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3 Dialogismo e Relações de poder: teorias e análises

3.2 Autoria: em busca da palavra outra

3.2.1 A visão de Bakhtin sobre autoria

Como mencionamos em páginas anteriores, o processo de autoria, nos estudos bakhtinianos, será vislumbrado por meio da relação autor-criador, elemento da obra, e autor-pessoa, elemento ético e social da vida, ou melhor, a pessoa real que escreve um rap, por exemplo.

Dessa forma, aspectos ligados ao autor-pessoa e ao autor-criador, no diálogo com a obra, tais como a polifonia, a construção da personagem numa autobiografia e na biografia, bem como a coerência textual e a relação dos outros engendrados na tessitura da obra serão postos em foco, com o cotejo de raps em que esses aspectos destacam-se e por meio dos quais o processo de autoria pode ser observado em sua materialização.

A relação autor-pessoa e autor-criador pode ser assim delineada: “Pode-se dizer que, por meio da palavra, o artista trabalha o mundo, para o que a palavra deve ser superada por via imanente como palavra, deve tornar-se expressão do mundo dos outros

e expressão da relação do autor com esse mundo” (BAKHTIN, 2003, p. 180). Como se percebe, é uma relação em que há diálogo, não contrastes e/ou antagonismos, sendo que não se pode confundir o papel de um ou de outro no contexto de criação de uma obra, uma vez que “A procura da própria palavra pelo autor é, basicamente, procura do gênero e do estilo, procura da posição de autor” (BAKHTIN, 2003, p. 385).

Essa procura da posição de autor, numa relação de alteridade para com a obra criada, que se daria por meio da constituição do gênero e do estilo, se deve ao fato de o gênero, como mencionado, conter o estilo, além de tema e estrutura composicional, sendo relativamente estável devido à esfera social de comunicação discursiva na qual os interlocutores estão imersos. Em outras palavras, o gênero possibilita a emergência do autor, na medida em que organiza a vontade discursiva deste, pois é o autor que mergulha no gênero, embora o trabalho estético de criação de um autor também possibilite a incorporação de outros elementos e contribua também com a relatividade de determinado gênero ou para uma intercalação de gêneros. Isso ratifica a relação entre mundo da vida e mundo da arte, por meio, respectivamente, do autor-pessoa e do autor- criador.

Assim, será que procurar uma posição enquanto autor também não poderia ser procurar a busca por ser fundador de uma discursividade, se se levar em conta a produção, a circulação e a recepção e suas condições de emergência e de estabelecimento de dizeres? Se se pensar na diferença de abordagem entre Bakhtin e Foucault sobre a concepção de sujeito, poderíamos responder que não; mas se se levar em conta que ambos, cada um a sua maneira, estão querendo estabelecer critérios e meios de emergência de uma figura central, na organização de determinados discursos, no caso o autor de determinado conjunto de obras, poderíamos dizer que sim. Sobre o trabalho de Foucault e o que propunha sobre fundador de discursividade e função-autor já explicitamos, em páginas anteriores. Então, de que forma raps, que já tem uma historicidade na qual se inserem os rappers, se inscrevem nesse modo de discursivização, tornando o discurso alheio em próprio? Responderemos a tal questão em páginas subsequentes.

Bakhtin, por sua vez, em Problemas da poética de Dostoiévski (2008), aborda o romance polifônico, suas várias vozes, e seu contexto de emergência, em obras de Fiódor Mikhailovith Dostoiévski. Não seria também Dostoiévski um fundador de discursividade, o do romance polifônico? Se considerarmos que se estabeleceram

condições de uma dada verdade sobre a obra do escritor russo, a de ser uma obra polifônica, diremos que sim. Nesse sentido,

[...] podemos ver no conceito de polifonia a máxima do pensamento dialógico. Um lugar onde não há o silenciamento de nenhuma voz. Onde o autor não se comporta como o dono da palavra, mas sim como um regente habilidoso que organiza personagens, consciências, que falam por si, em um projeto de dizer maior: o do próprio romance como obra artística inacabada [...] (PAULO, MOREIRA, 2012, p. 55).

