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No entremeio das relações de poder e do dialogismo: o sujeito e

3 Dialogismo e Relações de poder: teorias e análises

3.1 Entre a arte e a vida: discussões teóricas

3.1.2 No entremeio das relações de poder e do dialogismo: o sujeito e

Discorreremos, nesta seção, sobre conceitos nos quais o sujeito imerso em relações dialógicas e de poder orquestra – e é orquestrado – por muitas vozes em que reflete e refrata realidades concretas.

Iniciemos com as três peculiaridades constitutivas do enunciado, apontadas ao final da seção anterior. No rap “Contraste Social”, de MV Bill, o título já indicia o que vai ser mostrado na canção: dois lados antagônicos, o cotidiano de quem vive na favela e o de quem mora no asfalto, nos condomínios. Nesse rap podem ser observados:

i) os diferentes interlocutores (destacados no fragmento), que são referenciados de forma (in)direta, já que, de alguma maneira, ao falar deles, o locutor também direciona seu discurso a eles (“Eu quero denunciar o contraste social / Enquanto o rico vive bem, o povo pobre vive mal [...] / Estouraram uma boca de fumo, o traficante é preso / Para a alegria da polícia o traficante é preto [...]”);

ii) o acabamento temporário da canção, no qual se nota que o locutor finaliza suas ideias em relação ao contraste social, num diálogo também com a época da escravidão (no uso de “chibatada” e “tronco”), com outros interlocutores (perceptível no emprego de pronomes, como o “você” que também está implícito nas formas verbais imperativas), e consigo mesmo ao se incluir por meio da expressão “a gente” (“[...] Chibatada que a gente levava no tronco não cicatrizou / Se você não se ligou / Se liga / então, nada mudou / Se na

sua cabeça, eu estou equivocado / Desça da cobertura e passe aperto

do meu lado”);

iii) a forma como o locutor, revezando-se na 1ª pessoa do singular e do plural, se relaciona com o enunciado e outros participantes, sejam estes o próprio enunciado ou os interlocutores e isso se liga aos outros dois primeiros aspectos (“[...] Num país onde o dinheiro domina / Família faz da praça a sua morada / A política é movida através de propina / Um inocente é condenado sem ter feito nada [...] / E assim vamos fazendo o que diz a bandeira / Ordem e progresso no país de terceiro mundo / Não queremos ser tratados de qualquer maneira / Como se todos na favela fossem vagabundos [...]”).

A base da canção se harmoniza com a letra, pois logo no início ouvem-se sons de trovoada e depois de chuva, com o que parece ser um sino tocando ao fundo para, do

nosso ponto de vista, chamar a atenção do interlocutor para o que o locutor vai dizer, como já indicia na preleção: “Rio de Janeiro: morro e asfalto / Favela e condomínio: contraste social”. O som de sino percute e está presente ao longo do rap, anunciando, tal qual na tradição oral antiga, os comunicados e, no caso da canção, as causas e as consequências do contraste social.

Assim, as situações apresentadas, bem como os diferentes interlocutores e a mensagem direcionada a esses interlocutores fazem emergir várias vozes. E isso é reforçado no refrão: “Contraste social, o povo pobre é que vive mal / Eles querem negão dentro da prisão”. Essas vozes revelam dois lados antagônicos, a princípio, mas que refletem e refratam uma realidade concreta, permeada pela movimentação das relações de poder: a divisão social e econômica de classes.

Nesse tipo de relação, sobre os antagonismos sociais e entre classes, que se materializa entre pessoas, observa-se a operacionalização do poder, tendo em vista que este “[...] designa relações entre „parceiros‟ (entendendo-se por isto não um sistema de jogo, mas apenas [...] um conjunto de ações que se induzem e se respondem umas às outras)” (FOUCAULT, 1995, P. 240). Nesse processo que é de reflexão e de refração de uns com os outros, um dos pilares teóricos dos estudos do Círculo de Bakhtin, o dialogismo, pode ser trazido para a discussão, pois nas relações de poder evidenciam-se também relações dialógicas. Esse conceito bakhtiniano pode ser assim delineado:

Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos (BAKHTIN, 2003, p. 294-295).

