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Diálogos entre gêneros do discurso, atitude responsivo-ativa,

3 Dialogismo e Relações de poder: teorias e análises

3.1 Entre a arte e a vida: discussões teóricas

3.1.1 Diálogos entre gêneros do discurso, atitude responsivo-ativa,

atitude responsivo-ativa, poder e discurso, cotejando com raps.

Raps, enquanto gêneros discursivos, têm algumas características que lhe são peculiares: um tema (ou subtemas), o fato de ser um canto/fala e ter uma estrutura composicional marcada, geralmente, pelo ritmo, pela rima e pela poesia, por mesclar e incorporar, em muitos casos, outros gêneros como o testemunho, o relato, o diário, a notícia, entre outras características.

Assim, raps, nessa perspectiva, são práticas situadas no interior de uma atividade social: a do movimento Hip Hop. Além disso, possuem variados

32 Gostaríamos de salientar que além do viés discursivo pelo qual olhamos o rap, ele é um estilo musical

que também pode ser considerado como canção, mas não está vinculado ao conceito tradicional de canção, geralmente uma relação entre melodia e letra, segundo Tatit (2006), pois é um estilo de canção em que a presença da fala é explorada (TATIT, 2006), no qual “[...] a fala cantada é substituída ou conjugada com uma fala rimada e ritmada de acordo com certos padrões” (COSTA, 2003, p. 108). Ainda sobre essa questão da mutação da canção, o músico Arnaldo Antunes (1988) tem a seguinte opinião: “[...] Em diversas bandas, as músicas são feitas em cima de um som que já está sendo tocado”, já que “[...] o estabelecimento de novas relações entre melodia e harmonia; o reprocessamento e colagem de sons já gravados; os ruídos, sujeira, microfonias; as novas concepções de mixagem, onde o canto nem sempre é posto em primeiro plano, tornando-se, em alguns casos, apenas parcialmente compreensível; a própria mesa de mixagem passando a ser usada quase como um instrumento a ser tocado. Tudo isso altera a concepção de uma letra entoada por uma melodia, sustentada por uma cama rítmica-harmônica”.

O professor da Universidade Queen Mary de Londres, Matthias Mauch, por sua vez, juntamente com outros pesquisadores de universidades da Inglaterra, realizou pesquisa, intitulada “A evolução da música popular: EUA 1960-2010”, com canções que estavam nas paradas da Billboard Hot 100 dos Estados Unidos entre as décadas de 1960 e 2010, e, entre outras conclusões, apontam o hip-hop como destaque, tendo em vista que “O campo harmônico do hip-hop é único e muito distinto do restante da história da música. E isso acontece especialmente porque o estilo tem o rap, em que as pessoas falam, então o conteúdo da harmonia não importa tanto. Algumas canções nem possuem acorde. O estilo reinventou o panorama musical, não era uma cópia de composições do passado. Eles entraram massivamente nas paradas entre o fim dos anos 1980 e o começo dos anos 1990, especialmente, e estão aí até hoje”. Essa matéria está disponível em: ˂http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/sorry-beatles- o-hip-hop-e-que-fez-revolucao/˃.

Como se observa, o rap, do ponto de vista musical, tanto para Tatit e Costa quanto para os estudiosos de Londres, se difere dos padrões habituais e está na intersecção entre canto/fala, já que há uma linha tênue que une/separa o canto da fala. Por isso que, nesta tese, também focamos sonoridades presentes na base do rap, por meio de colagens, como sons de tiro e vidros quebrando, entre outros, que ajudam a construir o todo em um rap.

destinatários/interlocutores, fatos que contribuem para se produzir um rap, uma vez que seu compositor, o rapper, juntamente com o DJ, realiza seu projeto de dizer a partir desse horizonte de possibilidades, no qual seleciona temas e toda uma série de elementos linguísticos, discursivos e estilísticos que ajudarão a compor esse projeto de dizer, daí resulta, em parte, a instabilidade do gênero, sobretudo na intercalação e na sobreposição de gêneros. Esses aspectos vão se relacionar à produção, como vimos, mas também, de alguma maneira, a sua recepção e circulação. Talvez seja por isso que há, em muitas regiões do Brasil, a mistura de ritmos à batida tradicional do rap e de outros elementos locais, fatos que corroboram com a hibridez do gênero. Mas, sobre isso, discutiremos no capítulo dedicado à cultura e suas intersecções.