Corroborando com o que acabamos de mencionar sobre a polifonia, outros estudiosos partilham da relevância desse trabalho de Bakhtin, tais como Fiorin (2008), Bezerra (2008), Brait (2009) e Melo (2013), e que se relaciona também ao processo de autoria. Melo (2013, p. 139), por exemplo, relata que “No pensamento bakhtiniano, não compreendemos autor separadamente de personagem. Precisamos, dessa forma, perceber a relação que há entre eles e compreendê-los na relação entre si e na relação com o todo da narrativa”.

Assim, a figura do autor é, para Bakhtin, o responsável por dar acabamento à obra como um todo e dos elementos que compõem essa obra. Um dos elementos que faz parte da obra é a personagem que não pode ser confundida com a figura do autor, uma vez que ocupam papéis distintos na tessitura da obra e se, por vezes, o autor coloca suas ideias, teórica ou ética (política, social), nos lábios das personagens é com o intuito de convencer quanto a sua veracidade ou a fim de propagá-las, mas, nesse caso, não se estaria diante de um princípio, esteticamente, produtivo do tratamento da personagem (BAKHTIN, 2003). Para explicar essa situação, Bakhtin (2003, p. 8-9) sustenta que

[...] nesse caso, porém, afora a vontade e a consciência do autor, costuma haver uma reformulação do pensamento para que corresponda ao conjunto da personagem, não à unidade teórica da sua visão de mundo mas ao conjunto da sua personalidade, no qual, ao lado da imagem física externa, das maneiras, das circunstâncias vitais da visão de mundo totalmente determinadas, existe apenas um elemento, ou seja, em vez da fundamentação e da persuasão ocorre o que denominamos encarnação no sentido ao ser.

Como se nota, ocorre a reelaboração da visão do autor a fim de adequá-la ao que se propõe no tratamento estético de construção da personagem e não se pode confundir o que é voz da personagem e o que é a regência do autor. Trata-se, portanto, de tornar algo verossímil. Esse acabamento estético só é possível, pois o autor ocupa uma

posição de distanciamento, que é de tensão, em relação a todos os elementos da personagem, a saber, de espaço, de tempo, de valores e de sentidos.

A esse distanciamento, como já destacado em páginas anteriores, dá-se o nome de excedente de visão e ele se baseia no fato de que, quando o eu contempla no todo um homem situado fora e diante dele, os horizontes concretos desse eu e desse outro, de um nós, de fato vivenciáveis, não coincidem (BAKHTIN, 2003). Em outras palavras, o eu contemplador sempre saberá e verá algo que o outro, de sua posição fora e diante do eu, não pode saber nem observar, como certas partes do corpo, gestos, expressões e toda uma série de ações e acontecimentos que são inacessíveis ao olhar deste outro, mas acessíveis ao eu perante a esse outro. É nesse sentido que há, na atividade estética, a relação entre compenetração e acabamento: a primeira se relaciona ao eu que se coloca no lugar do outro, de forma a coincidir com esse outro, vivenciando e se inteirando do que o outro vive; a segunda, que completa a primeira, refere-se a quando o eu retorna a si mesmo, e de fora do lugar da outra pessoa, e dá enformamento e acabamento ao que compenetra, por exemplo, o sofrimento, a alegria, a tristeza desse outro (BAKHTIN, 2003).

É por isso que a relação entre autor e personagem é de diálogo, de compenetração e de acabamento, visto que “O autor vivencia a vida da personagem em categorias axiológicas inteiramente diversas daquelas em que vivencia sua própria vida e a vida de outras pessoas – que com ele participam do acontecimento ético aberto e singular da existência [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 13).

Mas, nessa relação, o autor deve tornar-se outro em relação a si mesmo, olhando-se com os olhos dos outros. Mesmo fazendo esse exercício de reflexão e de refracção e se conseguíssemos abarcar o todo da nossa consciência concluída no outro, esse todo não poderia nos dominar e nos concluir a nós mesmos, uma vez que escamoteamos isso e, ao olharmos para nós mesmos com os olhos dos outros, sempre tornamos a nos voltar para nós mesmos, na vida, e o acontecimento, espécie de resumo, seria realizado em nós nas categorias da nossa própria vida (BAKHTIN, 2003).

