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Diagnóstico, critérios de diagnóstico, biomarcadores e diagnóstico diferencial Heterogeneidade clínica e geográfica: o

Abordagem Clínica, Etiopatogénica, e Imunopatológica

2. Diagnóstico, critérios de diagnóstico, biomarcadores e diagnóstico diferencial Heterogeneidade clínica e geográfica: o

espectro das doenças desmielinizantes primárias.

A Esclerose Múltipla é habitualmente classificada dentro da diversidade das patologias neurológicas, no grupo das doenças desmielinizantes adquiridas, ou seja, nas quais, após um período de normal desenvolvimento do Sistema Nervoso com regular mielinização axonal, ocorre – no contexto de variadas etiologias – uma perda de mielina. Considera-se, assim, que o alvo primário desta doença é a mielina do SNC, e que a sua perda é o substrato patológico principal e determinante das manifestações clínicas. Tal como anteriormente alegámos, e adiante explanaremos em maior pormenor, esta visão, sendo verdadeira, é demasiado simplificadora. Uma vez que na EM a desmielinização não se dá em consequência de alguma agressão externa ao organismo, mas, sim, motivada por uma reacção inflamatória com características provavelmente autoimunes, esta e algumas outras doenças desmielinizantes são denominadas de primárias (por oposição às outras, secundárias). Ao longo dos anos têm sido agregadas a esta categoria numerosas outras doenças, algumas que serão, provavelmente, apenas subtipos clínicos da EM, enquanto outras correspondem a entidades nosológicas independentes, e com mecanismos etiopatogénicos próprios.

O diagnóstico da Esclerose Múltipla é feito com base num conjunto de dados clínicos e paraclínicos, entre os quais assumem particular relevância a imagem por Ressonância Magnética Nuclear (RMN) do neuro-eixo, e o exame do líquido cefalorraquidiano (LCR) (47, 48). Caracteristicamente, a história e o exame físico revelam, e confirmam, evidências de lesão neurológica multifocal afectando vários sistemas neurológicos, cujo aparecimento é, normalmente, disperso ao longo de vários meses ou anos (12). A RMN do neuro-eixo confirma a existência de lesões afectando, predominantemente, a substância branca dos hemisférios cerebrais, cerebelo, tronco cerebral e medula espinhal (49, 50). Estas lesões, pelas

características imagiológicas evidenciadas nas várias sequências RMN habitualmente utilizadas, podem ser classificadas quanto à sua antiguidade e grau de lesão parenquimatosa subjacente. A sua localização permite, na maioria dos casos, uma boa correlação clínico-anatómica com os sinais e sintomas apresentados pelos doentes. Nas lesões recentes, é habitualmente encontrada uma disrupção da barreira hemato-encefálica, evidenciada através do uso de contrastes paramagnéticos baseados em compostos de gadolínio, que se pensa estar relacionada com uma reacção inflamatória local (49). Técnicas mais recentes permitem uma caracterização muito mais precisa do impacto da Esclerose Múltipla no SNC, e uma correlação não só com os sinais clínicos de disfunção focal durante os surtos, mas, também, com a progressão da incapacidade neurológica nas fases mais tardias da doença (49, 50). Entre estas, mencionamos, brevemente, a análise volumétrica da carga lesional e atrofia cerebral, a espectroscopia protónica 1H para detecção de sinais metabólicos de disfunção neuronal, a RMN funcional, imagens por transferência de magnetização permitindo a avaliação da substância branca de aparência normal (SBAN), imagens de tensão-difusão para avaliação da microestrutura parenquimatosa e tractografia das vias longas, e RMN de campo magnético de alta potência (acima de 3.0 Tesla).

