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o publicar, em 1954, De la connaissance historique, obra traduzida anos mais tarde para a língua portuguesa com o título

Sobre o conhecimento histórico, Henri-Irénée Marrou, um dos

mais renomados especialistas em História do Cristianismo, já afirmava: “constitui um documento toda fonte de informação de que o espírito do historiador sabe extrair alguma coisa para o conhecimento do passado humano, considerado sob o ângulo da questão que lhe foi proposta”. Uma definição de documento histórico como essa representava, à época, um avanço considerável na maneira pela qual os historiadores lidavam com o seu ofício, pois destituía o texto escrito, em geral a lei, a correspondência oficial, o relatório de chancelaria, os registros cartoriais do privilégio de portar em si mesmos a História, ou seja, de serem os suportes privilegiados nos quais os traços dos processos históricos vividos ficariam retidos até serem reunidos pela ação laboriosa do pesquisador. Ao formulá-la, Marrou exprimia, ainda que de maneira discreta, sua filiação a um movimento de renovação historiográfica deflagrado na França nos finais da década de 1920 e que ficou conhecido como Escola dos Annales, muito embora os autores que gravitaram em torno dos Annales – na realidade, em torno da revista, que se tornou o carro-chefe das novas concepções que surgiam sobre como interpretar a História – nunca tenham gozado da uniformidade intelectual que muitas vezes somos levados, de modo um tanto ou quanto naïve, a atribuir-lhes (REIS, 1994, p. 28 e ss.). Não obstante as múltiplas orientações metodológicas e os múltiplos interesses temáticos agrupados sob o rótulo dos Annales (rótulo muitas vezes desejado, na medida em que significava a adesão ao que era inovador, moderno, arrojado em termos de pesquisa histórica), um dos fatores que conferiam certa coesão à Escola era justamente a maneira pela qual concebiam a categoria documento. Nesse domínio, como em tantos outros, os epígonos declarados ou ocultos de Lucien Fébvre, Marc Bloch e, mais tarde, de Fernand Braudel, formularam os seus argumentos em oposição à História praticada no século XIX, que nutria

um apego excessivo ao texto, ao documento escrito.

Na contracorrente desse apego, os “analistas”, se é que podemos denominá-los assim, operaram um alargamento sem precedentes da noção de documento, propondo que todo e qualquer suporte capaz de fornecer ao historiador informações sobre a vida dos homens no passado, não importa em que dimensão, deveria ser considerado um documento e, como tal, passível de ser submetido às regras da crítica externa e interna com o propósito de garantir o caráter fidedigno do testemunho. Convém salientar, todavia, que essa “revolução” em termos metodológicos não foi um acontecimento isolado, mas fez-se acompanhar de outra, tão ou mais importante: a diversificação dos próprios objetos de investigação histórica. Na medida em que os pesquisadores não se limitavam mais a esquadrinhar os bastidores da política, com destaque para a política institucional, o que explica a ênfase então dispensada ao estudo do Estado e dos órgãos que o compunham, passando agora a se dedicar a um repertório de outros temas por meio dos quais pretendiam captar a dinâmica da sociedade, o comportamento dos seus grupos, classes e estamentos em interação – daí o termo História Social, que muitas vezes é utilizado como sinônimo de História feita à moda dos Annales – era necessário buscar alhures dados que suplementassem os textos. Renovando os objetos, os “analistas” foram igualmente obrigados a renovar as suas fontes de informação, o que significou um notável estímulo para que os mais variados suportes fossem sistematicamente explorados como, por exemplo, a paisagem, os utensílios e instrumentos de trabalho, os monumentos, a indumentária e as imagens. Doravante, os historiadores estarão autorizados a validar as suas conclusões por meio de indícios obtidos em qualquer circunstância, não necessitando mais evocar o texto escrito como um fiel depositário da “verdade histórica”.

