• Nenhum resultado encontrado

2 Contextualizando o Movimento Hip Hop

2.4 Vida e arte dos rappers brasileiros e portugueses

2.4.3 Mind da Gap: “a tríade”

“Tudo bem no país à beira mar plantado Até aparecer algo novo, nunca identificado Hip Hop, muitos gostaram, outros não Talvez seja por não ser de fácil compreensão Que é isto? Ninguém canta,

ninguém toca instrumentos Graffiti, Breakdance, estranhos, estranhos comportamentos [...]”

Dedicatória – Mind da Gap

A exposição que faremos sobre o grupo Mind da Gap, que tem mais de 20 anos de carreira, cuja trajetória começou em 1993, quando ainda eram os Da Wreckas e é formado por Presto, Ace e o DJ Serial, será feita a partir de entrevistas que os integrantes do grupo deram aos portais H2T, Cotonete e Ponto Alternativo26. O primeiro

site é um dos principais no segmento do rap português, os outros dois são voltados para os diferentes estilos musicais.

Quando perguntados sobre como se envolveram com o Hip Hop, pelo portal H2T, eles disseram que além da influência das batidas que acompanhavam o break, os álbuns de Public Enemy, It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back, de 1988, e 3 Feet High and Rising, de 1989, dos De La Soul, os marcaram e os prenderam a essa cultura para sempre.

Sobre não terem participado da coletânea Rapública, os Mind da Gap responderam, ao portal Cotonete, que já estavam com contrato com a gravadora NorteSul e para Ace “Os projectos que estavam envolvidos naquele disco estavam numa

26 As informações estão, respectivamente, em: ˂http://h2tuga.pt/h2tuga/mind-da-gap/˃;

˂http://cotonete.iol.pt/noticias/body.aspx?id=55760˃;

onda diferente da nossa. Nós queríamos fazer a nossa cena e acho que soaríamos um bocado deslocados do que já tinha sido gravado para o Rapública”.

Gravaram, em 1995, álbum homônimo que contou com a participação de Sweetalk (Djamal), X-Sista (Djamal) e D-Mars em "Piu-Piu-Piu" e Melo D dos Cool Hipnoise. Com o rap "Piu-Piu-Piu" conseguiram chegar ao primeiro lugar do top de ouvintes do programa Rapto de José Mariño. Nesse rap, há uma crítica debochada em relação à paralisia, à falta de perspectivas e de iniciativa de muitas pessoas em Portugal (versos 2, 8, 9, 11), excetuando-se (versos 1, 5, 12, 13), nesse contexto, muito provavelmente, pelo que se depreende, por estarem fazendo essas críticas, servindo até mesmo como exemplo (versos 3 e 13):

[...]

Eu não, eles são o que são.

E vão direitinhos, como cordeirinhos, pelos caminhos de Portugal. [...]

A inteligência é saber o que dizer n'altura certa. A altura é certa, bate à porta, a batida desperta. Não m'importa, quem atinjo, quando digo. [...]

- Piu - piu - piu o palhaço que se riu Piu - piu - piu é o palhaço que caiu [...]

- Ai, Jesus!

É o que dizem quando não sabem o que fazem. Asneiras.

Portugal está sem pessoas inteligentes ou até diferentes por isso mentes. Respeito a opinião de quem não tem a minha.

Mas, quem não tem a minha, não bate bem da pinha [...]

Os anos iniciais não foram fáceis, apesar de não terem sido tempos terríveis, como declara Ace, ao portal Cotonete, já que, segundo o rapper, “ninguém estava ligado a este estilo, o que complicava tudo à volta, desde entrevistas a concertos. As pessoas não tinham muita percepção do que éramos, nalguns concertos achavam que era tudo playback [...]”.

Em 1996, gravaram Flexogravity, pela gravadora NorteSul, um EP (Extended Play), um miniálbum, com a banda de rock, Blind Zero, uma mistura de estilos musicais, principalmente, o Hip Hop e o Rock. Em entrevista ao portal Cotonete, Presto respondeu sobre essa parceria e disse que, na época, ouviam a trilha sonora do filme do "Judgement Night" que juntava bandas de rock, entre outras, Sonic Youth, Biohazard, Slayer, com bandas de Hip Hop, como Cypress Hill, House of Pain, Run DMC. Como os dois grupos, Mind da Gap e Blind Zero, se viam constantemente nos corredores da

gravadora NorteSul, isso os levou a realizarem esse projeto de gravar um EP misturando os estilos musicais.

