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Após cada apresentação da peça “Você viu a Rosinha?”, os integrantes do projeto – NEGIF, NUCEPEC e CAJU – conduzem um debate sobre a exploração do trabalho infantil à luz do ECA, destacando o trabalho doméstico.

Ao final de cada apresentação percebe-se a emoção das platéias: os expectadores ficam chocados, perplexos, muitas vezes mudos. Na maioria das vezes a primeira reação da platéia é o silêncio. Por isso, costumamos iniciar o debate perguntando se “a história da Rosinha, é uma história real ou somente uma narração inventada?”. Quando fazemos esta pergunta as pessoas parecem “acordar” e a primeira resposta é expressa com um “sim, a história é real” ou com um simples e afirmativo balançar de cabeça. Desse momento em diante, de acordo com as falas, perguntas e colocações das pessoas presentes, aprofundam-se diversos aspectos que permeiam a exploração do trabalho infantil.

Uma das questões mais freqüentemente tratadas se refere à responsabilidade da família e os cuidados com os filhos, problemática levantada em função da personagem representada pela mãe da Rosinha (Dona Raimunda). Posta a questão por alguém da platéia, a “culpa” da criança estar no trabalho geralmente é atribuída à mãe. Essa discussão é conduzida com respaldo no ECA, que diz em seu artigo 4º:

É dever da família, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 1998, p. 11-12)

De acordo com este artigo do ECA, não somente a família, no esquete representada pela mãe, é responsável por proteger a criança, mas toda a sociedade e o poder público são incumbidos de também assegurar esta proteção. Nesse sentido, observa-se que as falas nos debates reproduzem um jogo de repasse de responsabilidades intermináveis, no qual as três instâncias que deveriam efetivar esses direitos, se omitem ou, acusando-se mutuamente, impedem ou atrasam que algo seja objetivamente realizado.

A irregularidade do trabalho infantil também foi outro tema recorrente. Sobre esta questão reforça-se o texto registrado no artigo 60 do ECA que dispõe sobre o direito à profissionalização e à proteção no trabalho, afirmando que é proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos de idade, salvo na condição de aprendiz quando entre quatorze e dezesseis anos de idade. Na condição de aprendiz o adolescente pode ser capacitado para o exercício de um ofício paralelamente às atividades escolares.

No debate se procura reforçar, ainda, que o trabalho aprendiz não se aplica ao trabalho doméstico, por este não apresentar os requisitos necessários à condição de aprendizado e, portanto, não atender ao exposto no artigo 62 do Estatuto: “Considera-se aprendizagem a formação técnico-profissional ministrada segundo as diretrizes e bases da legislação de educação em vigor.” (BRASIL, 1998, p. 25)

No serviço doméstico, quando as atividades domésticas são executadas na própria casa da criança, estas poderiam ser consideradas como uma forma de aprendizado, na condição de formação de hábitos de organização de seu próprio espaço e rotinas, desde que sejam resguardados e garantidos todos os demais direitos da criança.

O artigo 67, item IV, do ECA, não considera o trabalho aprendiz doméstico, ao afirmar que o trabalho aprendiz é vedado quando realizado em horários e locais que não permitam a freqüência à escola. O trabalho doméstico tem como uma de suas características o estabelecimento de uma rotina de atividades incompatível com o horário escolar.

A freqüência à escola é dificultada pela carga horária excessiva comumente associada às atividades domésticas. Diversos estudos e pesquisas, realizados com crianças trabalhadoras domésticas, afirmam que as meninas envolvidas nesta atividade têm baixo rendimento escolar devido ao horário de trabalho estendido, sendo freqüentes os serviços noturnos e estafantes. Lavinas (2000) reporta uma carga horária cumprida por crianças e adolescentes de até 52 horas semanais.

No debate sempre é apontada a problemática que concerne à ineficiência das políticas públicas para crianças e adolescentes, especialmente para as que estão em situação de risco social. São apresentadas argumentações fundamentadas nos artigos 86 e 87 do ECA, que dispõem sobre as políticas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente e suas linhas de ação; estas devem ser feitas em conjunto articuladas com ações governamentais e não- governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Especial reforço é dado, também, ao papel dos Conselhos Tutelares e dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente.