Esse conceito bakhtiniano sobre dialogismo se relaciona a uma posição ativa34 por parte do sujeito em seu diálogo com as palavras dos outros, tendo em vista que o homem não é um Adão mítico só relacionado a objetos ainda não nomeados (BAKHTIN, 2003, 2010b). Por isso a imersão nessas palavras dos outros não é atrelada à passividade, já que o falante assimila, reelabora e reacentua. Em outras palavras, mesmo que, em um enunciado, se percebam traços que dialoguem com um enunciado anterior ao que está sendo dito, o atual será uma resposta a esse enunciado precedente

34 Destaca-se que ativo precisa ser entendido não como quem detém o controle sobre os sentidos, mas

como aquele que oferece uma resposta ao ser interpelado. Não se trata, portanto, de se colocar para além do poder, mas de, ao se estar inserido nas relações, tornar-se também um lugar de resistência e de refração.

ou uma antecipação de um enunciado futuro. Esse novo enunciado caracteriza-se também por ser irrepetível, pois o falante/ouvinte atribui o seu tom valorativo a essa nova entonação, endossando tanto a unicidade e a particularidade como também a pluralidade do que está sendo proferido, tal qual acontece na narrativa de muitos raps, como é o caso de “Contraste social” em que resistência, conscientização e respostas são depreendidas e caracterizam a unicidade do enunciado. Assim, cada enunciado – na cadeia enunciativa que caracteriza o rap – se vincula a outros enunciados, retomando e singularizando o já-dito.

Desse modo, é possível fazer um cotejo com o exercício do poder, já que este não é um fato no seu estado bruto, nem um dado institucional, muito menos uma estrutura que se mantém ou se quebra, uma vez que “[...] ele se elabora, se transforma, se organiza, se dota de procedimentos mais ou menos ajustados” (FOUCAULT, 1995, p. 247), pois é um modo de ação de uns sobre os outros. Nesse movimento, o poder se renova e vai se constituindo, tendo a liberdade como condição de sua existência, de acordo com Foucault (1995). Assim, o poder é exercido sobre “sujeitos livres”, porque pessoas privadas de sua liberdade, como na condição de escravo, não teriam condições de se manifestar, expressar sua opinião, se deslocar, enfim, ter liberdade para exercer seus direitos e deveres. É nesse sentido que

[...] o poder não é da ordem do consentimento; ele não é, em si mesmo, renúncia a uma liberdade, transferência de direito, poder de todos e de cada um delegado a alguns (o que não impede que o consentimento possa ser uma condição para que a relação de poder exista e se mantenha); a relação de poder pode ser o efeito de um consentimento anterior ou permanente; ela não é, em sua própria natureza, a manifestação de um consenso (FOUCAULT, 1995, p. 243).

Como se nota, as relações de poder são exercidas por sujeitos, mesmo com as diferenças apontadas entre os teóricos sobre a concepção de sujeito, que estão em interação uns com os outros na sociedade. Essa interação implica que os sujeitos respondem e são responsáveis35, com cada um fazendo e dizendo o que pode e deve dizer, tendo, contudo, liberdade relativa para fazê-lo, já que não se pode dizer e se fazer o que se quer, considerando-se que esses sujeitos se expressam por meio, por exemplo, de gêneros discursivos os quais possuem características que lhe são peculiares, além de

35 Essa responsabilidade deve ser entendida à luz do ato concreto, singular, portanto, único, sem álibi,

visto que “[...] ser realmente na vida significa agir, é ser não indiferente ao todo na sua singularidade” (BAKHTIN, 2010c, p 99).

estarem inseridos em contextos históricos, culturais e sociais que, de alguma maneira, relativizam projetos de dizer. Dessa forma, as restrições aos projetos discursivos dos rappers são impostas pelo gênero, pela esfera sócio-ideológica e pelos interlocutores, todos inscritos em uma dada historicidade.