No ano de 1997, lançaram novo álbum, Sem Cerimónias, que teve boa receptividade. Um dos raps do CD, “O inimigo foi vencido”, foi uma resposta a uma crítica publicada em jornal de grande circulação da época, Blitz, como se observa no refrão: “O inimigo foi vencido, não mentirá nunca mais / Querem derrotar os Mind Da Gap com críticas nos jornais / Com o rap mostramos quem será sempre o mais forte / O inimigo foi vencido chegou a hora da sua morte”.

Para Presto, “Sem Cerimónias é o momento em que os Mind Da Gap estavam completamente formados e maduros, depois da primeira experiência de gravação do EP. É o disco que marca a sonoridade dos Mind Da Gap”. Outro integrante do grupo, Ace, também enaltece esse trabalho do grupo: “[...] É um disco que se pode mostrar a qualquer pessoa do mundo que goste de rap e que percebe que os beats são altamente, que os MCs têm um bom flow, que os refrões têm piada. O disco ainda hoje soa actual. Estávamos inspirados”.

Como o grupo tem uma regularidade na edição de álbuns, em 2000, lançaram A

verdade. Esse álbum contou com participações de La Família, em “Coalizion”, Mundo e

Fuse, em “Tour”, Mundo, Fuse, Maze e Expião, em “Forças de Combate”, Maze e Mundo, em “Atiradores Furtivos”, e Melo D, em “Despedidas”. Entre os raps desse CD, destacamos “Submundo” que segue a linha crítica do grupo, com destaque para o uso do prefixo “sub” e sua inversão para uma conotação positiva: “Subcave, subsolo, submundo, submarino / Subentendida a moral, subvertida neste hino / Somando soluções, subtraindo o mal nutrido / Encontramos caminhos, o submundo é o destino”.

Em 2002, lançaram Suspeitos do Costume. Esse álbum vendeu 10 mil cópias e o grupo recebeu o Disco de Prata. Na opinião de Ace, “Sem Cerimónias é o disco por excelência das mochilas. O disco que o pessoal do rap me fala é o Sem Cerimónias. Quando é pessoal exterior ao rap, o disco falado é o Suspeitos do Costume”. O álbum contou com a participação de Mundo e Coke, em “À patrão”, Mundo, Fuse, Maze, Expião, Rey, Chaz, Berna e Kron, em “Kem são?”. Esse rap conta com a participação de muitas vozes e essas, em sua maioria, cantam versos em tom provocativo, principalmente, para com seus possíveis interlocutores. Na letra, disponibilizada em sites de música, observa-se a troca do “q” pelo “k”, contudo, não podemos afirmar se essa troca foi realizada pelo grupo ou pelos fãs, já que não tivemos acesso à ficha

técnica do CD. A resposta à pergunta “Kem são?” ao mesmo tempo em que se relaciona a um interlocutor genérico também parece se referir a alguém específico, como se depreende pelos versos:

Pergunta a ti próprio (kem são?) Gajos que rokam o teu bloco (kem são?) Os mesmos do costume (kem são?) Diz-me, (kem são?), quê? (kem são?) [...]

Após quatro anos, lançaram, em 2006, Edição ilimitada. Houve divergências entre os integrantes durante o processo de gravação, e Ace relatou, ao portal Cotonete, que pensou que eles desfariam o grupo durante a gravação desse álbum. Mas eles superaram esse momento de crise e continuaram com seus trabalhos. Esse álbum contou também com a participação de Maze, entre outros, em “Quantas vezes já”. Esse rap, em alguma medida, parece dialogar com o momento conturbado no qual o grupo se encontrava, com o locutor27 da canção questionando e procurando respostas do/no seu

interlocutor28, além de chamar para si e para os outros a responsabilidade para apaziguar

a situação, ao usar a primeira pessoa do plural, nos três últimos versos: Cada acção tem uma reacção, cada escolha é uma opção particular que te guia numa dada direcção

Refrão:

Quantas vezes já Te perguntastes Qual é o teu papel? No espaço em que vives? Quantas vezes já

Te perguntastes Qual é o teu papel No tempo em que vives? [...]

o teu sucesso como mano será o reflexo do verso enquanto a decisão afecta o próximo e no processo [...] Assumes a responsabilidade do livre arbítrio

[...]

Temos que aprender a aceitar um cargo específico Vivemos pa aprender a ser humildes a esse ponto

27 Designaremos locutor(res) para a(s) voz(es) que relata(m)/canta(m) fatos e histórias nos raps e que são

marcados, discursivamente, por pronomes pessoais, possessivos e outros, geralmente, na primeira pessoa do singular e/ou na primeira pessoa do plural e formas correlatas como “a gente” ao se aderir com o interlocutor.

