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3. O CONVÊNIO COMO INSTRUMENTO DE FORMALIZAÇÃO DAS

3.4. Características do terceiro setor

3.4.3 Desvinculação do Estado (autonomia)

A segunda característica das organizações do terceiro setor, segundo a doutrina especializada, consiste em sua desvinculação do Estado. Como bem observa Luis Eduardo Patrone Regules, os princípios da autonomia privada e da livre iniciativa constituem a base jurídica para o nascimento do terceiro setor:

As organizações não governamentais nascem da iniciativa livre e espontânea dos indivíduos com vistas a uma atuação coletiva. Nenhuma barreira estatal será tolerada pelo sistema constitucional no tocante à criação das mesmas, a não ser aquele rol restrito de formalidades fixado em lei a fim de que se lhes reconheça a existência legal a partir do registro de seus atos constitutivos.182

Da própria expressão “terceiro setor” já se depreende a referência exclusiva a entidades privadas, sem qualquer dependência do Estado (primeiro setor). Vale registrar, ainda, que apesar de ser possível que as entidades do terceiro setor vinculem- se à Administração Pública, não se pode apresentar a vinculação ao Estado como uma característica fundamental.

Ora, é perfeitamente possível que entidades do terceiro setor não tenham qualquer vínculo com o Poder Público. É possível que organizações não governamentais sobrevivam exclusivamente de doações de particulares que acreditam e querem colaborar com o desenvolvimento de suas atividades. É o caso, por exemplo, da conhecida instituição internacional Greenpeace.183

182

REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: Regime Jurídico das OSCIPs, p. 51-52.

183 “Por não aceitar doações de governos, empresas ou partidos políticos, o Greenpeace existe graças à contribuição de milhões de colaboradores em todo o mundo, que garantem nossa independência e o nosso compromisso exclusivo com os indivíduos e com a sociedade civil. Hoje, o Greenpeace está presente em mais de 40 países e conta com a colaboração de aproximadamente 3 milhões de pessoas.” Disponível em: http://www.greenpeace.org/brasil/quemsomos/. Acesso em:06 jun. 2010.

No entanto, é comum que as entidades do terceiro setor busquem receita junto às entidades empresariais (segundo setor) e junto ao Estado (primeiro setor). No primeiro caso trata-se de contratos privados celebrados entre particulares com base na autonomia da vontade.

Já o repasse de verbas públicas ao terceiro setor enquadra-se na atividade de fomento, a qual objetiva a tutela ou o desenvolvimento de atividades dos particulares que visem à satisfação de necessidades consideradas de utilidade pública, sem que o Estado faça o uso da coação ou de qualquer outro instrumento de imposição de condutas ao particular.184

Dessa forma, a compreensão da natureza das entidades do terceiro setor deve partir da premissa de que sua constituição e seu desenvolvimento são amparados pela autonomia privada.

Não se confundem, pois, com determinadas organizações cuja criação depende de autorização legal, ou mesmo entidades que integrem a Administração Indireta (art. 37, inciso XIX da Constituição), haja vista que estas sempre terão uma relação de dependência com o Poder Público. É o que ocorre, por exemplo, com os Serviços Sociais Autônomos, que possuem regime jurídico bem distinto das pessoas jurídicas privadas criadas por particulares. É por essa razão que o presente trabalho não inclui as entidades dos Serviços Sociais Autônomos no terceiro setor.185

184 “A atividade administrativa de fomento caracteriza-se por algumas notas. O fomento é uma atividade administrativa e como tal é levada a cabo pela Administração Pública com o propósito de alcançar determinadas finalidades, que lhe são próprias. Tais finalidades são de interesse público e referem-se à satisfação das necessidades coletivas e à obtenção dos fins do Estado; a atividade administrativa de fomento, contudo, não procura alcançar direta e imediatamente tais fins, mas procura que esses fins sejam satisfeitos pela atividade dos particulares, mediante a proteção e a promoção dessas atividades, com o emprego de diferentes meios, excluída qualquer forma de intervenção coativa; a determinação concreta das atividades particulares que devem ser fomentadas é uma questão política de conveniência e oportunidade, que escapa ao campo estritamente jurídico; a atividade dos particulares é prestada por própria decisão destes, que aparecem, assim, como colaboradores da Administração Pública em razão de uma participação voluntária.” ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro

setor, p. 26. 185

“Pelo fato de administrarem verbas decorrentes de contribuições parafiscais e gozarem de uma série de privilégios próprios dos entes públicos, estão sujeitas a normas semelhantes às da Administração Pública, sob vários aspectos, em especial no que diz respeito à observância dos princípios da licitação, à exigência de processo seletivo para seleção de pessoal, à prestação de contas, à equiparação dos seus empregados aos servidores públicos para fins criminais (art. 327 do Código Penal) e para fins de improbidade administrativa (Lei nº 8.429, de 2-6-92).” DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo, p. 493.

