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2 Contextualizando o Movimento Hip Hop

2.3 O contexto português

2.3.1 A voz dos rappers

2.3.1.2 Rapper Valete

“[...] Traz outros manos contigo e vem po batalhão Precisamos de mais tropas pa revolução.

Não quero fama nem glória Só uma t-shirt de Che Guevara”.

Serviço Público – Valete

O rapper Valete é também da comunidade de descendentes africanos, dos de São Tomé e Príncipe. Ele nos disse que em seus primeiros contatos com o rap havia um

rap mais dançável, como o de Vanila Ice, pois era o que chegava em Portugal, no início dos anos 1990. Existia, nessa época, uma cultura do breakdance, mas como era muito novo, tinha cerca de 10 anos, não absorveu muito isso.

Quando tinha 16 anos assistiu a um documentário sobre ilusionismo e achou interessante o que foi dito sobre a carta valete, passando a adotar a partir daí o nome Valete. Segundo o artista: “[...] quando a pessoa, quem faz o truque de cartas, escolhe a carta valete, o truque não dá certo, como se o valete fosse a carta do azar para os ilusionistas e eu gostei do simbolismo, que era como se o valete não se deixasse cair em truques e nem ilusões [...]”. Assim, essa postura adotada pelo rapper revela firmeza e o fato de não se deixar trapacear.

Desse modo, quando perguntado se fazia rap na perspectiva do griot africano, respondeu o seguinte: “Nessa perspectiva do griot africano: sempre inclinado a contar histórias que sejam fascinantes para as pessoas. As melhores histórias. O griot tinha essa preocupação. Os melhores griots eram aqueles que encantavam as comunidades também. Eles se preocupavam em contar bem a história – a forma –, e também escolher as melhores histórias. São coisas importantes”. Como se nota, Valete destaca a relevância que o griot tem na tradição oral africana, por isso a traz para a sua práxis com o rap.

Ainda sobre os primeiros contatos com o universo do rap, disse que, com o passar dos anos, começou a ouvir mais rap, como o de Run DMC, um rap mais tradicional, mais purista, segundo Valete. O que mudou a vida dele foi a oitiva de três álbuns: o dos Racionais MC‟s, RX Brasil; o de Gabriel O Pensador, álbum homônimo; e a compilação portuguesa Rapública. Esses álbuns o marcaram porque era a primeira vez que ele ouvia rap cantado em português, chegando a escutá-los umas dez vezes por dia. Contudo, por volta de 1994/95, passou a ouvir mais Hip Hop americano, muito ligado ao crime, pois era o que mais chegava em Portugal, embora se identificasse mais com o rap cantado em português.

Valete explicou que gostava do trabalho dos Racionais, pois eles conseguiam pôr nas letras as favelas brasileiras. Ouvia, por exemplo, “O homem na estrada”, e conseguia visualizar toda a narrativa. Os raps do grupo, para Valete, “eram fotografias rimadas”, já que “eles conseguiam mesmo criar um ambiente todo visual só através da música”.

A sua preferência por Gabriel O Pensador estava no fato de nas letras de raps haver uma questão de consciência educativa, uma moral/mensagem. E, dessa maneira, o brasileiro falava de temas com os quais Valete se identificava, como no rap “Racismo é burrice”, que se relacionava, de alguma forma, com o que os negros portugueses vivenciavam. Para Valete: “Ele era da classe média, mas não era um burguês a rimar”. Havia muitos seguidores do Pensador, em Portugal, mas a partir do 3° álbum, quando ele começou a ficar mais pop/festivo, houve desilusão com o trabalho do rapper brasileiro, segundo Valete.

Essa identificação do rapper português com o trabalho dos brasileiros se baseava no fato de a escrita de Gabriel O Pensador, por exemplo, seguir uma linha denominada por Valete de rap mais educativo, já que gostava da escrita, da escolha de palavras, da poesia, de ver a pertinência nas letras, do fato de se passar uma mensagem para as pessoas no trabalho realizado pelo rapper brasileiro, de acordo com Valete. Por outro lado, nos raps produzidos pelos Racionais, apreciava como o grupo contava a história, pois era possível até fazer um filme a partir das letras, tais como de “O homem na estrada”, o que o levou a denominar de “rap cinematográfico” o trabalho realizado pelos Racionais. Valete, pelo que se observa, em relação ao trabalho dos rappers brasileiros, gosta do rap cinematográfico, dos Racionais, e do rap educativo, do Pensador, porque, para o artista, “tudo é arte”.

No entanto, desligou-se do rap brasileiro, ainda na década de 1990, pois não dava para acompanhar, segundo Valete, o trabalho dos Racionais, por exemplo, já que lançavam álbuns com intervalos longos, atrelado ao fato de o rap luso começar a ganhar força, sobretudo, a partir de 1997, embora sem edições (sem lançamentos de CDs). Nessa época, DJs convidavam rappers para rimar em casas de festa e/ou em bares.