28

Designamos interlocutores aos outros com quem o locutor dialoga. Podem ser internos, quando citados nos raps; ou externos, quando depreendidos pelo contexto situacional dos raps.

Tanto o locutor quanto o interlocutor também serão considerados personagens, na abordagem teórica e metodológica adotada no capítulo 3.

Porque temos um papel neste espaço e neste tempo [...]

Mantendo a regularidade, em 2008, eles lançaram Matéria Prima (1997-2007), uma coletânea com os maiores sucessos do grupo, além de alguns inéditos. Esse álbum será exposto com mais detalhes na seção na qual apresentaremos as análises comparativas entre raps brasileiros e portugueses.

Em 2010, novo álbum, A essência, que contou com o sempre presente parceiro, Maze, em “A Essência”, Sara Miguel, em “Sintonia”, e Valete, em “Não pára”. Essa canção, uma espécie de rap autobiográfico, critica quem não acreditava no Hip Hop e no trabalho do grupo: “O hip hop não tá morto sou a prova disso vivo / [...] Olha / parece que o hip hop já passou de moda / aleluia / porque é um ciclo que se renova / a cultura ultrapassa / renasce com a fênix [...] / Ninguém nos pode dizer auto [...]”. Quando lançaram esse álbum, o portal H2T os entrevistou e perguntou acerca do “mal- estar social” presente em muitas letras e os Mind da Gap responderam que “A política em Portugal parece uma „filial‟ de Hollywood. E enquanto tu, quando vais ver um filme ao cinema, se não gostares do mesmo, podes sempre levantar-te e ir embora, aqui o „público‟ parece estar amarrado às cadeiras. Faz-nos pensar naquela frase de „estar à beira do abismo e dar um passo em frente‟ – todos os dias são assim no nosso jardim à beira mar plantado”. Por meio dessa declaração, nota-se, mais uma vez, a crítica do grupo ao comodismo e a falta de iniciativa que certa parcela dos portugueses parece ter.

Regresso ao futuro foi o álbum que saiu em 2012. Contou com a participação de

antigos parceiros, como o grupo Dealema, em “Sete Miras”, Sam The Kid, em “És onde quero estar”, entre outros. Como os Mind da Gap não fazem só raps que contêm críticas e questionamentos, “És onde quero estar” vai contar o que o locutor sente ao ver uma mulher por quem se interessa, com o foco no corpo desta, numa relação de sedução. O trecho que destacamos é cantado por Sam The Kid: “Já a tinha visto numa festa / Vistosa, inacessível, quis prosa, defensiva / E a minha investida era modesta [...]”.

O ano de 2013 marcou os 20 anos de carreira do grupo e eles fizeram uma série de apresentações em comemoração, bem como concederam entrevistas. Em parceria com o grupo Dealema e o DJ Slimcutz, participaram de um show, promovido pela Meo Like Music, que só era possível acessar por usuários com conta no Facebook. Esse show contou com mais de meio milhão de expectadores, via internet. Também receberam o “Prémio Carreira”, premiação concedida a artistas com mais de dez anos de

carreira, de Prémios HipHopWeb 2013. O portal HipHopWeb se autodenomina representante do Hip Hop Tuga desde 2002.

Sobre os vinte anos de carreira, em entrevista ao portal Ponto Alternativo, Ace respondeu que

[...] O rap durante a nossa história nem sempre foi um estilo aceite como é hoje, é um grande motivo de orgulho chegarmos até aqui. Mas também acho que nenhum de nós parou muito tempo para pensar nisso, é andar para a frente. Por outro lado também é um peso por vezes difícil de carregar.... O fato de os MDG estarem há mais de 20 anos em atividade mostra que o trabalho que realizam mescla resistência, parceria e resiliência, para além da aceitação ou não de sua práxis. A parceria observada se dá tanto entre os integrantes do grupo quanto entre aqueles que integram e participam de seus trabalhos. Resistência e resiliência são percebidas, principalmente, por meio das inúmeras respostas que dão através de seus raps, em que se notam persistência e continuidade, mesmo diante das adversidades enfrentadas por um aparente descrédito que esse estilo musical ainda parece ter para muitos em solo português. Assim, ao ritmo e à poesia são incorporadas vozes que viabilizam um tipo de discurso: o de se viver de um fazer ético e estético com suas palavras e contrapalavras.