Essa liberdade relativa dos sujeitos em relação ao seu projeto de dizer é exposta, por exemplo, quando Bakhtin (2003) discorre acerca da testemunha e do juiz. O teórico utiliza esses dois papéis que as pessoas podem representar e as caracterizam em determinada situação, a de estarem em um tribunal, fato que lhes confere o papel que, nesse momento, têm na sociedade: a testemunha que é a de depor a favor ou contra um réu; e o juiz que é o de conferir uma sentença a partir das provas e dos autos do processo. Como se nota, é o outro quem diz o que o “eu” é, visto que: “Tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha mãe, etc.), com a sua entonação, em sua tonalidade valorativo-emocional” (BAKHTIN, 2003, p. 373).

Como a interação social e verbal é que constitui as relações entre os sujeitos, as categorias apontadas pelo Círculo de Bakhtin não podem ser estudadas separadamente, já que elas não são dicotômicas, mas se relacionam, pois não há dialogismo sem atitude responsivo-ativa e vice-versa. É assim que

[...] cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva. Essas reações têm diferentes formas: os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado; podem ser introduzidas somente palavras isoladas ou orações que, neste caso, figurem como representantes de enunciados plenos, e além disso enunciados plenos e palavras isoladas podem conservar a sua expressão alheia mas não podem ser reacentuados (em termos de ironia, de indignação, reverência, etc.); os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilação; podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido, podemos pressupô-los em silêncio, a atitude responsiva pode refletir-se

somente na expressão do próprio discurso – na seleção de recursos

linguísticos e entonações, determinada não pelo objeto do próprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto. Este caso é típico e importante: muito amiúde a expressão do nosso enunciado é determinada não só – e vez por outra não tanto – pelo conteúdo semântico-objetal desse enunciado mas também pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema, aos quais responderemos, com os quais polemizamos; através deles se determina também o destaque dado a determinados elementos, as repetições e a escolha de expressões mais duras (ou, ao contrário, mais brandas); determina-se também o tom (BAKHTIN, 2003, p. 297).

Como se observa, essa resposta aos enunciados pode acontecer de maneiras variadas, devido à dinamicidade das relações entre os sujeitos e por ser a palavra uma

arena de luta, na qual os sujeitos podem concordar ou discordar, pois dar uma resposta não significa estar em consonância ou dissonância com A ou B; e nem a existência de um apoio coral a tudo que é dito, mas também “Não estamos querendo dizer com isso que as relações se caracterizam só por antagonismos, mas estes são uma das possibilidades das relações, já que dizer como nós tocaremos o outro e este nos tocará pode suscitar um mar de respostas” (MOREIRA, 2014a, p. 67).

O mesmo acontece nas relações de poder, uma vez que elas se manifestam em várias instâncias, pois são relações, como mencionadas por Foucault (2004, p. 266), que se estendem entre os indivíduos e extrapolam a dimensão político-partidária ou institucional, pois “[...] há todo um conjunto de relações de poder que podem ser exercidas entre indivíduos, no seio de uma família, em uma relação pedagógica, no corpo político”. Em outras palavras, relações de poder que se realizam também em nível microfísico. Assim, como as relações de poder são exercidas pelas pessoas umas com/sobre as outras nos meios nos quais estão inseridas, isso evidencia que, do nosso ponto de vista, há dialogismo e responsividade também na circulação do poder. As relações dialógicas, para além de relações semânticas, são, sobretudo, relações de poder, de confronto entre sentidos, interpretações, formas de ver e de estar no mundo.

No rap “Atitude errada”, de MV Bill, percebe-se a responsividade do locutor (num duplo: eu/nós) para com seus interlocutores (representados pelo pronome “vocês”), solicitando destes também uma resposta: a de que tenham uma atitude ativa e altiva para com os outros e para com os seus. Nisso também podemos observar relações de poder que se estabelecem no nível microfísico, no cotidiano entre os pares: “Vocês parando pra pensar botando a cabeça no lugar / Pedindo a Deus para nos ajudar / Sem armas, unidos, sem violência entre nós / Vamos ter a certeza que na luta não estamos sós”.