Nessa época também, Valete começou a escrever suas primeiras rimas. Ele nos contou que ia para a casa de Sam The Kid, outro nome de destaque no rap Tuga (que trabalha atualmente com a banda Orelha Negra), para fazer rimas/raps. Eles levaram uma fita cassete (fita demo) que haviam produzido para o DJ Bomberjack. Este gostou do trabalho de Valete e o chamou para participar de mixtapes com ele e com o DJ Cruzfader. E foi assim que Valete começou a sua história no rap. E de lá pra cá, não parou mais. Lançou seu primeiro álbum, em 2002, Educação Visual, que teve boa aceitação por parte do público, o que deu ânimo para ele continuar com seu trabalho, culminando com novo lançamento, em 2006, Serviço Público. Este álbum chegou com

força total em Angola e Moçambique, segundo Valete, visto que o rap produzido pela comunidade de descendentes de africanos, em Portugal, é bem aceito na África. Depois desse novo lançamento, Valete começou a se profissionalizar e, a partir de 2011, ele disse que passou a trabalhar apenas com rap, realizando shows, fazendo participação em

raps de outros rappers, como os Mind da Gap, o rapper Regula, Boss AC, entre outros,

e vendendo seus CDs.

Em 2014, fez sua primeira apresentação no Brasil, participando da Semana do

Hip Hop de São Paulo, que tinha como tema “Resistência Negra e Periférica – Das ruas

para a cultura em movimento”20, evento promovido pela Prefeitura de São Paulo, entre os dias 15 e 22 de março em vários pontos da cidade. Para o segundo semestre de 2016, existe a previsão de lançamento de um álbum, por uma grande gravadora, que reunirá o trabalho em conjunto de quatro rappers, dois portugueses e dois brasileiros, respectivamente21: Valete e Capicua; Emicida e Rael.

Sobre o cenário do rap, em Portugal, mesmo com alguns rappers se destacando, muitas gravadoras, segundo Valete, não apostavam no rap português por várias razões, porque era uma coisa nova e nunca tinham trabalhado com rap e pelo fato de alguns

rappers serem muito informais, dizerem asneiras nos raps e/ou falarem de coisas

incômodas. Tudo isso dificultava a divulgação do rap lusitano, principalmente, em rádios, porque estas, de uma maneira geral, eram e são muito formais e não se pode dizer asneiras e/ou falar certas coisas, de acordo com Valete. Assim, muitos rappers lançavam seus trabalhos por gravadoras independentes.

Destacamos também a diferença apontada por Valete entre o rap produzido pelos descendentes de africanos e o feito pelos portugueses (europeus). Segundo o

rapper, o primeiro é mais combativo, talvez seja por isso que os africanos se

identifiquem, já que o africano é muito atento à comunicação, pois tem que saber o que se está dizendo, havendo uma preocupação maior com o conteúdo e não com a forma. Grupos como Racionais MC‟s têm muita força na África e com os descendentes de africanos, em Portugal, pelas razões já apontadas por Valete em relação ao trabalho com a letra do rap. Já o europeu/português tem “uma ligação maior com o abstracionismo, com a poesia, com a coisa mais divagante”. Assim, para Valete, o rap europeu é mais

20 As informações estão disponíveis em:

˂http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/noticias/?p=14580˃. Acesso em: 6 mar. 2014.

21 As informações estão disponíveis em: ˂https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/super-grupo-hip-

preocupado com a forma e o africano mais com o conteúdo. O rapper ressaltou, no entanto, que há exceções e não se pode generalizar sobre o que mencionou tanto em solo português quanto africano.

Dessa forma, quando foi perguntado se a música era uma forma de fazer com que os africanos conhecessem a realidade da comunidade negra de Portugal, de Lisboa, e se a música era didática nesse sentido, ele nos respondeu: “Sem dúvida. Sem dúvida nenhuma. Tem essa capacidade retratista”, pois “eles ao ouvirem esses raps feitos por nós, eles também se identificam porque há cá algumas coisas que eles também vivem, também existem em Moçambique, em Angola etc [...]”. E acrescenta: “Nosso rap aqui também é muito classista; fala muito de uma classe a combater outra; eles identificam- se com uma coisa de luta/de resistência; eles identificam-se muito com esse discurso; Há sempre alguém com quem estamos a combater: a uma classe dominante”.

Na sequência, nos respondeu sobre os interlocutores de seus raps, Valete, então, disse-nos que ele tem uma preocupação com a forma e com o conteúdo e, nesse sentido, é um “rapper de duas caras” e atribui a isso “ao seu lado africano e ao seu lado europeu”, pois gosta “muito da fonética, do som do rap, do flow”. E acrescentou que o europeu, mesmo com a crise, tem pouco sofrimento, visto que consegue comer, o que é diferente de se falar em crise na África em que as pessoas passam fome. Por isso, segundo o rapper, os europeus não se identificam com histórias de sofrimento, porque não sentem isso e não vivem isso na pele, ao contrário do africano.