Mas alguns questionamentos poderiam ser feitos: E quando se trata de uma obra autobiográfica? Será que vida, ligada ao autor-pessoa, e arte, representada pelo autor- criador, se coincidem, nesse caso?

Bakhtin (2003) destaca que, quando o autor se apossa da personagem, ocorrem duas situações: a personagem não é autobiográfica, pois o reflexo do autor, inserido na

personagem, de fato a conclui, característica de um pseudoclassicismo; quando a personagem é autobiográfica e tendo assimilado o reflexo concludente do autor, ela faz da resposta formadora total um momento de autovivenciamento e a supera, sendo, dessa forma, inacabada, infinita para o autor e característica do romantismo.

Assim, cabe destacar o papel da biografia e da autobiografia e como se portam as personagens nessas obras, uma vez que esses tipos de narrativa também aparecem em raps, pois ambas tratam de descrições de vidas, seja de outrem, seja do próprio eu.

Na autobiografia, de acordo com Bakhtin (2003), a concomitância entre autor e personagem é contradictio in adjecto, pois o autor é elemento do todo artístico e, como tal, não poderia coincidir, nesse todo, com a personagem, que seria outro elemento seu. Mas não se pode esquecer de que “A coincidência pessoal „na vida‟ da pessoa de quem se fala com a pessoa que fala não elimina a diferença entre esses elementos no interior do todo artístico” (BAKHTIN, 2003, p. 139). Ainda segundo Bakhtin (2003), os elementos autobiográficos podem variar muito na obra, assumindo o caráter confessional, de informe prático de cunho objetivo sobre o ato (como o ato cognitivo do pensamento, ato político, prático, entre outros) ou caráter de lírica. Assim, poderá ser observado que há diferentes modos de ser autor nos raps.

O rap “Tríade nuclear”, dos Mind da Gap, pode ser considerado autobiográfico, uma vez que os locutores, a denominada “tríade nuclear”, com dois MC‟s e um DJ, contam a sua história de dificuldades e vitórias e, paralelamente, do próprio rap português, nas primeiras pessoas do singular e do plural: “Quando começamos com problemas deparamos / Não paramos, insistimos, continuamos, resistimos / Expandimos a acção, incentivamos a reacção / A tríade nuclear, Mind da Gap”. A base tem sons que lembram canções da época da disco music, harmonizando-se letra e música, e, consequentemente, passado e presente, pois o tempo verbal indica tanto uma ação passada quanto uma que está acontecendo.

Os locutores, ao abordarem sua história no rap, o fazem de forma gradativa, dos momentos iniciais e seus problemas até os anos 2000: “Meio de 93 encontro casual 2 MC's [...] / Rimas por telefone, materiais eram os dilemas / Problemas que cessaram quando chegou o Serial / Importação directa via Londres do instrumental / Somos 3 o número perfeito a conta que Deus fez [...] / Letras em inglês pra começar devagar [...] / Após concertos mal pagos, mic's emprestados / Chegam boatos de 3 gajos / realmente empenhados / Em fazer furor a representar o hip hop puro e duro”. Como se nota, os

locutores dizem quem são (três: 2 MC‟s, Presto e Ace, e um DJ, Serial); fazem menção ao divino, a Deus, mas com o intuito de exortar a eles mesmos e ao próprio trabalho, diferentemente dos raps brasileiros que, ao dialogarem com a religiosidade, buscam por ajuda e acolhida em meio aos problemas; além disso, como muitos rappers portugueses, também rimavam em inglês, inicialmente, para depois começar a cantar em português. Interessante salientar que não se dirigem, especificamente, a nenhum interlocutor, apenas contam sua história e, nesse sentido, o interlocutor presumido é aquele que vai ouvir o rap.

Desse modo, esse rap autobiográfico assume um caráter confessional, não no sentido religioso do termo, mas no aspecto de que os locutores estão comprometidos em divulgar o que os caracterizariam como imersos no contexto do Hip Hop que tem suas variadas vertentes e práticas, mas também é uma forma de resistência desses rappers em meio a uma individualização de práticas e comportamentos, por exemplo, já que se propõem a falar em nome de uma coletividade na qual estão inseridos: a do Hip Hop.