O exame do líquido cefalorraquidiano obtido nestes doentes permite obter evidência indirecta da activação do Sistema Imune (SI), que se presume estar subjacente à etiopatogénese da EM, e constitui um dos pilares fundamentais no diagnóstico nas várias fases desta doença (51, 52). Critérios de consenso para a análise do LCR na EM foram publicados recentemente, abrangendo as várias técnicas empregues e propondo um conjunto de critérios de qualidade (53). De entre os vários parâmetros que é possível avaliar, a detecção do aumento oligoclonal de imunoglobulinas no LCR através de métodos imunoquímicos e electroforéticos, iniciada por Elvin KABAT a partir de 1942 foi, historicamente, uma das primeiras demonstrações do papel do Sistema Imune na EM, e, também, um dos primeiros testes diagnósticos desenvolvidos (54-56). Actualmente, a detecção

da oligoclonalidade das imunoglobulinas presentes no LCR destes doentes é feita por imunoelectroforese das proteínas com focagem isoeléctrica, com detecção de bandas oligoclonais feita por vários métodos; com este método em mais de 95% dos doentes com Esclerose Múltipla (52). Na população portuguesa, Maria José SÁ et al., confirmaram uma prevalência de 82% nesta população, com uma sensibilidade e especificidade de 82 e 80%, respectivamente, para o diagnóstico de EM (57). Por último são, por vezes, empregues testes neurofisiológicos, tal como os potenciais evocados sensitivos-sensoriais (visuais, auditivos, sensitivos), para detecção de lesão subclínica em várias localizações do SNC. Embora fossem, inicialmente, realizados potenciais evocados somato-sensitivos (úteis sobretudo para detecção de lesões medulares) e auditivos (para detecção de lesão do tronco cerebral), a grande evolução das técnicas de imagem levou a que, hoje em dia, sejam praticamente utilizados apenas os potenciais evocados visuais, que permitem estudar a região pré e pós-quiasmática do nervo óptico (58- 60). Este tipo de estudo poderá ter, também, para além do seu papel no diagnóstico, alguma importância para avaliação da progressão da doença (59, 61).

Pretende-se, com as investigações clínicas e paraclínicas acima citadas, obter evidência da existência de lesões disseminadas em várias localizações do SNC, e a confirmação de um curso clínico típico, com recorrência de ataques ao longo do tempo – ou, mais simplesmente, disseminação de lesões no espaço e no tempo (47, 48, 62). Naturalmente que, como se pode depreender, para as formas primariamente progressivas, torna-se mais difícil estabelecer um diagnóstico, dada a evolução clínica não se processar por surtos. Mesmo para as formas mais típicas de surto- remissão, existe uma percentagem de erro de diagnóstico entre 5 a 10% (63). Com a disseminação do uso da RMN para diagnóstico em doentes com queixas neurológicas, tem-se, igualmente, verificado um aumento de casos falsos-positivos, em virtude da inespecificidade da RMN para esta doença. Por exemplo, numa casuística recente proveniente de um centro universitário, somente em 33% dos casos referenciados com a hipótese de

EM, ou EM-provável (sobretudo com base em exames RMN prévios), este diagnóstico foi confirmado, sendo que os restantes casos tinham outras doenças neurológicas (31.5%), doença psiquiátrica (22.5%) ou ficaram sem diagnóstico (12.5%) (64). Nos doentes referenciados por alterações na RMN, e que não tinham EM, a maioria correspondia a enxaqueca (37%) ou a alterações inespecíficas (22%) (64). Na ausência de um teste diagnóstico específico, e com a necessidade de confirmação diagnóstica cada vez mais presente, dadas as implicações pessoais, sociais e médicas que o diagnóstico de EM acarreta, houve a necessidade de criar critérios de diagnóstico relativamente específicos para esta doença. Por outro lado, a partir do momento em que se começaram a realizar ensaios terapêuticos de forma regular, os critérios de diagnóstico permitiram garantir a homogeneidade da população a ser testada. Actualmente, dado o consenso cada vez mais alargado da necessidade de terapêutica precoce, a confirmação diagnóstica é um passo fundamental para o acesso às terapias modificadoras de doença.

