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No mundo romano, a palavra oral desempenha um papel de extrema relevância e na vida cotidiana dos cidadãos. Por isso, o ensino do bom uso 5 Para uma discussão das questões religiosas e sociais que envolvem os suportes da literatura cristã nos primeiros séculos de nossa era, remeto a Roberts e Skeat (1983, passim).

da palavra, de modo a orientar temática e estilisticamente o discurso para suscitar efeitos pré-determinados numa audiência, é um valor essencial da cultura romana. Tal valor liga-se intimamente à superposição da esfera pública em relação à vida privada e estabelece uma característica de grande importância para o funcionamento da literatura no mundo romano: a mediação de uma voz leitora apta a transformar a recepção de um texto literário numa experiência coletiva, análoga àquela por que passariam os contempladores de um monumento público ou os espectadores de uma peça teatral. A palavra oral, portanto, era central no contexto das obras literárias romanas, e leitura estava destarte ligada a termos como audição, cantar, recitar.

Não só na sociedade romana a leitura está presa a campos semânticos muito diversos do que a ela ligaríamos hoje. Chartier, que se debruça com frequência sobre as práticas letradas do século XVII, comenta as leituras familiares, como as das famílias protestantes, em que o pastor, ou por vezes o pai de família, é a voz do livro, como um exemplo mais recente de preponderância do oral sobre o escrito como forma de leitura.

Entre outras instigantes possibilidades abertas por esses conhecimentos, está a leitura mais significativa da própria poesia romana – abre-se um leque de significados que, de outra forma, nos escapariam. Como um brevíssimo exemplo, cito a abertura da primeira sátira de Juvenal:

Semper ego auditor tantum? numquamne reponam uexatus totiens rauci Theseide Cordi?

inpune ergo mihi recitauerit ille togatas, hic elegos? inpune diem consumpserit ingens

Telephus aut summi plena iam margine libri 5 scriptus et in tergo necdum finitus Orestes?

Sempre apenas ouvir? Nunca responderei, eu, tão farto da Teseida do rouco Cordo? então lerá pra mim, impune, este as togadas, outro elegias? E um dia esvairá, ingente,

um Télefo, ou, já frente e verso do rolo 5 escritos, e ainda assim não findo, um Orestes?

A propósito ainda desse poema, o frente e verso do rolo escritos é mais uma interlocução texto-contexto. Sabemos agora que o normal era que se escrevesse apenas na frente do rolo – escrever frente e verso é um exagero da quantidade, um desmedimento do autor do Orestes. Darei, a título de exemplo, à guisa de conclusão, alguns outros poemas da literatura latina que, lidos à luz dos conhecimentos sobre as formas da leitura, apresentam nuances e detalhes que, de outro modo, poderiam ser legados ao esquecimento ou à uma indesejada naturalização de formas nossas contemporâneas.

O poema de abertura dos Tristia de Ovídio é um diálogo com o livro que, em lugar de seu escritor e como seu mensageiro, viajará à cidade de Roma.

Parue – nec inuideo – sine me, liber, ibis in Vrbem: Ei mihi! quod domino non licet ire tuo.

Vade, sed incultus, qualem decet exulis esse. Infelix, habitum temporis huius habe! Nec te purpureo uelent uaccinia fuco – 5 Non est conueniens luctibus ille color – Nec titulus minio nec cedro charta notetur, Candida nec nigra cornua fronte geras! Felices ornent haec instrumenta libellos: Fortunae memorem te decet esse meae. 10 Nec fragili geminae poliantur pumice frontes, Hirsutus sparsis ut uideare comis.

Ó meu pequeno livro – e não invejo – irás a Roma sem mim: Aonde, ai de mim!, a teu senhor não é permitido ir. Vai, mas sem ornatos como convém ser o de um exilado. Infeliz, exibe o aspecto desta presente situação. Nem as violetas roxas te cubram de púrpura – Não combina com lutos tal cor –

Nem o título de vermelho seja adornado nem de cedro, o papel, Nem leves cornos brancos com uma fronte negra!