Foucault não trabalha com a noção de gênero, foca em uma outra perspectiva, a de controle dos discursos:

[...] trata-se de determinar as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles. [...] ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. Mais precisamente: nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas (diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a todos os ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito de fala (FOUCAULT, 2014, p. 35).

O discurso, para Foucault (2014), nada mais seria que o reflexo de uma verdade que está sempre prestes a florescer diante de nossos olhos; um jogo de escritura em se tratando de uma filosofia de um sujeito fundante, de leitura, numa filosofia de experiência originária, de intercâmbio, numa filosofia de mediação universal, com a escritura, a leitura e a troca pondo em jogo signos. Assim, ainda segundo Foucault (2014), o discurso, na sua realidade, se anularia ao ser colocado na ordem do significante.

Por outro lado, em relação ao discurso, este só existe, segundo Bakhtin (2003), em enunciações concretas proferidas por falantes, os sujeitos do discurso. O discurso, assim, está amalgamado ao enunciado que pertence a um determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não poderia existir. Nesse sentido, o rap seria uma enunciação concreta também, pois é enunciado por sujeitos também concretos, os

O enunciado, então, caracterizar-se-ia pela irrepetibilidade, por ser individual, singular, histórico e único (BAKHTIN, 2003), pois a “escolha dos meios linguísticos e dos gêneros de discurso é determinada, antes de tudo, pelas tarefas (pela ideia) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido” (BAKHTIN, 2003, p. 289), isto é, por um projeto de dizer de um sujeito do discurso. Os diferentes enunciados seriam construídos, por seus falantes, já prevendo seus possíveis destinatários/interlocutores,daí decorre uma inter-relação entre destinatário e a instância de recepção dos discursos, do nosso ponto de vista, uma vez que

O destinatário do enunciado pode, por assim dizer, coincidir pessoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado. [...] Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo, ao qual faço objeção, o qual executo, levo em conta, etc.) já está presente, a sua resposta (ou compreensão responsiva) ainda está por vir (BAKHTIN, 2003, p. 301- 302, grifo do autor).

Nesse fragmento, nota-se que o fato de se estar sempre respondendo caracteriza o que o Círculo vai nomear como atitude responsivo-ativa, visto que há dois sujeitos interagindo, por meio de seus enunciados, dialogando e dando respostas um ao outro. Em outras palavras, não há sujeitos passivos, numa interação verbal, e sim ativos, com cada locutor/interlocutor respondendo a partir de seus respectivos contextos históricos e sociais, uma vez que o “discurso vivo e corrente está imediata e diretamente determinado pelo discurso-resposta futuro [...]” (BAKHTIN, 2010b, p. 89).

No rap “Diário de um detento”, observa-se que o locutor usa alguns referentes, como Deus e juiz, buscando uma resposta, além de passar um recado para seu “irmão” (verso 6), seu interlocutor, nessa canção:

[...] O dia tá chuvoso. O clima tá tenso. Vários tentaram fugir, eu também quero. Mas de um a cem, a minha chance é zero. Será que Deus ouviu minha oração? Será que o juiz aceitou apelação? Mando um recado lá pro meu irmão: Se tiver usando droga, tá ruim na minha mão Ele ainda tá com aquela mina.

Pode crer, o moleque é gente fina [...].

Notem que o “irmão” é o de sangue, como é sugerido no fragmento, mas também pode ser aquele que o é por afinidade, como se perceberá em alguns raps. Essa possível ambiguidade da palavra “irmão” é uma opção valorativa do falante com o

discurso que está proferindo, com essa valoração favorecendo as escolhas lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado por parte desse falante, de acordo com Bakhtin (2003).

