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2 Contextualizando o Movimento Hip Hop

2.3 O contexto português

2.3.1 A voz dos rappers

2.3.1.1 Rapper Chullage

“Igualdade é uma ilusão, liberdade é só uma vaga sensação Esquadrões inteiros

marcham como a nossa posição Retaliação não é a melhor solução Mas é melhor que esta situação”.

Igualdade é uma ilusão - Chullage

O rapper português Chullage é da comunidade de descendentes cabo-verdianos. Seus pais vieram para Portugal, no início da década de 1970.

Em 2001, o rapper lançou o álbum, Rapresálias, em 2004, Rapensar, e em 2012, Rapressão. Atualmente, trabalha na produção de novo álbum, de forma independente, sem a influência e a pressão de grandes gravadoras, segundo o rapper.

Além disso, faz parte do projeto “Há palavras que nasceram para a porrada”, juntamente com Hezbó MC, LBC Soldjah e a rapper Capicua, entre outros. Este projeto está vinculado ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e integra o projeto ALICE – Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas: Definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do Mundo, sob a coordenação do Prof. Dr. Boaventura de Sousa Santos.

Exporemos um pouco do trabalho de Chullage a partir da entrevista que ele nos concedeu e também de informações retiradas de sites da internet.

Em entrevista ao portal DW África17, quando participou do Festival Músicas do

Mundo, em Sines, Chullage falou sobre como começou sua história com o rap: “Comecei muito novo, aos 12-13 anos, a entender o rap, que era um tipo de música que falava muito da minha realidade em Portugal e da realidade do que era viver numa diáspora”. As principais influências musicais que ele relatou, na entrevista que realizamos, são as seguintes: música africana, através do pai, Public Enemy, Queen Latifa, Ice Cube, General D (Portugal), entre outros.

Como se percebe, várias foram as influências musicais e, de alguma maneira, políticas, já que o rap se insere na sua vida, pelo que pode se depreender, como uma forma de compreender questões sobre ser e estar no mundo a partir do contexto da diáspora africana.

Chullage, na entrevista que fizemos, também levantou uma outra questão: a de que muitas pessoas querem “higienizar o rap”. Contudo, vem acontecendo um movimento daqueles que são resistentes a isso e estão fazendo um outro tipo de rap, a partir do denominado “spoken word18”: “Havendo uma investida da indústria cultural

para higienizar o rap, para despolitizar o rap, para branquear o rap, muita gente está a procurar o spoken word”. Essa nova maneira de se fazer rap, segundo o rapper, pode ser realizada com uma base musical ou não, ou seja, apenas falada. Para além dessa nova modalidade, pode-se fazer um paralelo, mais uma vez, do rapper com o griot

17 As informações estão disponíveis em: ˂http://www.dw.de/rapper-critica-falta-de-oportunidades-para-

descendentes-africanos/a-17013965˃. Acesso em: 18 ago. 2013.

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Spoken Word: “uma forma de arte em que as letras de músicas, poemas ou histórias são faladas em vez de cantadas, assim como outros tipos de trabalho, tudo a partir do rap. O objectivo é despertar consciências por força das suas rimas”. Essa explicação sobre o spoken word foi retirada do portal: ˂http://www.dw.de/rapper-critica-falta-de-oportunidades-para-descendentes-africanos/a-17013965˃. Acesso em: 18 ago. 2013.

africano, já que o “rapper pode ser um grande contador de história”, segundo Chullage, e esse rapper pode contar, na primeira pessoa, a história dos outros também, visto que narra histórias que vive e vê.

Quando pergutamos sobre a Old e a New School do rap português, Chullage preferiu falar em gerações, tendo em vista que não se pode mais ficar só nas duas escolas, que é uma denominação da década de 1990, quando o rap ainda era incipiente, em Portugal, segundo nos relatou.

