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No Império Romano, ainda que tenha ocorrido entre os séculos I e II d.C. um aumento do número de leitores, como sugerem estudos tendo por base a frequência de cenas de leitura presentes nos afrescos, mosaicos e baixo relevos e o florescimento, nas principais cidades, das tabernae librarie (livrarias), cada vez mais numerosas ao longo do período imperial (CAVALLO, 2002, p. 76), não resta dúvida de que o número de alfabetizados não deveria ser expressivo, pois o acesso à educação formal (paideia), mesmo em nível elementar, como aquela provida pelo mestre-escola e pelo grammaticus, sempre foi, no Mundo Antigo, uma tarefa difícil, especialmente nos meios rurais, onde se concentrava a maioria da população. Por esse motivo, as imagens em Roma, assim como na Grécia, ocuparam desde cedo uma posição de destaque quando se tratava de comunicar uma mensagem, encontrando-se dispersas sobre os mais variados artefatos de uso cotidiano (vasos, moedas, amuletos, lamparinas, sarcófagos), sem mencionar as modalidades clássicas de expressão artística, como a pintura, a escultura e o próprio mosaico. Ao contrário dos textos literários, muitos dos quais eram conhecidos na íntegra apenas por uma elite suficientemente letrada para dominar a obra de autores como Virgílio, Tito Lívio, Sêneca e outros, as imagens circulavam livremente de um lado a outro do Mediterrâneo, compondo assim uma rede de transmissão e recepção de informações de longo alcance. A esse respeito, merecem certamente destaque as estátuas que, erguidas pelas cidades em honra ao imperador ou aos membros das elites senatorial e local, cumpriam o importante papel de reforçar o prestígio dos líderes aristocráticos (os boni, clarissimi e optimi), constituindo, portanto, um eficaz veículo de comunicação política. Atentos à importância do uso sociocultural das imagens entre gregos e romanos e influenciados pela “virada pictórica” que se delineava a partir da década de 1970, os especialistas em História Antiga deram início à exploração sistemática da cultura material (e das imagens nela contidas) como fonte para o estudo de inúmeros aspectos da Antiguidade, dispensando aos vestígios arqueológicos um cuidado até então inédito. Nesse percurso, foram guiados por duas diretrizes: a) a compreensão da imagem como um “texto”, ou seja, como uma seleção de motivos icônicos cujo arranjo, longe de ser fortuito,

visa a transmitir uma mensagem ao receptor, ainda que esta mensagem possa assumir significados distintos em função da polissemia subjacente a todo signo visual ou linguístico; b) a suposição de que o produtor das imagens, seja ele o responsável pela encomenda da obra ou mesmo o artesão que a executa, mantém com a sociedade da qual faz parte uma relação dialógica, exprimindo visualmente ideias, valores e concepções extraídas do patrimônio cultural comum, mas interferindo no sentido de reforçar ou de submeter à crítica esse mesmo patrimônio. Desse modo, clientes e artífices são capazes, em maior ou menor grau, de exercer influência sobre as expectativas e o comportamento da audiência, o que requer de nós um olhar mais atento às imagens que os antigos nos deixaram (BUSTAMANTE, 2003, p. 315).

Dentre as formas de expressão imagética que floresceram no Império Romano, uma das mais apreciadas foi a arte dos mosaicos. Ainda que alguns autores não os considerem uma modalidade artística de primeira grandeza nem lhes atribuam maior importância como fonte visual – e, quanto a isso, a ausência de um capítulo ou mesmo de uma seção dedicada aos mosaicos numa obra como a de Peter Burke (2004) é apenas mais um exemplo dentre muitos – não podemos deixar de reconhecer que, tanto em termos quantitativos como em termos qualitativos, os mosaicos constituem documentos valiosos para o estudo da vida cotidiana das sociedades antigas, iluminando práticas e representações que têm como cenário os ambientes públicos (termas, templos, teatros, anfiteatros) e privados, muitas das quais somente são passíveis de visualização por intermédio da arte musiva, uma arte que, pelas suas próprias condições de produção, estava destinada a vencer o tempo e a degradação. O termo “mosaico” deriva das Musas, as nove divindades clássicas tidas como