Observam-se, assim, dois lados, dois pontos de vista, por meio do olhar exotópico33 do prisioneiro que, estando recluso, movimenta-se, pelo menos no imaginário, entre situações que ocorrem fora da cadeia, por já ter estado em liberdade, como o possível uso de entorpecentes por parte do irmão, como aquelas que permeiam o cotidiano de um detento, como a possibilidade de fuga. Pode-se concluir que a intercalação do gênero discursivo diário ao rap viabiliza o tipo de narrativa que se quer dar visibilidade: as relações que se dão via coerção, no diálogo entre os níveis macro e micro, tanto entre os prisioneiros quanto entre estes e os guardas, como a dos primeiros para os que se encontram fora do sistema prisional, numa clara hierarquização das relações sociais, pelo menos no rap.

O rap “Traficando Informação”, de CD homônimo, de 1999, de MV Bill, é outro enunciado no qual as escolhas lexicais, gramaticais e composicionais, realizadas pelo locutor, nos indicam a solicitação de resposta dos interlocutores, como se nota nestes versos, em que a um interlocutor genérico, “você”, pede-se a tomada de posição/de atitude: “Se você tiver coragem vem aqui pra ver / A sociedade dando as costas para a CDD”.

Percebam o deslizamento de sentido da palavra “traficar”, por meio do trocadilho no título e em outras partes da canção também – o locutor trafica informação em vez de realizar outro tipo de tráfico, como o ligado aos entorpecentes, considerando- se mensageiro da Comunidade Cidade de Deus (a denominada CDD): “MV Bill, mensageiro da verdade / MV Bill, falando pela comunidade [...] / MV Bill traficando informação”. O uso do trocadilho instaura uma nova discursividade: a de que “comercializar” informações e, consequentemente, ampliando o acesso a elas, poderia reverter ou inviabilizar a dinâmica do crime, como a de “recrutar” pessoas para o tráfico de drogas.

Esse “traficar informação” se relaciona, em alguma medida, à maneira como o poder se mantém e é aceito, uma vez “[...] que ele não pesa como uma força que diz

33Este conceito que se assemelha ao de excedente de visão será melhor explorado em páginas seguintes,

mas, brevemente, exotopia pode ser assim definido: [...] designa uma relação de tensão entre pelo menos dois lugares: o do sujeito que vive e olha de onde vive, e aquele que, estando de fora da experiência do primeiro, tenta mostrar o que vê do olhar do outro (AMORIM, 2006, p. 101).

não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (FOUCAULT, 2013, p. 45), como é o caso do cotidiano da periferia, que é contado por um locutor, que tudo sabe e vê, geralmente, na 1ª pessoa do singular. Assim, vê-se a manifestação do poder, na produção discursiva de uma situação que tem como base fatos reais, como o de uma garota de 12 anos grávida (verso 5) e de um menino de apenas 9 anos que já usa drogas (verso 6) em vez de estarem na escola, por exemplo, evidenciando relações desiguais na falta de cumprimento da legislação que visa à proteção e ao cuidado com a criança e ao adolescente. O locutor, ao relatar os fatos, assume um tom crítico e irônico, como se nota no primeiro verso do rap, no uso do adjetivo “sinistro” ligado a “mundo” que se refere à CDD. Destacam-se também palavras, como polícia (uma tecnologia governamental do poder, como evidencia Foucault (1995)), revólver e tiro, que remetem a conflitos/guerra em contraste com outras situações cotidianas como estudar, brincar, lazer, paz e tranquilidade:

Seja bem-vindo ao meu mundo sinistro, saiba como entrar Droga, polícia, revólver, não pode, saiba como evitar [...]

Está faltando criança dentro da escola,

Estão na vida do crime, o caderno é uma pistola Garota de 12 anos esperando a dona cegonha Moleque de 9 anos experimentando maconha. Bala perdida, falta de emprego, moradia precária Barulho de tiro na noite

É outra quadrilha querendo invadir minha área [...]

