente em tal contexto, também já foi aprovado pelo Conselho Municipal de Saúde e está incluído no Plano Municipal 2014-2017 (p. 39) um projeto que prevê “Construir o Condomínio Residencial Terapêutico para proporcionar sede própria às Residências Terapêuticas, até 2017” (p. 39), reunindo, assim, todas as residências em um único local, próximo ao CISM.

Que podemos dizer diante de todos esses aspectos trazidos pela análise? Que tanto o CISM quanto o condomínio de RTs - ultrapassando as intenções de Simão Bacamarte na obra “O Alienista”, de Machado de Assis, publicada em 1907, em que, com o apoio das autoridades locais e cientistas, fundou-se a “Casa Verde” como “casa dos loucos” -, parecem ter inspirado em Maringá o mesmo espírito: construir um empreendimento para, distorcendo completamente os princípios da Política Nacional de Saúde mental, construir a “Vila Verde”, a “Vila dos loucos”, e ainda, para quem vê de longe, apontar “Maringá como centro de excelência em saúde mental do Estado do Paraná”.

Ademais, a obra “O Alienista” também nos deixa importantes reflexões, pois o próprio povo começa a questionar o estatuto da loucura, e ao longo do tempo, Simão Bacamarte, ao se deparar cotidianamente

com o universo do que chama “loucura”, adota critérios inversos para caracterizar a loucura, e os loucos passam a ser os leais, os justos, os detentores do poder e os homens honestos, que fazem tudo pelo “bem” do povo.

Tomamos essa comparação para dizer que, apesar de a situação do contexto político e ideológico que constitui a dimensão subjetiva da loucura nesta cidade se apresentar dessa maneira, o caminho que ora se apresenta na análise é que neste contexto a reforma psiquiátrica, enquanto movimento social, ainda não aconteceu, restringindo-se apenas à implantação de CAPSs. A reforma psiquiátrica, enquanto processo social de mudança de paradigmas, ainda é acenada de longe, por conta da profunda implicação da dimensão da loucura presente no contexto social, e naturalizada pelo poder fortemente instituído da iniciativa privada da classe dominante e pelo desenho de cidade planejada, de modo que os problemas da ordem do social, do público, são como que varridos do imaginário de seus habitantes.

Na nossa leitura, a possibilidade acenada para mudança num contexto como esse está intimamente ligado à dimensão sociocultural - segundo nos aponta Amarante (2009) -, como um conjunto amplo de iniciativas para a transformação do imaginário sobre a loucura. Isto inclui trabalhadores, Instituições de ensino, sindicatos, associações, imprensa e outros setores que possam se agregar na luta por esse desmonte institucional, pois a reforma psiquiátrica não significa apenas a superação do hospital psiquiátrico por um novo modelo assistencial, mas pretende ir além dos espaços de tratamento, para implicar toda a sociedade nas questões que dizem respeito à loucura. Para tanto, “é preciso transportar a loucura para fora dos muros institucionais, promovendo mudanças no interior da sociedade, revendo valores e crenças excludentes e estigmatizantes” (AMARANTE, 2003, p. 69).

No conjunto desta análise consideramos que a situação deste município passa necessariamente pela construção de um processo de “desalienação coletiva”, com um amplo programa de divulgação sobre o tema da loucura, informando a população sobre o que temos e o que queremos para que, nesta direção, talvez nasça alguma possibilidade de

mobilização social, que dentre todas outras questões que fazem o povo calar-se, traga também para a discussão pública a saúde mental, já que esta é apontada como uma das cinco prioridades do atual governo.

Da onde surge essa esperança? Do que vimos acontecendo no trabalho em ato e ouvimos de um grupo pequeno de trabalhadores que resistem, que, para além da razão, colocados não no centro do furacão - que é lugar de absoluto silêncio -, mas no gira-gira em todas as direções, lutam em busca de saída de um sistema que valoriza a reprodução, buscando construção de redes - redes de pessoas de fato -, que saiam dos desenhos e formalidades herdados da burocratização das relações.