Figura 2: A imperatriz Teodora e sua comitiva. Opus musivum proveniente da igreja de São Vital, em Ravena (século VI)

protetoras das ciências e das artes. A origem da técnica remonta ao antigo Oriente Próximo (3000 a.C.), embora a arte musiva propriamente dita tenha surgido em território grego na transição do período clássico para o helenístico. Os exemplares mais antigos que podemos datar com segurança são os mosaicos bicromáticos (branco e preto) provenientes de Olinto, cidade grega das margens do Egeu arrasada pelos macedônios em 348 a.C. Instalados no chão da sala de jantar (triclinium) de residências da elite local, os mosaicos reproduzem cenas mitológicas, como a de Belerofonte matando a Quimera e a de Dioniso com seu séquito de sátiros e bacantes. No início, os mosaicos helenísticos eram confeccionados com seixos até que, no século III a.C., passaram a ser empregadas as tesserae (ou tessellae), pequenos cubos de pedra, vidro ou terracota com não mais do que 4 ou 5 cm e cuja principal vantagem, em comparação aos seixos, era a maior variação de cores, o que permitia aproximar as composições musivas das pinturas. Conquanto não saibamos ao certo onde esta inovação teve lugar, foi nos reinos helenísticos dos Atálidas (Pérgamo) e dos Lágidas (Egito) que o emprego das tesserae gozou de imediata receptividade, daí se difundindo por toda a bacia do Mediterrâneo oriental. Com o domínio progressivo dos romanos sobre o Oriente ao longo dos séculos II e I a.C., a Península Itálica começa a receber os influxos da cultura helenística, o que se traduz na importação maciça de técnicas, instrumentos e manifestações artísticas, dentre as quais a arte musiva, ocorrendo inclusive a importação de mosaicos fabricados no Oriente para decorar as residências da elite romana. Não que os mosaicos fossem completamente desconhecidos dos romanos antes dessa época, pois tanto os cartagineses do norte da África e da Sicília quanto os gregos das poleis do sul da Península Itálica, povos com os quais Roma manteve desde cedo intensos contatos políticos e comerciais, já confeccionavam mosaicos. No entanto, é apenas na fase final do período helenístico que os mosaicos são apropriados pelos romanos como um sofisticado recurso de decoração que será, mais tarde, integrado à lógica da própria expansão imperial, quando teremos a ampla difusão da arte musiva pelas províncias ocidentais (LING, 1998, p. 19 e ss.).

No Império Romano, assim como no mundo helenístico, os mosaicos eram utilizados exclusivamente para decorar ambientes arquitetônicos. Consistindo na inserção de pequenas peças de material resistente sobre uma superfície de cimento ou reboco, os mosaicos se prestavam bastante bem à reprodução de temas geométricos (os mais comuns), vegetais ou figurativos (homens e animais), o que lhes permitiu inclusive suplantar a pintura como principal técnica de decoração de interiores. No estudo dos mosaicos antigos, os especialistas costumam dividi-los em dois grandes grupos, de acordo com o local onde eram instalados: o opus tessellatum (Fig. 1), assentado no pavimento dos edifícios e residências, e o opus museum ou musivum (Fig. 2), os mosaicos das paredes e abóbadas3. A maioria esmagadora dos mosaicos romanos que

3 Além dessa divisão primária entre opus tessellatum e opus musivum, há ainda outras duas categorias de mosaicos: o opus sectile (Fig. 3), confeccionado com peças maiores de pedra ou vidro cortadas no formato de losangos, quadrados, triângulos e polígonos, e o opus vermiculatum (Fig. 4), confeccionado com tesserae minúsculas, donde deriva o seu nome, pois vermiculus significa verme, larva.