O uso de afirmativas, tais como as que estão nos versos de 3 a 6, evidencia a operacionalização das relações de poder pelo escamoteamento e pela inversão de valores e papéis: ser mãe aos 12 anos quando se deveria ser apenas filha e cuidar do futuro, estudando; usar entorpecentes e ter como “caderno” uma pistola, em vez de frequentar uma escola. Assim, dois mundos (con)viveriam paralelamente: o do crime, que levaria as pessoas (adultos, crianças e adolescentes) ao nada, e o da informação, ligado à escola, com as pessoas podendo ser tornar mais críticas e questionadoras frente às situações vivenciadas em seu cotidiano mediante a ampliação e o acesso ao conhecimento em suas variadas formas.

O locutor mostra o olhar do outro sobre a discriminação, agregando-o ao seu, como no caso do primeiro verso em que “favelado, pobre e preto” são os epítetos de marginal, que já indicia pré-conceito que culmina no preconceito, com essas palavras se repetindo no verso 6, em que “favelado” passa de designado para designador, indicando

um lugar, a “favela”, local em que há também discriminação racial entre pares. Assim, as relações étnicas deslizam para o racismo entre pares, o que denota que as relações de poder se manifestam também no nível microfísico, como se percebe pelo último verso, por meio da incorporação de vozes que ratificam o racismo:

[...]

A descrição do marginal é favelado, pobre, preto! Na favela, corte de negão é careca

É confundido com traficante, ladrão de bicicleta [...]

O sistema de racismo é muito eficaz

Pra eles um preto a menos é melhor que um preto a mais [...]

Preto, pobre, favela

Coroa chorando, corpo coberto, sangue no chão, ao lado uma vela Acerto de contas, cheirou e não pagou

[...]

Isso acontece porque aqui ninguém ajuda ninguém Um preto não quer ver o outro preto bem [...]

Nesses versos, as vozes ressoam discriminação social, como ser favelado (se existe o favelado é porque são criadas condições de existência deste: como a divisão de classes) e racial, como a apontada entre pares. Essas vozes dialogam, refletem e refratam a realidade por meio de um olhar exotópico do locutor. É nesse sentido que “cada forma de transmissão do discurso de outrem apreende à sua maneira a palavra do outro e assimila-a de forma ativa” (BAKHTIN, VOLOCHÍNOV, 1995, p. 190).

A multiplicidade de vozes permite observar várias narrativas circulando, como o fato de se exaltar o Hip Hop, sendo este visto pelo locutor como alternativa positiva em meio à marginalidade: “Encontrei minha salvação na cultura Hip-Hop / Tem outros que entraram na vida do crime querendo ganhar Ibope”. Esse destaque ao movimento Hip Hop e a referência ao Ibope (um Instituto de pesquisa) mostram-nos que as escolhas lexicais relacionam-se à forma como ao discurso de outrem é dado um novo tom em um novo contexto, como a relação “caderno” e “pistola”.

As variadas vozes encontram na referência e no pertencimento ao local, a periferia, a espacialização de momentos e de situações. Esse local é marcante na narrativa desse rap de MV Bill, a exemplo de “Diário de um detento”, dos Racionais (“Aqui tem mano de Osasco, do Jardim D'Abril, Parelheiros / Mogi, Jardim Brasil, Bela Vista, Jardim Angela / Heliópolis, Itapevi, Paraisópolis”), pois é uma relação de intimidade, e também de medo, que o locutor e os seus têm para com os locais

mencionados na canção: “[...] Vai ver que a justiça aqui é feita à bala / A sua vida na favela não vale de nada [...] CDD, Zona Oeste, Jacarepaguá, aqui o gatilho fala mais alto, pá pá pá [...]”. A onomatopeia “pá, pá, pá” e os sons de tiro, logo após a utilização desta, foram inseridos, como outros sons de tiro ao longo da canção de MV Bill, para dar mais veracidade ao que é relatado, tendo como base o que pode acontecer no cotidiano da periferia, em relação à violência armada, por exemplo. Na menção a esses locais, pode ser notado que eles representam vozes variadas, como a que se relaciona a dois tipos de justiça: em “Diário de um detento”, a que se refere ao sistema judiciário brasileiro sobre a aplicação de leis e sentenças, como a privação de liberdade; e, em “Traficando informação”, a que aborda o contexto da justiça feita pelas próprias mãos.