Ocorre, no entanto, que essa inovação proporcionada pelos Annales, embora extremamente salutar, não foi capaz de alterar de imediato a maneira pela qual os círculos acadêmicos concebiam o ofício do historiador. Referimo- nos aqui às etapas de formação do profissional, ou seja, ao treinamento de nível superior que o habilita a exercer a docência da disciplina, bem como a elaborar projetos de pesquisa na área. Ainda que programas consistentes de investigação tenham sido executados mediante a inclusão, no corpus de fontes, de documentos variados, a exemplo do The king’s two bodies, a study in

medieval political theology, de Ernst Kantorowicz, obra surgida em 1957 na

qual o autor faz uso de moedas, iluminuras, medalhas e pinturas, a proposta dos Annales de que os documentos não textuais fossem de uma vez por todas incorporados ao modus faciendi do historiador não recebeu a atenção devida por parte dos departamentos universitários e institutos superiores de pesquisa, com exceção de um ramo específico do conhecimento histórico: a História da Arte. Na maioria dos cursos superiores de História o peso, na grade curricular, das disciplinas voltadas para o estudo da documentação material, visual e oral é bem menor se comparado ao investimento na leitura e interpretação das fontes textuais. Ao fim e ao cabo, tanto no âmbito do magistério quanto no da pesquisa, o profissional de História é treinado basicamente para lidar com o

texto escrito, o que resulta numa distinção contraproducente entre, por um lado, os historiadores, especializados em reconstituir e explicar os processos vividos no passado mediante a interpretação dos textos e, por outro, arqueólogos, antropólogos e historiadores da arte, dedicados à exploração de artefatos, monumentos e imagens.

De certa forma, esse relativo distanciamento dos historiadores diante da documentação material foi uma das variáveis que conduziram, em meados do século XX, a uma renovação da própria Arqueologia, que tende então a se desvencilhar dos procedimentos rotineiros de descrição e catalogação dos artefatos para propor modelos e teorias capazes de extrair de tais artefatos explicações inteligíveis sobre a sociedade em questão, o que aproxima os arqueólogos do trabalho dos historiadores, embora o inverso não tenha ocorrido, ao menos num primeiro momento (SCHNAPP, 1976, p. 4). Essa renovação, estimulada pelo estruturalismo em voga à época, propiciou o surgimento da assim denominada Arqueologia Processual, cujo objetivo era revelar, mediante o recurso à cultura material, os padrões de organização e funcionamento das sociedades. Ainda que o interesse dos arqueólogos processuais não recaísse nos movimentos de diacronia, de sucessão temporal, mas de sincronia, de integração sistêmica, não resta dúvida de que esses profissionais, ao manipularem vestígios deixados por sociedades pretéritas, tinham forçosamente que recorrer à explicação histórica, razão pela qual sua contribuição para o conhecimento do passado humano se tornou decisiva, ainda mais em se tratando das sociedades anteriores ao século XIX, para as quais o volume de textos escritos é consideravelmente menor se comparado aos séculos posteriores. No decorrer das décadas de 1970 e 1980, as potencialidades contidas nos monumentos e utensílios são amplamente exploradas pelos pesquisadores, em particular no que diz respeito aos ritmos da vida cotidiana, como convinha a uma época marcada por um desejo de compreensão das redes de produção, distribuição e consumo de bens e da interação homem/natureza mediada pelo trabalho. Pouco a pouco, no entanto, observa-se uma mudança de enfoque condicionada mutatis

mutandis pela afirmação do paradigma culturalista, quando então a cultura

material passa a ser interpretada nos termos dos sentidos que engendra, ou seja, da sua capacidade em transmitir concepções, valores e sentimentos, os quais exercem uma inegável influência sobre os usuários e espectadores (REDE, 2012, p. 140). A essa altura, os monumentos e artefatos se convertem tanto em repositórios de representações quanto em instrumentos de práticas sociais, recuperando-se assim o lugar da materialidade no desencadear dos processos culturais, que ocorrem sempre num espaço construído ou dominado por meio da ação humana e que dependem amiúde não apenas da intervenção dos códigos linguísticos (leia-se: a fala e a escrita), mas também da manipulação de utensílios e objetos.