Assim, inicialmente, de acordo com Chullage, era o DJ que comandava a “gravação” e se ele gostasse da rima do rapper, este gravava uma mixtape. Desse modo, na primeira geração, para Chullage, havia poucas gravações e muita rima na rua, até a gravação do álbum Rapública, que tem como um dos destaques o rap “Nadar” dos Black Company. Esse álbum é histórico, apesar de mal gravado, segundo o rapper, pois o “rap da rua tem lugar, depois de Rapública”. Na segunda geração, houve a explosão do rap e começaram a existir gravações, programas de rádio, como de Jose Mariño, na Antena 3. Nessa geração, há nomes como o próprio Chullage. Nos 2000, segundo o

rapper, a partir de 2004, houve separação entre aqueles que estavam no mercado

fonográfico e os que continuam a rimar nas ruas. É nesse sentido que Chullage diz que começou a acontecer uma higienização do Hip Hop para agradar aos brancos, e o Hip Hop entrou nas lojas. A terceira geração, para Chullage, é mais tecnológica, divulga seu trabalho, sobretudo, na internet. Destacam-se nomes como Loreta, Landi, Cobra Preta, Fidjus di baraca, Tuntera, Tchoras. Outros como Lowrasta, LBC Soldjah e Hezbolah fazem rap crioulo19 de intervenção que, do nosso ponto de vista, é uma maneira de

19 Para se ter uma ideia clara do que é língua crioula, exporemos a reportagem “Línguas Crioulas, como o

professor da UnB, Hildo Honório do Couto. De acordo com o estudioso, para que compreenda o que são línguas criolas, é preciso reproduzir o processo de sua formação que se relaciona a um outro processo: o de comunicação entre colonizadores e escravos. Assim sendo, como os portugueses não se interessavam por aprender as línguas africanas nem ensinavam a língua portuguesa ou outra língua, os escravos tinham que se esforçar para entender as ordens dos colonizadores e resulta daí que “[...] algumas palavras do português, adaptadas à pronúncia da maioria das línguas dos escravos, começaram a ser compartilhadas”. Segundo Couto, “Nessa fase tratava-se de apenas algumas palavras compartilhadas, não havia ainda regras para se construírem frases. Tratava-se apenas do que em crioulística (ou estudos crioulos) se chama de jargão. De qualquer forma, já se tratava do germe de uma língua comum entre os diversos povos aloglotas (de línguas diferentes) que conviviam em um mesmo espaço. Como a convivência deles continuou (até hoje existe a comunidade caboverdiana), seria de se esperar que surgisse uma língua

comum que permitisse a comunicação entre todos os seus membros”. Desse modo, “Quando começam a

surgir regras para construção de frases elementares, o jargão inicial evolui para o que se tem chamado de pidgin (pronuncia-se como se não houvesse o "g"). O pidgin tampouco é uma língua plena, porém já permite uma interação entre os diversos membros da nova comunidade, melhor do que a que se conseguia na fase do jargão. De qualquer forma, ele não é língua materna de ninguém. Os mandingas só o usavam quando se dirigiam aos portugueses ou a falantes de outras línguas africanas. Quando voltavam a seu

construir uma identidade por meio de uma alteridade voltada para as pessoas que partilham algo em comum, como a língua crioula e tudo aquilo que sua constituição representou: violência física e simbólica por parte do colonizador.

Outro destaque da conversa com Chullage diz respeito aos lugares em que o rap está presente, como Porto, Lisboa e Algarve, embora haja outros locais também. No Porto, citou nomes como Mind da Gap e Dealema (este grupo é de uma geração a seguir aos Mind da Gap). Segundo Chullage, o Porto é um lugar com mais estrutura, além de mais recursos financeiros, no trabalho com o rap, pois há uma cultura muito forte, nesse local, em relação ao rap. Ressaltou o rap crioulo produzido em Lisboa, embora considere que esse rap seja invisibilizado. No entanto, para Chullage, esse tipo de produção possibilitará a existência de uma agenda política em relação à comunidade cabo-verdiana.