Evidenciamos a partir do que Foucault (2013, p. 292-293) vai discorrer sobre a relação entre legislação e poder disciplinar e que, de alguma maneira, é vislumbrado nos

raps analisados. Segundo o filósofo há

[...] nas sociedades modernas, a partir do século XIX até hoje, por um lado, uma legislação, um discurso e uma organização do direito público articulados em torno do princípio do corpo social e da delegação de poder; do outro, um sistema minucioso de coerções disciplinares que garante efetivamente a coesão desse mesmo corpo social.

Além disso, observa-se ainda em “Diário de um detento” o fato de que é na prisão, segundo Foucault (2013), o lugar em que o poder se manifesta no seu estado mais puro, em suas formas mais exageradas sob a tutela de ser declaradamente visto como poder moral. Nos fragmentos seguintes, isso pode ser verificado, “no olhar sanguinário do vigia” (verso 3); no uso de uma “HK, metralhadora alemã ou de Israel” que “estraçalha ladrão que nem papel” (versos 4 a 8) em que se nota também um dialogismo com o contexto cristão com o uso de palavras como “Israel, muralha e José; na individualização das penas, na aplicação do poder disciplinar (versos 9 e 10):

São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8h da manhã. Aqui estou, mais um dia.

Sob o olhar sanguinário do vigia.

Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma HK.

Metralhadora alemã ou de Israel. Estraçalha ladrão que nem papel.

Na muralha, em pé, mais um cidadão José. [...]

Cada crime uma sentença.

Cada sentença um motivo, uma história de lágrima, sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo.

Misture bem essa química. Pronto: eis um novo detento [...]

Desse modo, o poder é uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social, uma vez que as relações de poder acontecem entre indivíduos que, por sua vez, utilizam-se da palavra, enquanto signo verbal (ideológico) para materializar o poder, como é o caso dos raps analisados.

Ao final, o locutor de “Traficando informação” continua mostrando os antagonismos e a relação paradoxal que os habitantes da periferia mantêm entre si, dentre os quais o locutor faz parte, ao mesmo tempo em que mantém certa distância devido a ser um “mensageiro da verdade”. Essa relação paradoxal também é para com outros, distintos dele e dos seus, como o “inimigo”, o “sistema”. Assim, percebem-se relações capilares de poder, quando acontecem entre pares (versos 3 a 5), e macrofísicas, entre diferentes classes sociais (6˚ e 7˚ versos). Além disso, o operador argumentativo “mas”, nas duas ocorrências, é utilizado para mostrar o discurso que é dado a ver: as relações dialógicas entre iguais se materializam nas relações de poder (e vice-versa) que se dão via consumismo, seja pela aquisição do entorpecente, do álcool ou de um bem, como o tênis Nike.

Meu raciocínio é raro pra quem é carente MV Bill, sobrevivente

Da guerra interna, dentro da favela

Só morre preto e branco pobre, que faz parte dela O sistema faz o povo lutar contra o povo

Mas na verdade o nosso inimigo é outro O inimigo usa terno e gravata

Mas ao contrário a gente aqui é que se mata Através do álcool, através da droga

Destruição na boca de fumo, destruição na birosca

Fazendo justamente o que o sistema quer, saindo para roubar Para botar um Nike no pé!

Armadilha pra pegar negão, se liga na fita MV Bill traficando informação

Como qualquer lugar, a favela é um local de população variada. Assim, no verso 4, o locutor faz referência a brancos pobres também que, assim como os “pretos”, morrem, na guerra interna, provavelmente em virtude do tráfico de drogas, que acontece rotineiramente na favela, fato que se difere de versos mais acima em que o locutor diz que “Um preto não quer ver o outro preto bem”. Desse modo, como destacamos, as relações de poder não se estabelecem só no nível microfísico, no preconceito entre pares e na disputa pela liderança do tráfico local, mas também macro, como no

escamoteamento de que as relações internas são causas e consequências, em parcela significativa, da divisão social e econômica de classes, como se percebe no verso 7, em que o locutor diz que o “inimigo usa terno e gravata”.

Por fim, a alternativa do locutor é “traficar informação” a fim de alertar aos seus