Não existindo manifestações clínicas patognomónicas desta doença, e dada a inespecificidade das alterações encontradas na RMN do neuro-eixo, têm-se desenvolvido esforços para encontrar um teste laboratorial diagnóstico, que pudesse inequivocamente confirmar, ou negar, a presença de EM. Dentro deste campo, o desenvolvimento de biomarcadores (marcadores biológicos) tem suscitado grande interesse; um biomarcador pode ser um gene, proteína, ou outra molécula biológica que reflecte processos fisiológicos ou fisiopatológicos subjacentes a uma doença. O marcador biológico ideal reflecte, directamente, a fisiopatologia, encontra-se num órgão ou fluido biológico facilmente acessível, é quantificável de forma rápida, e contribui para o diagnóstico e prognóstico da doença. Duas estratégias de investigação de biomarcadores têm sido empregues: investigação baseada em hipóteses e investigação baseada em descobertas (hypothesis-driven research, e discovery-driven research) (65). Na primeira, são testados alvos-candidatos escolhidos com base na nossa compreensão actual da doença, enquanto que, na segunda, são empregues estratégias de avaliação em massa (mass screening) que, não partindo de hipóteses

fisiopatológicas a priori, pretendem avaliar, de forma abrangente, as alterações metabólicas num determinado órgão-alvo.

Um exemplo do primeiro tipo de estratégia, e que está actualmente em uso, é a detecção de bandas oligoclonais, como acima mencionámos (52, 66). A isotipagem destas bandas, sobretudo para a detecção de IgM, tem sido apontada, recentemente, como um bom marcador de prognóstico para a EM, uma técnica desenvolvida pelo grupo de ALVAREZ-CERMEÑO (67, 68). Por outro lado, o esclarecimento dos alvos antigénicos desta reacção imune humoral poderá, igualmente, ser importante. BERGER et al., num muito citado estudo, publicado em 2003, chamou a atenção para a importância da presença de anticorpos anti-proteína básica de mielina (MBP) e proteína oligodendrocitária da mielina (MOG), como factor de prognóstico para a conversão de SCI em EM definitiva (69). Estes resultados têm sido dificilmente reprodutíveis por outros grupos, sobretudo pela grande diversidade de técnicas empregues para a sua detecção. Não é claro, ainda, qual o papel que a detecção destes anticorpos poderá assumir no futuro; eventualmente, os anticorpos anti-MOG poderão ser marcadores mais específicos do processo inflamatório na EM (70-75). Mais recentemente, a detecção de anticorpos anti-lipídicos, nomeadamente correspondendo às bandas oligoclonais IgM anteriormente mencionadas, foi apontada como um factor prognóstico determinante para esta doença (76). Outros biomarcadores potencialmente interessantes têm sido desenvolvidos com base no conceito da EM como doença inflamatória/imuno-mediada; entre estes, destacamos as citocinas (TNF, IL-1β, IFNγ, IL-2, IL-6, IL-12), quimiocinas (CCL5, CXCL10, CCL2), moléculas de adesão celular (s-ICAM1, VCAM-1), metaloproteinases de matriz (MMP-2, 3, 7, 9), óxido nítrico e superóxido, a substância “MBP-like” urinária (MBPLM) e marcadores de apoptose (survivina). Outros marcadores pretendem medir o grau de destruição axonal, tais como as proteínas do citosqueleto (subunidade leve dos neurofilamento, actina, tubulina, tau), marcadores de lesão da membrana celular (24S-hidroxicolesterol, apolipoproteína E), e vários outros

(proteína 14-3-3, proteína precursora do amilóide, N-acetil aspartato, enolase específica de neurónio) (77-80).