Na biografia, por sua vez, para Bakhtin (2003), o autor está mais próximo do herói, podendo os dois trocar de lugar, sendo possível a coincidência pessoal entre personagem e autor para além dos limites do todo artístico. É nesse sentido que

[...] a personagem e o narrador podem facilmente intercambiar posições: seja eu a começar narrando sobre o outro, que é íntimo, com quem vivo uma só vida axiológica na família, na nação, na sociedade humana, no mundo, ou o outro a narrar a respeito, de qualquer forma eu me entrelaço com a narração nos mesmos tons, na mesma configuração formal que ele. Sem me desvincular da vida em que as personagens são os outros e o mundo é seu ambiente, eu, narrador dessa vida, como que me identifico com as personagens dessa vida. Ao narrar sobre minha vida cujas personagens são os outros para mim, passo a passo eu me entrelaço em sua estrutura formal da vida (não sou o herói da minha vida mas tomo parte dela), coloco-me na condição de personagem, abranjo a mim mesmo com minha narração; as formas de percepção axiológica dos outros se transferem para mim onde sou solidário com eles. É assim que o narrador se torna personagem (BAKHTIN, 2003, p. 141).

Essa coincidência entre narrador e personagem pode ser vislumbrada em muitos raps pelo caráter dialogal e polifônico entre acontecimentos da esfera da vida que são, comumente, cantados/narrados nessas canções, numa incorporação de elementos da vida na arte. No rap “Capítulo 4, versículo 3”, dos Racionais MC‟s, isso pode ser observado.

Nesse rap, inicialmente, há uma preleção na qual são destacados alguns índices, à época de lançamento do CD Sobrevivendo no inferno, 1997, sobre o que acontece a

muitos jovens negros: “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial / A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras / Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros / A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo / Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente”.

As estatísticas pouco mudaram em relação à idade e à cor das vítimas, de acordo com o Mapa da Violência de 201541, que tem como base o Sistema de Informações de Mortalidade, do Ministério da Saúde (SIM/MS) e os dados de 2012: a mortalidade, entre os jovens, com um pico nos 19 anos de idade, atingiu 62,9 mortes por 100 mil jovens; as vítimas por arma de fogo eram 10.632 brancos e 28.946 negros, isso

representa 11,8 óbitos para cada 100 mil brancos e 28,5

para cada 100 mil negros. Como se constata, 142% foi o percentual de vitimização de negros, ou seja, duas vezes e meia a mais em relação ao número de brancos.

Assim, o rap, cantado na 1ª pessoa do singular, com o locutor contando situações e experiências, uma espécie de narrador-personagem, num tom profético e apocalíptico, é bem atual, mesmo sendo de 1997:

Minha palavra vale um tiro... Eu tenho muita munição Na queda ou na ascensão, minha atitude vai além E tem disposição pro mal e pro bem

[...]

Uni-duni-tê, eu tenho pra você Um rap venenoso ou uma rajada de PT E a profecia se fez como previsto 1997 depois de Cristo

A fúria negra ressuscita outra vez Racionais capítulo 4 versículo 3 [...]

Observam-se, já de início, metáforas bélicas, como no primeiro verso (palavra como tiro, além de valer como munição) e no quinto verso (rap como algo que causará impacto, por ser como “veneno”; de outro lado, tem-se também os tiros das pistolas que coexistem nas quebradas); isso faz a relação entre a preleção e o que vai ser cantado/narrado ao longo da canção. Além disso, a forte alusão a passagens da Bíblia e, consequentemente, a apropriação dessas passagens (como o trocadilho entre a ressurreição de Jesus pela da “fúria negra”, os Racionais) como se os locutores fossem

41 Essas informações foram retiradas de:

os próprios profetas (último verso) e anunciadores de uma verdade: a de que ainda há segregação e mortes de jovens negros.