Destarte, romper com o instituído, com a capsização, com a manicomialização, como expõem alguns trabalhadores ao pensarem a mudança dos CAPS para o CISM, implica visualizar os desafios que se apresentam: “Temos que ter braços elásticos para atravessar os muros e ir pra fora, nos diferentes espaços, com um intenso trabalho com as UBSs, com a comunidade, levar os CAPS pra fora, envolvendo familiares, sociedade, e com ajuda das universidades, dos meios de comunicação precisamos pensar em mudar a cabeça do povo, para que eles nos ajudem a sair deste não-lugar, senão nos tornaremos prisioneiros deste espaço”. Outros argumentam: “Se olharmos para os obstáculos desistimos, pois se hoje não conseguimos sair do CAPS - uma porque não temos condições de trabalho, autonomia e flexibilidade de horário para ir e vir, e outra que parece que criamos, ou foi criado uma lógica de que, como somos porta aberta -, as pessoas têm que vir até nós, se não procuram não é problema nosso. Agora imagine tudo isso naquela distância! Tem que ser utópico mesmo pra continuar”.

Falas como essa criam sentido para prosseguir nessa luta, que hoje ainda é muito solitária e se resume a um grupo pequeno de trabalhadores, mas se a estes se somar um amplo processo de divulgação sobre o que é a reforma psiquiátrica, em diferentes espaços - nas escolas, nas empresas, nas universidades, nos currículos das graduações sobre essa temática - quem sabe, ainda que com todas as amarras da história, consigamos “frear o bonde” e construir outras rotas, e - como nos fala outra trabalhadora - “quem sabe pela pressão externa,

juntando como a conscientização interna”, não consigamos transformar este complexo de saúde mental, numa experiência como de Trieste, na Itália, pela desconstrução de dentro da própria instituição. Sei que isso é um sonho, porque não depende da vontade de alguns, mas sabe, professora, às vezes tenho impressão que se daqui de dentro a gente pudesse contar com algum apoio lá de fora, para começarmos do começo discutindo e infundindo em nós trabalhadores, nos cursos de graduação, os princípios da Reforma Psiquiátrica, quem sabe não conseguiríamos pensar em saídas para a desconstrução do manicômio”.

Como nos ajuda a refletir Fernanda Nicácio, ao pensar o desafio do processo de desinstitucionalização,

(...) é uma ação concreta, cotidiana de trabalhar com o manicômio real, o manicômio imaginário, o sentido paradigmático desta instituição e no interior desta ação produzir novas instituições. Essa forma de agir, no intenso movimento dialético entre o particular e o geral, de trabalhar com a resistência e criar uma possibilidade concreta gera crises, contradições, alianças, encontros e desencontros; não é possível fazer um enquadramento preciso, definido porque mudam as estruturas, o que necessariamente acontece em conjunto com a mudança dos sujeitos e de suas culturas” (NICÁCIO, 1989, p. 92).

Ao nos depararmos com um contexto sócio-histórico profundamente imbricado com a lógica manicomial, constatamos que esses são os desafios postos aos trabalhadores comprometidos com uma visão psicossocial, pois, para romper a distância que separa os “normais” dos “anormais”, legitimada pela sociedade e delimitada pelo espaço urbano, estes terão que ser verdadeiros disparadores de ações que interpenetram o tecido social, irradiando movimentos que criem outros espaços na comunidade

Para concluir este núcleo de análise, destacamos que esta realidade não se constitui uma situação exclusiva do município de Maringá, mas podem subsidiar a produção de reflexões e críticas que levem a reflexão sobre como as políticas públicas, ao passarem pelo crivo dos estados e municípios, tomam contornos diversos, aparências que conformam ou deformam aquilo que foi prenunciado na legislação vigente - neste caso, a Lei nº. 10.216/2001 - e que vem, nas práticas dos serviços, produzir

profundas contradições e paradoxos, colocando os trabalhadores engajados na luta pela desconstrução do aparato manicomial na encruzilhada da loucura, e os desinformados ou formatados dentro dos princípios manicomiais, no cômodo lugar de apenas reproduzir em novos espaços as velhas práticas.

6.2 Sentidos da inserção no trabalho num CAPS: entre a formação e