O segundo tipo de abordagem (mass screening) baseia-se nas recentemente desenvolvidas tecnologias de análise genómica e proteómica, e que permitem avaliar, simultaneamente, a expressão genómica de um tecido ou órgão-alvo (i.e. detecção de todos os genes a serem expressos, e sua quantificação), ou o seu conteúdo proteómico (i.e. todas as proteínas presentes) (65, 81). A análise genómica tem sido feita sobretudo com base nas tecnologias dos spotted arrays e dos oligonucleotide arrays que detectam o ARN mensageiro por processos de hibridização com cADN e detecção por fluorescência (82). Com base nesta tecnologia, tem sido possível encontrar padrões de expressão genómica relativamente específicos para a EM, e que permitem, inclusivamente, a sua distinção de outras doenças autoimunes (83-85). Os estudos de análise proteómica baseiam-se, primariamente, na tecnologia de electroforese bidimensional (2DE), associada, de seguida, à detecção e caracterização de proteínas individuais por métodos de espectroscopia de massa, nomeadamente através da técnica MALDI/TOF (matrix-assisted laser desorption/ionization time of flight) (86). Com base nesta tecnologia, é possível estudar pormenorizadamente o proteoma presente no líquido cefalorraquidiano, e compará-lo entre doentes e controlos. Só muito recentemente os primeiros trabalhos deste tipo principiaram a ser realizados, tendo sido possível começar a caracterizar o proteoma do LCR normal (87), e de doentes com Esclerose Múltipla (88). A partir da análise proteómica do soro destes doentes, foi possível, também, identificar novos alvos antigénicos potenciais (89) e, inclusivamente, postular a existência de uma assinatura molecular específica da EM, e propor 3 biomarcadores específicos, cuja confirmação é ainda aguardada (90).

Dentro do mesmo grupo nosológico das doenças desmielinizantes primárias, várias entidades clínicas podem ser consideradas para além da EM. Estas incluem não só as variantes de evolução clínica anteriormente mencionadas, tais como os síndromes clínicos isolados, ou as formas

primariamente progressivas (medulares, cerebelosas, etc.), mas, também, outras entidades mais raras e cuja relação com a EM é presumida com base na semelhança de achados clínicos e laboratoriais, e, ainda, na evolução de umas para as outras. De entre estas outras entidades, destacamos as formas monofásicas, habitualmente pós-infecciosas, como as mielites transversas e a encefalomielite aguda disseminada (EMAD), e, igualmente, as variantes de localização anatómica restrita, como as doenças de DEVIC ou de BALÓ, ou de maior severidade, como a variante de MARBURG (Figura 2) (91, 92).

EMAD

Recorrente/multifásica

Formas fulminantes/monofásicas

Encefalomielite aguda disseminada (EMAD) Focal/multifocal fulminante

(tumefacta, Marburg, Baló)

Síndromas recorrentes de localização restrita

Neuromielite óptica Mielite transversa recorrente

Nevrite óptica recorrente

Síndroma Clínico Isolado

Nevrite óptica Síndroma do tronco cerebral

Mielite transversa parcial Multifocais/polissintomáticos

Síndromas Primariamente Progressivos

Mielopatia progressiva Demência/síndroma frontal Neuropatia óptica progressiva Síndroma cerebeloso progressivo

Figura 2. Espectro das doenças desmielinizantes inflamatórias idiopáticas. Adaptado e modificado de Weinshenker BG Diagnosis: to McDonald and beyond, American Academy of Neurology 2006.