Percebe-se, pois, que não se sustenta a concepção de que o regime jurídico dos entes do terceiro setor é híbrido, ou seja, “predominantemente privado, porém parcialmente derrogado por normas de direito público.”186

É que o entendimento de que o regime jurídico dessas instituições é híbrido desconsidera que as organizações componentes do terceiro setor são criadas e mantidas por particulares, de maneira desvinculada do Estado. A mera possibilidade de celebração de convênios com a Administração Pública não retira a natureza privada do regime jurídico das organizações não governamentais.

A esse respeito é imperioso analisar o caso específico das organizações sociais, cuja autonomia é reduzida em razão de o art. 3º, I, “a”, da Lei nº 9.637/98 exigir que o conselho de administração tenha representantes do Poder Público. Andrea Nunes chega a questionar a integração das organizações sociais ao terceiro setor, justamente em virtude de carecem da autonomia em face do Estado. Segundo a autora, a exigência de participação do Poder Público no conselho de administração das O. S.s prejudica a identificação clara entre os setores público e privado.187

Deve-se observar, no entanto, que a exigência de o conselho fiscal conter representantes do Poder Público não retira a autonomia das organizações sociais, visto que os dirigentes privados continuam tendo maior poder de decisão sobre os rumos que a entidade vai seguir. Conforme dispõe expressamente o art. 3º da Lei nº 9.637/98, os representantes da Administração Pública não possuem maioria de votos, visto que ocuparão de 20% a 40% das cadeiras do conselho de administração.

É claro que a celebração de contratos de gestão como condição para recebimento de recursos financeiros pode impor condicionantes que reduzam ainda mais a liberdade das organizações sociais. Mas tal vinculação ao Estado tem natureza contratual, de modo que dependerá da adesão da entidade privada.

Dessa forma, percebe-se que as entidades do terceiro setor (incluindo-se as organizações sociais) são pessoas jurídicas de direito privado criadas por particulares com base na autonomia privada e desenvolvem suas atividades sem ter que obedecer a comandos da Administração Pública. O regime jurídico das entidades é privado, não

186

DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo, p. 491. 187 NUNES, Andréa. Terceiro setor: controle e fiscalização, p. 27.

havendo necessidade de autorização do Poder Público nem de sua anuência para a realização de atividades beneficentes.

Assim, a peculiaridade do terceiro setor, composto pelas ONGs, é justamente a proteção do interesse público pela sociedade civil organizada, no intuito de atender às demandas sociais de uma maneira desvinculada do Estado.188

Os ideais de solidariedade e responsabilidade social, contidos nas atividades do terceiro setor, além de expressarem o desejo de construírem uma sociedade melhor sem pleitear nada em troca, constituem também manifestação de liberdade de todo e qualquer cidadão.

A consagração de uma sociedade democrática amparada por um ordenamento jurídico pluralista garante a existência de diferentes concepções sobre o que vem a ser o interesse público. Os fundamentos da atuação do terceiro setor são a liberdade de iniciativa (autonomia privada) e a liberdade de associação (art. 5°, inciso XVII), princípios consagrados como direitos individuais inafastáveis até mesmo pelo poder constituído reformador.

É importante deixar claro que não é vedado às entidades do terceiro setor atuar de forma distinta (e até mesmo conflitante) das políticas elaboradas pelo Estado, desde que atuem em consonância com a ordem jurídica.

Não é proibido, por exemplo, que entidades com fins religiosos defendam a não utilização de determinados métodos anticoncepcionais por contrariarem a natureza humana e, consequentemente, contrariem a vontade divina de procriação. É lícita tal conduta ainda que o Estado tenha uma política pública de distribuição de preservativos e pílulas anticoncepcionais para evitar disseminação de doenças sexualmente transmissíveis.

Em uma sociedade plural é normal e salutar que existam cidadãos que não concordem com as políticas públicas formuladas pelo Estado. E essas “pessoas de oposição” também podem buscar interesses públicos.

188 “[...] um ponto fundamental reside em reconhecer que o Estado Democrático não absorve a sociedade civil”,

pois “as instituições estatais, que concentram o poder político, não eliminam as estruturas sociais autônomas, cuja existência não se deve à vontade dos governos.” Enfim, “numa democracia, a sociedade permanece à

margem do Estado” para que aquela possa promover a fiscalização e o controle deste, “mas também quanto à

promoção da satisfação das necessidades coletivas. Ou seja, a diferenciação entre Estado e sociedade é relevante para fins políticos, porque é essencial à democracia. Mas é também relevante para a promoção dos direitos fundamentais” JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, p. 30.

Os interesses públicos podem ser promovidos e tutelados por quaisquer organizações do terceiro setor, independentemente de atuação conjunta com o Poder Público. Mas é possível também que as organizações não governamentais busquem a realização do interesse público em atuação conjunta com o Estado, por meio da celebração de convênios administrativos.