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Os primeiros textos cristãos no mundo romano

A Bíblia se trata de uma compilação de 73 livros, divididos em dois grupos, intitulados Testamentos ou Alianças, que correspondem respectivamente à antiga tradição judaica e à tradição cristã. O Novo Testamento (NT) constitui a segunda parte do cânon das Bíblias Cristãs, que tem no Antigo Testamento (AT) a sua primeira parte, e foi escrito em grego koiné1, que era falado nas

comunidades helenizadas da região mediterrânea nos períodos helenístico e romano. Sua redação é datada das chamadas épocas ‘apostólica’(período compreendido entre 30 e 70 da nossa era) e ‘subapostólica’ (70 a 100 d.C.). Trata-se de uma compilação de textos considerados sagrados pelos adeptos, uma vez que trazem a ‘palavra de Deus’ e a experiência do divino, traduzido na pessoa de Jesus Cristo. Este foi interpretado na religião cristã como o Messias (a palavra judaica para ‘ungido’).

No Antigo Testamento, o rito cerimonial da unção servia para conferir certos cargos superiores ou, em outros termos, elevar alguém à dignidade de sumo sacerdote, rei e também profeta. Sua tradução para o grego, ‘Cristo’, tornou-se muito cedo, entre os discípulos, um nome próprio ligado a Jesus e acabou por dar o nome à devoção que se desenvolveu à figura dele. Essa devoção envolvia tanto a crença em Jesus como o salvador, o redentor, político que viria libertar Israel do domínio estrangeiro (o Messias-rei, descendente de Davi), como a crença em sua origem divina, que estava associada à compreensão de que ele ressuscitara dos mortos. Esta última prevaleceu e levou à noção de Jesus como o ‘filho de Deus’ (ver Gálatas 1:16a) e/ou o próprio Deus (João 1:1).

Segundo Robin Lane Fox, a crença cristã no texto como sendo a palavra de Deus é uma continuação da concepção judaica da escrita da lei (da história) por mãos divinas: “os cristãos rapidamente estenderam a mesma divina autoria a seus autores ‘apostólicos’, embora estes [diferentemente dos textos judaicos] fossem muito menos remotos no tempo” (1998, p. 158).

É importante salientar, no entanto, que a produção de textos ligados à fé cristã não data do princípio do movimento, uma vez que o próprio Jesus nunca deixou textos escritos a seus discípulos e nem seus primeiros seguidores 1 Excetuando-se alguns textos primeiramente redigidos em aramaico, como a versão aramaica do evangelho de Mateus.

assim o fizeram. Os primeiros textos cristãos foram simples cartas enviadas pelo missionário Paulo de Tarso às comunidades que ele estabeleceu ao longo da região oriental do Mediterrâneo romano em suas viagens de divulgação da Boa Nova cristã. Tais cartas tratavam de questões particulares, próprias do contexto de cada comunidade. A necessidade de se narrar a vida e os feitos de Jesus só apareceu mais de trinta anos após a sua morte (ao longo da década de 60 d.C.), quando as testemunhas oculares do tempo de Jesus começaram a morrer e a história dele correu o risco de não ser lembrada às gerações posteriores.2

Dessa forma, os quatro primeiros livros (os evangelhos) que compõem o NT se ocupam da narração da vida, morte e ‘ressurreição’ de Jesus Cristo e constituem fontes de seus ensinamentos. O termo evangelho, do grego euaggelion, tinha no grego koiné o significado de uma boa notícia ou Boa Nova e também o anúncio da chegada de uma personagem famosa. Com a pregação cristã, ele adquiriu como sentido a mensagem que Jesus Cristo veio trazer. O consenso maior na historiografia do NT é que os evangelhos compreendem tradições orais e escritas de determinadas comunidades cristãs apostólicas retrabalhadas por quatro redatores da época subapostólica, embora sob a autoridade de um nome apostólico.

Os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas seguem certa tradição, chamada a tradição petrina. São considerados sinópticos porque possuem a mesma estrutura narrativa: concordam entre si no que diz respeito aos principais eventos da vida de Jesus, diferindo em detalhes e em alguns ensinamentos atribuídos a Jesus. Lucas e Mateus são ainda mais próximos um do outro no que se refere a certos ensinamentos dele, a tal ponto que a existência de uma fonte oral comum – a fonte ‘Q’3 – é defendida por um número significativo

de pesquisadores. Já em relação ao evangelho de João, diferem bastante4.

Este, de tradição muito antiga, muito possivelmente do próprio apóstolo, foi posteriormente, em função da elaborada teologia nele expressa, retrabalhada e compilada por discípulos dele.

O conjunto de textos canônicos, isto é, oficiais, que compõem o NT integra, além dos quatro evangelhos, 21 epístolas, um livro de atos e um apocalipse. O livro de Atos dos Apóstolos, como veremos em detalhes no próximo item, narra a história da expansão da mensagem cristã na época apostólica, enfatizando a ação missionária de Paulo em relação à dos doze apóstolos, dentre os quais o próprio Pedro (que recebe destaque no livro somente na primeira metade dele).

Além desses livros e do Apocalipse, o gênero epistolar, como vemos, é privilegiado no cânon cristão. Trata-se do prolongamento da 2 Dito isso, torna-se evidente o fato de que a reunião em um cânon de textos cristãos é um processo tardio (se tivermos em mente as primeiras gerações de discípulos cristãos) e que serve a propósitos diversos, específicos de seu contexto, como veremos em detalhes, na segunda parte deste texto.