A variante de MARBURG (descrita em 1906) é uma forma particularmente agressiva de apresentação de EM, com lesões extensas da substância branca, habitualmente monofásica e de progressão rápida até à morte (93). Existem poucos casos bem documentados na literatura, e não está, ainda, claro se esta apresentação corresponde, apenas, ao extremo do espectro de gravidade da EM, ou se existem mecanismos fisiopatológicos próprios; pelo menos num trabalho, foi sugerido que esta variante estaria associada à existência de formas imaturas, citrulinadas e mal fosforiladas, da proteína básica da mielina (94). A esclerose concêntrica de BALÓ (descrita em 1927) é igualmente muito agressiva, com um curso monofásico agudo, e as lesões apresentam um padrão peculiar de desmielinização concêntrica com anéis desmielinizados alternando com anéis mielinizados (93). Recentemente, foi sustentado que estas alterações patológicas correspondem à existência de um pré-condicionamento do parênquima cerebral à hipoxia, em virtude da detecção da expressão do factor indutível pela hipoxia (ΗΙF-1α) e da proteína de choque térmico hsp70 na orla destas lesões (95). Presume-se que exista um estímulo hipoxico (e.g., tóxico mitocondrial, etc.) que estimule a síntese destas moléculas na orla da lesão desmielinizante focal, como forma de protecção; à medida que o tempo passa, sucedem-se ondas de desmielinização, que não podendo afectar o tecido pré- condicionado, lesionam a substância branca para além dele, e induzem nova orla de protecção, dando origem ao padrão típico desta variante (95). Por último, a doença de DEVIC, ou neuromielite óptica (NMO, descrita em 1894 por DEVIC e GAULT, e anteriormente mencionada por ALBUTT em 1870 (96, 97)) é uma combinação de nevrite óptica uni ou bilateral, e mielite extensa, com curso monofásico ou recorrente, e que leva rapidamente a grande incapacidade. Critérios de diagnóstico para esta entidade foram propostos por Dean WINGERCHUCK et al., e recentemente modificados para incluir um marcador biológico específico, um anticorpo anti- aquaporina-4, denominado IgG-NMO, e permitindo a existência de lesões desmielinizantes noutras zonas do SNC (37, 98). A descoberta deste biomarcador específico – o primeiro exemplo no que respeita às doenças

desmielinizantes – permite, tal como anteriormente referimos, um diagnóstico preciso, e abre a possibilidade de reclassificação de uma série de outras entidades semelhantes dentro do mesmo grupo; assim, algumas formas de mielite transversa recorrente, ou de nevrite óptica recorrente, poderão, dessa maneira, passar a pertencer ao espectro clínico da NMO (91).

A EMAD é uma doença desmielinizante, monofásica, do SNC, que afecta, predominantemente, crianças e adolescentes, com uma incidência anual cerca de 0.8/100 000 (99). Existem poucas séries de doentes publicadas com estudo prospectivo prolongado, mas nas mais recentes tem- se confirmado que até 35% dos doentes adultos com EMAD evoluem nos 3 anos seguintes para EM clinicamente definitivas (100, 101). Nos jovens e crianças, embora não existam critérios específicos para distinguir a EMAD da EM de início precoce (early onset Multiple Sclerosis, formas com início antes dos 16 anos (102, 103)), a ausência de bandas oligoclonais no LCR, carga lesional elevada na RMN, envolvimento da substância cinzenta, e ataxia de início precoce têm sido apontados como a favor da EMAD (104, 105). Em mais de metade dos casos, a EMAD ocorre na sequência de uma infecção viral (Coronavírus, Coxsackievírus, vírus EPSTEIN-BARR, Herpesvírus, etc.) ou bacteriana (e.g. Chlamydia spp., Legionella spp.,

Mycoplasma pneumoniae), sobretudo do tracto respiratório superior, ou,

então, de vacinações (hepatite B, sarampo, papeira, tosse convulsa, raiva, rubéola) (99, 106). Tipicamente, 1 ou 2 semanas após estes eventos provocadores, surgem sintomas neurológicos de forma aguda/subaguda, tais como alterações da vigília, sinais focais (parésias, hemianopsia, ataxia, síndromes do tronco cerebral, etc.) e cefaleias (99, 106). O exame imagiológico do neuro-eixo revela a presença de múltiplas lesões desmielinizantes, disseminadas, por vezes confluentes, em idêntica fase de evolução (99). Apesar de não haver critérios de diferenciação por RMN entre a EM e a EMAD, a presença de lesões periventriculares, ou de lesões perpendiculares ao corpo caloso (“dedos de DAWSON”) é considerada como mais típica, e conferindo maior risco de conversão em EM (107).