O refrão, cantado a duas vozes, com os dois primeiros versos cantados por uma voz levemente desfigurada, sendo que uma dessas vozes carrega o timbre grave da voz do rapper, ecoa a diretividade e a chamada de atenção aos “manos”36. Assim, solicita-se

36A palavra “mano”, equivalente a “irmão”, é comumente usada, numa situação corriqueira, por pessoas

do sexo masculino, na faixa etária entre 15 e 35 anos, principalmente, quando se dirigem a um outro homem, cumprimentando-o ou simplesmente interpelando-o, o que pode ser ouvido, geralmente, na cidade de São Paulo e até mesmo no interior, como em São Carlos. Mas isso mereceria um estudo mais aprofundado e detalhado no âmbito dos estudos linguísticos, como da Sociolinguística, para se confirmar tal hipótese para além da oitiva casual das ruas. Talvez seja por isso que tal palavra seja usual também em raps.

uma atitude mais positiva por parte desses “manos” e, consequentemente, a “atitude errada” não é bem vista: “Para os manos daqui / Para os manos de lá / M.V.BILL mandando fechado pode acreditar / Para os manos daqui / Para os manos de lá / Atitude errada / Isso tem que mudar”. Os dêiticos de localização “daqui” e “lá” mostram-nos também a relação de proximidade e de pertencimento que o locutor tem para com o local e para com aqueles que são considerados como seus “manos” e espacializam as relações de poder, pois, de alguma forma, demarcam fronteiras de divisão, como a social.

Nesse rap, há uma segunda parte cantada de forma mais rápida, talvez para dar a impressão de que é preciso estar e ser mais ligeiro nas atitudes a serem tomadas na vida. Além disso, é reforçado o que, de fato, o “mano” deve perceber: que é manipulado por quem está no denominado poder hegemônico. Os versos abaixo ratificam o que acabamos de mencionar, como os de 3 a 5, que são um misto de relações de poder no nível micro e macro, já que são respostas ao verso 2, cujo foco é no poder do sistema por meio das armas e, consequentemente, na forma como esse sistema operacionaliza seu potencial de destruição tanto física quanto mental, já que parece conseguir forjar situações e faz as pessoas aderirem ao que se “pensa”. Assim, pelo que se nota, é preciso uma reação coletiva a essa palavra de outrem, como se depreende nos dois últimos versos, sobretudo no nível local, na CDD (Comunidade Cidade de Deus):

[...]

A vida é um jogo marcado e a gente só tá no primeiro ato O sistema dá as armas para a nossa destruição

Não faça o jogo deles, não seja o mais bobão A cair nessa ilusão de brigar com seu irmão É preciso união e não sangue no chão Brigar não vale a pena seja qual for o motivo Inveja, mulher, valentia só te faz arrumar inimigo Se liga na fita se liga no papo se liga na CDD M.V.BILL mandando um papo reto pra você [...]

O locutor, uma espécie de voz conscientizadora e resistente, ratifica a ideia de que não se pode entrar no jogo do sistema, mas a de que é preciso reverter esse jogo, informando-se, e não se deixando manipular:

[...]

O problema da comunidade é a falta de informação Sem referência larga a escola, cabeça virada vira ladrão Droga confunde a cabeça, você não tem dinheiro então Rouba,

M.V.BILL sangue bom vindo diretamente da favela Pra dar um toque na rapaziada

Que violência entre nós não nos leva a nada Somente andar pra trás, somente regredir [...]

Nesse fragmento, o dado (falta de informação, por exemplo) e o novo (como reagir ao sistema) é uma relação que se estabelece via dialogismo, uma vez que o dado e o criado num mesmo enunciado são o reflexo e a refração da palavra que, enquanto palavra do outro, pode se transformar em minha palavra alheia própria, tendo como base o fato de que alguma coisa é criada a partir de algo dado (BAKHTIN, 2003), mas que é sempre reacentuada pelos falantes/ouvintes.