Retomando a descrição do rap português, Valete relatou-nos que o rap, em Portugal, é independente do Hip Hop e não se pode dizer que está inserido nesse movimento, pois, hoje, existem muitos grafiteiros, os writers, que não têm vinculação com o Hip Hop como no passado, estando ligados a outros estilos musicais.

Sobre as gerações/escolas do Hip Hop Tuga, Valete separa-as em quatro momentos. Na primeira geração estariam o pessoal da coletânea Rapública, entre outros, Boss AC, Black Company; Mind da Gap (não fez parte do Rapública); Da Weasel, considera-a uma das melhores bandas portuguesas de todos os tempos e a compara ao grupo brasileiro Planet Hemp; General D; entre outros. Ele citou esses nomes para ilustrar, mas há outros também. Muitos desses rappers eram ligados ao

breakdance e outros eram filhos de imigrantes fazendo música de combate/de

intervenção. Na segunda geração, haveria uma preocupação com a forma/com a estética, porém, há exceções, é a geração de Valete e de Chullage, ainda influenciada pela 1ª

Geração (cujo conteúdo é importante). Essa segunda geração, na opinião de Valete, era muito purista, underground, porque rappers não queriam ir para rádio/televisão, por exemplo; faziam um rap duro; eram muito fundamentalistas e qualquer rap que fosse para a rádio/TV, já não consideravam, daí o desprendimento para com o Gabriel que ia a rádios e fazia videoclipes, por exemplo.

A terceira geração não vingou, para Valete, contudo citou dois rappers, Regula e NGA, que fazem um rap de qualidade. Era uma geração muito influenciada pelo rap norte-americano que chegava às rádios e pelos videoclipes, como o trabalho de 50 Cent; eram mais abertos, queriam hits e isso não quer dizer que faziam mal, segundo Valete, contudo, não tinham aquele fundamentalismo underground da geração anterior. A quarta geração ainda está em construção, para Valete, e citou nomes como ProfJam, Dillaz, Player; também não são fundamentalistas; são mais focados na internet/no digital; preocupados com o número de views e com a forma; quase não há uma linha de MCs com raps mais reflexivos/mais conscientes; mais estética; tudo é formas e flows, segundo o rapper. Além disso, relatou-nos que o rap do norte, do Porto, por exemplo, é diferente do feito em Lisboa: é um rap muito “purista sonicamente”; existindo uma preocupação maior com conteúdo e forma, ficando sempre muito igual, não tendo muitas variações, já, em Lisboa, existe mais variação, pois é uma cidade mais cosmopolita.

A relação entre rap e mídia nunca foi harmoniosa, para Valete. Inicialmente, era quase inexistente, pois o rap era uma coisa nova, em terras lusas, além de haver preconceito da sociedade em relação ao rap (“considerado coisa de preto/bandido”). Hoje, essa situação não é como outrora. Antes, as pessoas que trabalhavam em rádio não gostavam muito do rap, pois existia uma relação muito forte com o rock, em Portugal, já que muitos locutores ouviam rock. Atualmente, já se ouve rap (português e/ou norte-americano) em rádios, mas os mais comerciais. Valete apontou também que, diferentemente do fado, que é música tradicional, muito respeitada, que tem muitos apoios e consegue gerar produtos (são lançados de 10 a 30 CDs por ano), cuja população idosa é maioria e gosta muito, o rap não tem esse destaque, embora seja escutado por uma parcela significativa de jovens. Na televisão, também não é muito diferente, uma vez que considera a relação música e televisão, em Portugal, quase residual. Os músicos, geralmente, aparecem em talkshows e cantam ao final do

programa, e alguns rappers relevantes aparecem nesses programas. Considera a audiência dos programas de música baixa, pois os jovens têm mais acesso pela internet.

Por fim, as declarações de Valete mostram-nos que sua trajetória no/com o rap liga-se a uma práxis em que se destacam crítica, consciência e dedicação, no seu modo de ser e de estar no mundo e, consequentemente, na relação que se estabelece entre vida e arte, com suas palavras e contrapalavras. Desse modo, o que o rapper nos contou, assim como as declarações de Chullage, possibilita-nos alargar o entendimento do que é ser rapper de comunidade afro-descendente, em terras lusitanas, num contexto em que nem todos os discursos que circulam sobre o rap são dados a ver e a escutar, em diversos meios de comunicação portugueses, assim como deve acontecer em outros locais também, como no caso brasileiro. Sobressaindo-se a internet, como ressaltou Valete, como uma das principais formas de propagação, de disseminação e de pulverização de muitos trabalhos ligados à cena do rap, em Portugal, feitos por distintos

rappers, nas suas diversas variações. Dessa maneira, essa conversa com Valete

enriqueceu a nossa pesquisa, pois, ao serem partilhadas informações, em alguma medida, não estamos só falando sobre algo, no nosso sobre o rap, mas também estamos dialogando com e partir de algo, no caso algumas das distintas cenas que o rap vai assumindo, tendo como base relações concretas e que se realizam, via alteridade, em diversos lugares.