Os comentários referentes à implicação dos vizinhos na problemática em questão propiciam uma discussão sobre a responsabilidade de todos quanto à efetivação de denúncias de trabalho doméstico infanto-juvenil aos órgãos responsáveis pela fiscalização.

Durante os debates são comuns os depoimentos sobre situações reais vividas ou presenciadas por pessoas tanto da platéia como dos integrantes do grupo. Alguns fazem colocações sobre experiências individuais, “casos de Rosinhas” na família e alguns confessaram não reconhecer, ou mesmo tomar como “natural” a realidade do trabalho infantil doméstico:

Essa semana mesmo na minha rua passou uma senhora oferecendo a filha para cuidar da minha casa. Eu não quis, mas com certeza alguém aceitou o serviço da menina em troca de algum agrado. (Depoimento de uma pessoa da platéia).

Quanto a essa colocação, ressaltam-se os dados da pesquisa “O trabalho doméstico infanto-juvenil em Fortaleza” (AMARAL, 2004) e de outros estudos realizados nesta área. Sob o pretexto de uma atuação filantrópica, o que se costuma denominar de “manto da caridade”, muitas vezes a exploração do trabalho de crianças se

intensifica; e como a casa é asilo inviolável e nela não se pode penetrar sem o consentimento da lei, a fiscalização do trabalho infantil doméstico é ainda mais dificultada.

As falas denotam que, para além de se colocar na condição de omissos, alguns participantes do debate também refletem um recorrente reconhecimento de si mesmos como vítimas da exploração do trabalho doméstico ou ainda como de alguém que teve ao seu serviço suas próprias “Rosinhas”.

Entre os vários depoimentos ocorridos durante debates promovidos após a apresentação do esquete, um se destacou pelo teor comovente e tocante. Uma estudante universitária relatou sua experiência como vítima da exploração no trabalho doméstico quando criança. Ela foi entregue a uma tia por sua mãe, que se divorciara do pai e ficara sem condições de criar todos os filhos.

Eu fui uma Rosinha... quando minha mãe se separou de meu pai eu era pequena, fui morar na casa de uma tia... ela dizia que eu tinha que cuidar dos meus primos... eles me batiam eu não podia reagir, tinha que agüentar... fiquei atrasada nos estudos... sofri muito... (Estudante universitária).

Relatos como este, carregados de muita emoção, comovem a todos da platéia e levantam muitas questões sobre a problemática da exploração do trabalho infantil. Mesmo em lugares onde há laços familiares, meninas podem ser exploradas no trabalho doméstico e ter seus direitos cruelmente subtraídos.

Uma dimensão da exploração de crianças e adolescentes no trabalho, independente deste se realizar dentro ou fora do espaço doméstico, precisa ser considerada por quem pretende atuar na sensibilização de todos para a erradicação desta prática de violação de direitos. Muitas vezes, no decorrer dos debates, o grupo responsável por

conduzi-los colocou esta mesma questão para a platéia: será que existe algum ganho para estas meninas e meninos que trabalham?

Na medida em que a remuneração destas crianças e adolescentes, ainda que muito baixa, pode representar um diferencial na renda familiar, e que tal fato redimensiona as relações de poder no seio destas famílias, é óbvia uma certa “positivação” atribuída pelas próprias vítimas de exploração no trabalho infantil. No entanto, somente um amplo debate, ancorado em argumentos construídos e desconstruídos de forma dialógica, pode trazer novas perspectivas e representações para o trabalho infantil, esclarecendo ganhos e perdas encobertos nesta atividade.

Em várias ocasiões de apresentação do teatro debate havia um número considerável de crianças na platéia. Ao final das apresentações, as crianças se perguntam “Cadê a Rosinha?”. A expectativa de um “final feliz” e a imersão no mundo da fantasia propiciada pela linguagem teatral são substituídas, ao longo dos debates, por uma discussão sobre uma realidade não mais imaginária, mas concreta e cotidiana, que as leva a refletirem, apesar de ainda tão jovens, sobre seus direitos e deveres.

A Rosinha era pra brincar e ir pra escola e não ficar cuidando da casa. (Mariana, 5 anos).

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