Que esses ornatos embelezem livros alegres: A ti, convém a lembrança da minha sorte.

Nem as duas frontes sejam polidas pela frágil pedra-pomes, Para que te vejam hirsuto, de cabelos desalinhados. (trad. Patrícia Prata)

As referências ao luxo de certos volumes – pintados de púrpura, com cornua ornamentados – são de difícil compreensão a quem desconheça o formato do livro em Roma. Mas, mais do que isso, a compreensão da habilidade poética do autor comprometeria, como na imagem de um livro hirsuto, ou seja, coberto de pelos, comparável ao homem que não se barbeia por conta de luto ou de grande dor, pela falta de pedra-pomes.

Marcial, como vimos antes, é autor que privilegia o fazer poético e a escrita como temas em sua obra. Selecionamos dois outros epigramas que tematizam o escrito e que dependem de conhecimento da materialidade do livro para que sua compreensão seja mais completa.

Explicitum nobis usque ad sua cornua librum Et quase perlectum, Septiciane, refers. Omnia legisti, credo, scio, gaudeo verum est.

Perlegi libros sic ego quinque tuos. (Marcial, 11.107)

Desenrolado até os cilindros e como se tivesse sido todo lido, Assim devolves meu livro, Seticiano.

Tu leste tudo; creio, sei, alegro-me, é verdade. Assim eu mesmo li teus cinco livros.

Cicero in membranis

Si comes ista tibi fuerit membrana, putato Carpere te longas cum Cicerone vias. (Marcial, 14,188)

Cícero em pergaminho

Se este pergaminho for teu companheiro, acredita Que tu trilharás longos caminhos com Cícero

É de rupturas e continuidades que se faz a leitura e estudos dos Clássicos, que são também um exercício de pensar tudo em perspectiva; inclusive os dias atuais. Em muito poucos momentos da história como atualmente a questão dos formatos do livro nos preocupou tanto. A sociedade ocidental conviveu durante séculos com um formato que superou múltiplas mudanças e adaptações. O códice passou de um objeto artesanal e manuscrito ao que sai das prensas de uma máquina. No entanto, no fim da primeira década do século XXI, assistimos ao que se anuncia como o embate definitivo que vai acabar com o formato do livro tal como o conhecemos até o presente momento. Todavia, a perspectiva que proporciona a longa história do livro e de seus formatos nos permite ver que não é a primeira vez que esse fenômeno ocorre e que, inclusive, em outros momentos, as mudanças foram de maior monta. Ao longo da história desse produto cultural, estabeleceu-se um constante diálogo entre dois formatos básicos do livro: um, baseado no contínuo; outro, no retângulo. Todos os modelos de livro que se têm sucedido ao longo dos séculos pertenceram, de uma ou de outra maneira, a um desses dois tipos. No contínuo, ou circular, como o chama Iglesias Zoido, se incluem o livro de linho, o rolo de papiro e o modo como hoje se lê uma página de internet, que vamos rolando indefinidamente para baixo. No molde retangular, temos as tabuinhas de argila, marfim, metal, madeira; o códice, de papiro primeiro, depois de pergaminho, de papel; e agora de vidro ou polímero, ou mesmo o intangível suporte virtual. Em todos os casos, encontramo-nos diante dos mesmos modelos, porque, a rigor, sempre fazemos transições, adaptações aos nossos modos de fazer e ser. Assim, do manuscrito ao impresso. Assim nossos editores de texto nos proporcionam folhas, margens, linhas, que imitam as páginas impressas e nossos cadernos. Sem dúvida hoje podemos ter uma grande biblioteca em nossa bolsa, na memória do netbook ou do

tablet – irônico como mesmo no vocabulário mantemos os termos – mas as

transformações, que há, são fluidas, acomodáveis, lentas. Segundo Iglesias Zoido, o fim do livro como o conhecemos hoje, como quer que ocorra, da forma que for, será por imitações e acomodações dos protocolos que hoje temos e que nos fazem o que somos, porque não podemos deles nos livrar em menos do que algumas, muitas, gerações.

Referências

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