3 Sua designação vem da inicial da palavra alemã ‘Quelle’, que significa ‘fonte’. Trata-se de um evangelho reconstruído que, supõe-se, conteria as palavras e os discursos de Jesus. Ver: Burton Mack (1994). 4 Os evangelhos apócrifos diferem ainda mais dos mencionados, e de acordo com M. Goodman (1997, p. 317-318) esta é uma provável razão para sua exclusão do cânon na época em que este foi estabelecido, no século II d.C.

comunicação oral direta, “a comunicação à distância fixada por escrito” (FABRIS, 1996, p. 90). A epistolografia das origens cristãs (cerca 50-150 d.C.) contém analogias estruturais e linguísticas às cartas greco-romanas do mesmo período, mas também apresenta características próprias. A língua utilizada é o grego popular – o grego koiné – cuja escrita é interpolada por particularidades procedentes da Bíblia grega – a Septuaginta (tradução da Bíblia hebraica redigida no Egito e finalizada, segundo a tradição, em 250 a.C.) – e da linguagem das sinagogas da diáspora judaica.

No NT, mais da metade das epístolas/cartas pertence ao corpus paulino (14 delas), das quais apenas sete são consideradas autênticas, segundo consenso quase unânime dos especialistas. No corpo das epístolas de Paulo, aparecem diversos gêneros literários5 e formas de expressão: trechos autobiográficos que

têm por fim exaltar sua condição de Apóstolo de Cristo, trechos apologéticos e outros, polêmicos. Além disso, é forte também a influência da literatura escatológico-apocalíptica judaica, característica do período no qual Paulo escreve, o judaísmo tardio.

Já um consenso em relação ao inverso, ou seja, no que diz respeito à desconsideração de Paulo como autor, só existe para com a décima quarta epístola, a Epístola aos Hebreus, anônima, que lhe foi atribuída a partir do século II d.C. As demais seis epístolas (2 Tessalonicenses, Colossenses, Efésios e as chamadas ‘epístolas pastorais’, isto é, 1 e 2 Timóteo e a epístola a Tito) são, de acordo com um maior ou menor consenso da crítica textual, pseudoepígrafas, isto é, “foram escritas posteriormente por um anônimo que se escondeu por trás do nome do prestigioso Apóstolo [...]. Não estamos, porém, diante de falsificações, mas de testemunhos da tradição” (BARBAGLIO, 1993, p. 202-203).

Tais testemunhos da tradição, no que se refere a cartas atribuídas a autores maiores ou a mestres (no caso das escolas filosóficas), são muito recorrentes entre os documentos antigos que chegaram à atualidade. Assim aconteceu com determinadas cartas que vieram à luz sob os nomes de Platão, Aristóteles ou Demóstenes. No caso do Antigo Testamento, como o melhor exemplo dessa tradição de escritos pseudoepigráficos está a Torá (ou Pentateuco)6

que foi transmitida sob a autoridade de Moisés. E dentro desse contexto se encaixa também uma série de escritos cristãos primitivos cujo “intuito [...] era conservar, atualizar e defender a doutrina apostólica” (BARBAGLIO, 1993, p. 203).

Averil Cameron assevera neste sentido:

Saídos da estrutura do judaísmo, e vivendo como eles viviam no Império Romano e no contexto da filosofia grega, da prática pagã e das ideias sociais contemporâneas, os cristãos

5 O gênero literário de um discurso é definido, segundo C. H. Holman em A Handbook to

Literature (1972, p. 232), pelos atributos que ele tem em comum com outros discursos. Tais atributos comuns, segundo C. F. Cardoso (1999, p. 103), devem ser reconhecidos mais ou menos explicitamente nas diferentes sociedades e épocas históricas.

6 A palavra hebraica Torah tem o sentido literal de ‘doutrina’, mas se traduz comumente por ‘lei’. Constitui o centro da religião judaica: “o ensino oficial distinguiu-a entre a Torá escrita – no sentido rigoroso: o Pentateuco; mas no sentido mais amplo: o cânon das Escrituras – e o seu complemento necessário, a Torá oral” (VERMES, 1990, p. 9).

construíram para si um novo mundo. Eles assim fizeram em parte por meio da prática [...] e em parte por meio de um

discurso que foi ele próprio constantemente controlado e disciplinado (1994, p. 21, grifos nossos).

Os autores acima citados tratam, cada um à sua maneira, de uma questão crucial ligada à formação da literatura cristã: Giuseppe Barbaglio, ao mencionar uma ‘defesa da doutrina apostólica’, e Averil Cameron, ao discorrer sobre a forma como ‘o discurso cristão foi controlado e disciplinado’, remetem à tentativa de construção de uma ortodoxia sobre a natureza de Cristo, a história inicial dos cristãos, em suma, sobre todas as questões que compunham a doutrina cristã. Essa busca por construir a ortodoxia foi iniciada na segunda metade do século II d.C. pelos bispos cristãos através da definição de um cânon de textos que deveriam ser considerados sagrados e mais importantes para os cristãos, o Novo Testamento. Nesse processo, o texto de Atos dos Apóstolos desempenhou um papel-chave.

O universo canônico: Atos dos Apóstolos