O investimento no estudo da materialidade dos processos culturais realizado pelos arqueólogos, embora indispensável para a compreensão da dinâmica social do presente e do passado, ainda não foi devidamente reconhecido pelos historiadores, que continuam a fazer das fontes textuais a

pedra angular do seu trabalho. As razões pelas quais esse diálogo entre a História e a Arqueologia ainda não se consolidou devem-se a pelo menos três fatores. Em primeiro lugar, a uma concepção segundo a qual as informações passíveis de serem extraídas dos artefatos e monumentos são menos completas (ou mais lacunares) do que aquelas contidas nos textos, operando-se assim uma distinção hierárquica entre as diversas modalidades de testemunho. Ora, como bem observa Schnapp (1976, p. 5 e ss.), se é verdade que o vestígio arqueológico é, por sua natureza, residual e lacunar, não é menos verdade que os textos também apresentam um caráter fragmentário, isso quando não se encontram eivados de interpolações e de juízos de valor, o que nos obriga a manter com eles uma atitude de permanente cautela. Desse ponto de vista, não há documento mais ou menos incompleto, mas documentos mais ou menos aptos a fornecer indicações sobre aquilo que se pretenda analisar. Um documento, qualquer que seja ele, será mais ou menos útil de acordo com o objeto de investigação definido pelo pesquisador. Decerto, tentar extrair das moedas romanas informações acerca das disputas teológicas entre cristãos e arianos será uma tarefa bem menos produtiva se comparada à leitura das homilias dos Padres da Igreja. No entanto, se o propósito da pesquisa for elucidar os mecanismos de produção e difusão da imagem imperial, as moedas tornam-se indispensáveis, ao passo que decresce a importância das homilias. Em síntese, é prudente admitir que somente falamos do passado aquilo que o próprio passado, por meio dos vestígios que nos legou, nos permite falar. Nessa tarefa, a consulta a toda e qualquer fonte de informação disponível é válida, desde que adotemos algumas precauções, o que nos conduz ao segundo entrave ao diálogo entre historiadores e antropólogos: o emprego, pelos primeiros, da cultura material como uma evidência cujo papel é apenas o de corroborar a opinião contida nas fontes textuais, procedimento que pode gerar graves distorções se aplicado sem a devida precaução, assunto ao qual retornaremos mais adiante. Por último, mas não menos importante, é o despreparo dos historiadores no trato com a documentação material, uma vez que, salvo raras exceções, disciplinas como Pré-História, Arqueologia e Iconologia não fazem parte do currículo básico dos cursos de graduação e pós- graduação em História, o que exige do profissional interessado em se aventurar para além dos textos um esforço adicional no sentido de obter a qualificação necessária para explorar outros tipos de fontes. Todavia, quando pensamos numa área de investigação como a História de Roma, cuja documentação textual é em boa parte dispersa, fragmentada e descontínua, como ignorar as potencialidades que a cultura material oferece? Deixar de lado o volume de monumentos, utensílios e artefatos produzidos pelos romanos, e que aumenta dia a dia à medida que novos sítios arqueológicos são abertos, não seria certamente a mais inteligente das estratégias. Nesse sentido, propomo-nos, no presente capítulo, a refletir sobre os limites e possibilidades da cultura material para o conhecimento da sociedade romana antiga. No entanto, o escopo por demais abrangente do assunto reclama maior precisão, razão pela qual optamos por discutir o uso da documentação visual como um recurso eficiente para a abordagem de temas conectados à vida cotidiana no Império Romano, o que

será feito tendo como referência os mosaicos, uma modalidade de expressão artística bastante familiar à sociedade greco-romana, podendo ser encontrada em todas as províncias, da Bretanha à Mesopotâmia. Antes, porém, de tratarmos dos mosaicos romanos propriamente ditos, impõe-se uma reflexão, ainda que breve, sobre a relação entre História e imagem.