A cena do Hip Hop lusitano é maciçamente masculina, assim como no Brasil. Em Portugal, Chullage citou nomes como as Djamal, Capicua, entre outras. Como se nota, é uma minoria que trabalha nesse universo e elas não têm a visibilidade que o rap masculino tem.

Quando perguntado sobre a influência de Gabriel O Pensador para se cantar na língua portuguesa, Chullage nos contou que já havia aqueles que rimavam em português, como General D, mas Chullage relatou que o rapper brasileiro abriu as portas para as mídias portuguesas. Citou nomes de rappers brasileiros que ele tem conhecimento, além de Gabriel O Pensador, como Criolo, Emicida, Racionais, Marcelo D2, GOG, Negra Li, e cantores de outros estilos musicais, como Leci Brandão, Elza Soares, Chico Sciense. Disse-nos que há contatos entre rappers brasileiros e portugueses, com “Negro Drama”, dos Racionais MC‟s, sendo considerado, por ele,

grupo, falavam o mandinga. O mesmo faziam membros das outras etnias/línguas. Enfim, ninguém tem

amor pelo pidgin. Assim que pode, livra-se dele”. Como a convivência continuou, como é o caso de Cabo

Verde, ainda segundo Couto, uma comunidade começou a se cristalizar “E comunidade consta necessariamente de um grupo de indivíduos ou população (P) que convive em determinado território (T), unificado por uma língua (L). A cristalização de uma comunidade leva necessariamente à emergência de uma língua plena, fato que constitui o que chamo de Ecologia Fundamental da Língua, ou seja, PTL”. Couto, então, acrescenta: “E aí temos o momento crucial para a emergência de um crioulo. Na verdade, ele é um pidgin que passou a ser a língua principal de uma comunidade. Se o pidgin só servia para uma comunicação precária, o crioulo serve para todas as necessidades expressivas e comunicacionais de seus usuários”. Como se nota, é dessa forma, que as línguas crioulas se constituíram. Ressalta-se, contudo, que o termo crioulo é uma construção colonial que sinaliza para os embates políticos envolvendo os colonizadores e colonizados.

A reportagem com o prof. Couto está disponível em:

como um hino, um documento, e uma música extremamente importante, em Portugal. Interessante salientar essa perspectiva que o rapper lusitano tem acerca de “Negro Drama”, o que nos leva a pensar que as questões postas, nessa canção, refletem e refratam uma realidade concreta do cotidiano, a de ser negro e dos vários dramas retratados nesse rap. Como se percebe, essas situações, infelizmente, acontecem em outros lugares também, como é caso de Portugal, em decorrência de estigmas históricos. Sobre o papel da mídia, na cena rap, Chullage tem a seguinte opinião: “Os mídia são o instrumento de propaganda, são a ideologia dominante. Os mídias só produzem aquilo que é dominante. Os mídias só produzem o Hip Hop que é de acordo com a ideologia dominante [...] O Hip Hop que não publicita a ideologia dominante, se contrapõe a ela, que se opõe a ela, não é objeto das mídias”. Essa mídia a qual se refere o rapper, do nosso ponto de vista, é a denominada mídia de massa, por acreditarmos que esse tipo de mídia é a que dá mais visibilidade a certas tendências que, muitas vezes, são projetadas para fazer sucesso em larga escala e que, de alguma maneira, “ditam” padrões de estética do corpo (vestuário, beleza, corpo sarado, e outras formas), de propagação de ideias, entre outros.

A partir dessa conversa com Chullage, pudemos entender um pouco mais do tipo de trabalho que o rapper realiza, em Portugal, por meio de seu ponto de vista, de sua criticidade e de seus questionamentos. Assim, a relevância dessa entrevista para o nosso trabalho está no fato de Chullage nos mostrar uma das muitas faces da cena do rap português: a dos descendentes de africanos em processo diaspórico. Essa perspectiva, então, ajuda-nos a compreender uma parcela do trabalho realizado no/com o rap, em Portugal, e que também integra esta pesquisa.