Um dos fios condutores dessa narrativa cantada é a transformação do “preto tipo A” em “neguinho” devido às más influências e, como consequência, a sua aderência ao consumo de entorpecentes e daí sua decadência, enquanto exemplo que era para os demais “manos”, haja vista o uso do operador argumentativo “mas”, no quinto verso, que redireciona o discurso a aquilo que o locutor quer dar visibilidade. Notem que o pronome “você”, no segundo verso, refere-se a um interlocutor, que é tanto interno, pois há um pequeno diálogo no interior do rap, quanto externo, quem estiver escutando/lendo a canção, a fim de que este preste atenção no que vai ouvir; o “nóis”, quando o locutor se inclui na narrativa, entre os seus (verso 4); o “irmão”, no oitavo verso, quando o locutor congrega o interlocutor como alguém próximo e/ou numa alusão a algum membro de instituição religiosa, já que, na sequência, fala do poder do demônio em destruir, via consumo, numa clara polarização bíblica entre o que o bem e o mal podem oferecer:

Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fuma? [...]

Você vai terminar tipo o outro mano lá Que era um preto tipo A... ninguém tava numa [...]

Exemplo pra nóis... mó moral, mó ibope

Mas começou a colar com os branquinho do shopping [...]

Agora não oferece mais perigo Viciado, doente, fudido... inofensivo [...]

Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor Pelo rádio, jornal, revista e outdoor Te oferece dinheiro, conversa com calma Contamina seu caráter, rouba sua alma Depois te joga na merda sozinho

Transforma um preto tipo A num neguinho [...]

Esse revezamento dos pronomes pessoais caracterizaria o discurso em forma de diálogo, numa relação que é dinâmica e dialógica, aproximando o rap de textos típicos da oralidade. Além disso, o fio condutor destacado reflete e refrata as relações de poder operacionalizadas, inicialmente, nas estatísticas apresentadas e, na sequência da narração, por meio das relações antagônicas de classe e étnica, tanto entre iguais quanto entre segmentos distintos, como as vislumbradas entre o “preto tipo A” em contraste com “os branquinho do shopping”. Além disso, pode-se observar que esse fio condutor destaca que há uma luta contra formas de dominação social, haja vista o embate entre

classes, e também daquelas sobre formas de exploração, tendo em vista que se inverte o jogo em algumas situações, quando o explorado está no comando e não o explorador, embora, em muitos momentos, para exercer esse comando, o segregado pode se deixar levar pelas falácias de massificação do consumo, fazendo qualquer coisa para adquirir um bem: “Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal / Por menos de um real, minha chance era pouca / Mas se eu fosse aquele muleque de touca / Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca”.

O refrão (“Aleluia / Racionais no ar / Filha da puta, pá pá pá”) reforça o papel dos locutores como anunciadores, nem sempre de boas novas, haja vista o uso da onomatopeia “pá pá pá” que lembra sons de tiro, com o “Aleluia”, sendo cantado por aquilo que lembra um coro de igreja, além do toque de um sino após o “Aleluia”, o que indicaria a chamada de atenção para aquilo que será exortado: o caráter desigual das relações sociais, até mesmo entre os pares, que geram consequências, tais como assaltos e mortes (“Tem mano que te aponta uma pistola e fala sério / Explode sua cara por um toca-fita velho / Click plau plau plau e acabou / Sem dó e sem dor, foda-se sua cor”).

As relações desiguais não são só entre os pares, pois há também aquelas entre estratos sociais distintos, o que assevera a dicotomia entre classes pela via do consumismo e do querer algo que não se tem, mas se almeja por influência de diferentes outros, como a propaganda e “o playboy / a madame”: “É foda... Foda é assistir a propaganda e ver / Não dá pra ter aquilo pra você / Playboy forgado de brinco, um trouxa / Roubado dentro do carro na Avenida Rebouças / Correntinha das moça, as madame de bolsa / Dinheiro... não tive pai não sou herdeiro [...]”.

Não só aspectos negativos e relações dicotômicas são vislumbrados nesse rap, destacam-se: i) a valorização (versos 4 e 5: ser de família real e príncipe guerreiro; ii) estar vivo em meio às estatísticas negativas em relação à expectativa de vida de jovens negros e pobres de periferias sobretudo, versos 6 e 7 que, de alguma maneira, retomam a preleção); iii) a ratificação do locutor como profeta e anunciador (último verso); iv) além de servir de exemplo e contar com a adesão de muitas pessoas (verso 13); v) ser