Em alguns casos, a apresentação clínica é mais limitada anatomicamente, e consiste, apenas, numa mielite transversa pós-infecciosa, ou numa nevrite óptica uni ou bilateral (99); noutros, o quadro clínico torna- se rapidamente muito mais severo, e surgem, para além dos anteriores, sinais de hipertensão intracraniana. O extremo mais maligno deste espectro é a leucoencefalite hemorrágica de WESTON HURST (108, 109), na qual há extensas lesões necrotizantes e hemorrágicas sobrepostas às lesões desmielinizantes habituais, e que é, normalmente, fatal, como num caso que publicámos há alguns anos (109, 110). Outras formas igualmente graves de EMAD, ocorrendo até 31% dos casos na criança, apresentam-se como lesões cerebrais extensas, com efeito de massa, com semelhanças com a esclerose mielinoclástica difusa de SCHILDER (92, 104); noutros casos, surgem lesões talâmicas bilaterais simétricas, necrotizantes, ocorrendo em cerca de 10% dos casos, sendo então empregue a denominação de encefalopatia necrotizante aguda da infância (104, 111). Aumentando ainda mais a heterogeneidade desta entidade, têm sido descritas formas multifásicas ou recorrentes, nas quais a distinção com a EM é ainda mais difícil (112). Nestas formas de encefalomielite disseminada multifásica (EMDM), que ocorrem em cerca de 15% dos casos pediátricos (113), surgem sinais de agravamento neurológico durante a cessação de terapêutica, ou nos dois meses imediatos, tendo sido proposto que após este período, qualquer novo surto deva ser considerado diagnóstico de EM (99).

Para além destas variantes clínicas, devem ser também, brevemente, mencionadas as variantes geográficas da EM. Uma vez que esta doença foi descrita em doentes caucasianos, e a sua maior prevalência seja, ainda, entre estas populações (particularmente as de ascendência nórdica), é natural a existência de um viés considerável no que diz respeito ao conhecimento de outras formas de doença desmielinizante em outras populações. Para dar apenas dois exemplos, no Japão existe uma elevada frequência de formas óptico-espinhais de EM, e que, recentemente, pela descoberta acima mencionada do anticorpo IgG-NMO, se descobriu corresponderem, provavelmente, a neuromielites ópticas de DEVIC (114-

117). Embora a prevalência de doenças desmielinizantes na África subsaariana seja muito menor que nos outros continentes, nas poucas séries descritas recentemente tem sido notada, igualmente, uma relativa preponderância de casos com afecção do nervo óptico e medula espinhal, à semelhança da NMO (118). Na base destas variantes geográficas da EM estarão, muito provavelmente, diferenças nos condicionantes genéticos associados a esta doença (que adiante discutiremos), e, possivelmente, também nos seus factores despoletantes, tais como os agentes infecciosos. Recentemente, baseado neste e em vários outros estudos geográficos, bem como na análise de haplotipos mitocondriais e genética populacional, Alastair COMPSTON propôs que as formas óptico-espinhais, mais prevalentes em populações não-caucasianas, correspondam a uma “proto”- EM, na qual os mecanismos patogénicos se baseiam, sobretudo, numa resposta imune Thelper2 (Th2); a EM típica caucasiana (surto-remissão) seria

uma “neo”-EM mediada, predominantemente, por uma resposta Th1 e na qual o contributo das infecções despoletantes (sobretudo do vírus EPSTEIN- BARR - EBV) seria mais importante (119). O aparecimento, e predomínio desta “neo”-EM, na população europeia, teria como causa a modificação do repertório genético nesta zona do globo, durante o repovoamento ocorrido após a última Idade do Gelo, a partir de uma migração fundadora provinda da Anatólia (período neolítico, 10 000 anos a.C.). Este efeito fundador associou-se, depois, ao filtro imuno-genético de um ecossistema rico em agentes microbianos patogénicos (com vários períodos de epidemia catastrófica). Estes factores levaram a um progressivo enviesamento dos genes de resposta imune no sentido de uma prevalência de respostas imune Th1 e de memória, com o consequente risco acrescido de autoimunidade.