Foucault (2014, p. 21, grifos do autor), por sua vez, também faz menção a esse universo do já dito dos discursos, sobretudo religiosos, jurídicos, literários e científicos, com sua regularidade, sua dispersão, mas também, para nós, sua reelaboração:

Em suma, pode-se supor que há, muito regularmente nas sociedades, uma espécie de desnivelamento entre os discursos: os discursos que “se dizem” no correr dos dias e das trocas, e que passam com o ato mesmo que os pronunciou; e os discursos que estão na origem de certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, ficam ditos, e estão ainda por dizer.

Ainda sobre a manifestação das palavras do outro, elas carregam uma carga ideológica, uma vez que

[...] a palavra, por sua própria natureza intrínseca, é desde o início um fenômeno puramente ideológico. Toda realidade objetiva da palavra consiste exclusivamente na sua destinação de ser um signo. Na palavra não existe nada que seja indiferentemente a esta destinação e que não tenha sido por ela gerado (VOLOCHÍNOV, 2013, p.193, grifos do autor).

No rap “Inconstitucionalissimamente”, também de MV Bill, pode-se perceber o caráter ideológico do discurso do outro introduzido num novo enunciado: o título do rap, de alguma maneira, se relaciona à Constituição Federal Brasileira, no sentido que aborda aquilo que não estaria de acordo com o que versa a Carta Magna sobre direitos e deveres dos brasileiros. Assim, o locutor dirige-se a um interlocutor genérico, focando a falta de representatividade e as consequências disso para a população: “Olha quanta gente / Quem sofre com o castigo é inocente / Quem te representa é incompetente / Ou influente / Honestidade tá ausente [...] / A prática mostra quem é quem diariamente / Quem é que se vende / Quem quebra a corrente”.

O locutor também critica a si e aos seus já que usa a expressão “a gente” e também a primeira pessoa do plural, o “nós”, ao se referir à mobilização contra o racismo que acontece só uma vez por ano, além de abordar o comodismo que se relaciona à possível aceitação do status quo: “Não entendo como a gente é dependente / Só temos ação contra o racismo anualmente / Aceitamos facilmente ser carente / Fica acomodado esperando o bote da serpente [...]”.

Em um tom irônico, relaciona “Marcelo Caron”, que pode ser uma metáfora do poder, enquanto sistema, a um presente de “serpente”. O médico foi acusado de assassinato após ocorrerem mortes de suas pacientes, em cirurgias plásticas, nos anos 2000: “Fica acomodado esperando o bote da serpente / Quem sabe ela também lhe dê presente / Marcelo Caron com bisturi e você como paciente”.

O discurso citado é reelaborado e reacentuado, de acordo com o contexto no qual o locutor se propõe a narrar/cantar, tendo como base, do nosso ponto de vista, o que o Círculo vai abordar sobre a transmissão do discurso de outrem se relacionar a uma terceira pessoa: no caso do rap, os diferentes interlocutores a quem é dirigida a mensagem.

Nesse sentido,

[...] a transmissão leva em conta uma terceira pessoa – a pessoa a quem estão sendo transmitidas as enunciações citadas. Essa orientação para uma terceira pessoa é de primordial importância: ela reforça a influência das forças sociais organizadas sobre o modo de apreensão do discurso (BAKHTIN, VOLOCHÍNOV, 1995, p. 146).

Por fim, o locutor vai reforçar a ideia de que é um porta-voz e um possível exemplo a ser seguido (como no primeiro verso), embora não termine o último verso, que é cantado por uma voz desfigurada, o que sugere que a completude fique a critério do leitor/ouvinte da canção: “Reluzente, do rap um expoente / Amigo não é parente / Disposição suficiente / Se não tiver botando fé experimente / Defendo minha conduta como Deus defende um ...”.

Nisso se observa o exercício do poder, no nível do contexto mais imediato do locutor, quando sugere ser um exemplo e o de falar em nome de alguém, que é uma forma de construção de um lugar de poder: o de assumir, hierarquicamente, uma posição de representante diante daqueles que aconselha, por ser um dos que vivenciam as situações retratadas, mas que se dispõe a falar e não se calar diante do que vê. A operacionalização do poder ocorre também no nível macro, ao se fazer um paralelo