chegaram até nós é do tipo opus tessellatum, o que se deve, em parte, aos acidentes de preservação, pois, em se tratando de uma construção antiga, a primeira parte a ruir são justamente o teto e as paredes, cujos destroços, ao se depositarem sobre o mosaico de chão, terminam por protegê-lo das oscilações climáticas e da depredação humana. Por esse motivo, os exemplares de opus

musivum provenientes das residências e dos edifícios públicos romanos são

bem poucos. Somente a partir do período cristão, com as séries de mosaicos das igrejas, é que passaremos a ter uma quantidade maior de material dessa natureza. Todavia, o maior número de mosaicos de chão do qual dispomos não se deve tão somente aos acidentes de preservação, mas também ao caráter extremamente funcional do opus tessellatum em comparação ao opus

musivum. Dado o gosto romano pela decoração dos pavimentos, os mosaicos,

bastante duráveis, representavam uma excelente alternativa, podendo resistir ao desgaste do trânsito incessante de pessoas sobre a sua superfície, ao passo que, no caso das paredes e abóbadas, era possível recorrer a meios menos dispendiosos de decoração, como afrescos e pinturas (BUSTAMANTE, 2009, p. 85). Na realidade, o opus musivum era próprio de edifícios mais imponentes, como os palácios imperiais e as basílicas cristãs, além das termas. Por outro lado, como pondera Ling (1998, p. 10), o emprego maciço do opus tessellatum não resultou apenas de um cálculo de custo e benefício, mas também das suas potencialidades estéticas, uma vez que os artesãos, manipulando tesserae multicores, eram capazes de criar belos efeitos visuais.

As tesserae de cor negra, branca e cinza eram confeccionadas com

rocha calcária ou, em casos mais raros, com mármore. A ardósia e o basalto também poderiam fornecer o preto e o cinza. O vermelho, o amarelo e demais tonalidades eram obtidas por meio da terracota (o mais usual) ou de pedras naturais. Cores difíceis de encontrar em pedra ou terracota, como o azul e o verde, exigiam o recurso ao vidro, o que encarecia a obra, além de torná-la menos durável. Para confeccionar as tesserae, supõe-se que o artesão cortasse a matéria-prima em tiras e depois, com o auxílio de martelo e cinzel, fosse destacando os cubos (BUSTAMANTE, 2009, p 88). Na montagem do mosaico, costumava-se dispor primeiro uma ou duas camadas de cimento, totalizando entre 5 a 8 cm. Em seguida, vinha uma camada mais fina sobre a qual eram assentadas as tesserae. Como a tarefa consumia amiúde vários dias, os artesãos trabalhavam por seções, demarcando o cimento fresco com incisões e preenchendo em seguida os espaços com as tesserae. Ao que tudo indica, os mosaicos romanos eram produzidos de modo direto, ou seja, por inserção das

tesserae sobre o cimento fresco, evitando-se assim a técnica de reversão, na

qual as peças são coladas ao reverso sobre um painel de tecido ou algum outro material de fácil remoção e depois apostas de uma só vez sobre o chão ou a parede. Desse modo, os mosaicistas do Império preferiam trabalhar no próprio local de instalação da obra. Apenas algumas cenas mais detalhadas poderiam eventualmente ser compostas na oficina do artesão e depois inseridas no painel. Essas peças, transportadas de um lugar ao outro, eram denominadas emblemata. Uma vez concluída a composição, vinha a fase do acabamento, que envolvia

o polimento e o nivelamento. Era fundamental que a superfície do mosaico de pavimento fosse completamente plana, pois o desnível na instalação poderia provocar o deslocamento das tesserae e a gradual desintegração da obra. Já o mosaico de parede não requeria o mesmo cuidado, pois um dos seus atrativos estéticos era justamente a irregularidade da superfície (LING, 1998, p. 14-16).

Ainda que o opus tessellatum fosse de fabricação menos onerosa do que o opus musivum e que houvesse diferentes tipos de mosaico, desde os bicromáticos e geométricos até os policromáticos e figurativos, é importante não perder de vista que a arte musiva não se encontrava à disposição de todas as camadas da população. Pelo contrário, os mosaicos constituem uma técnica de decoração refinada ao alcance principalmente da aristocracia e, quando muito, de alguns setores médios urbanos, como os comerciantes. Embora possam ser encontrados em diversos edifícios públicos, com destaque para as termas e igrejas, os mosaicos romanos que conhecemos provêm, em sua maioria, das residências da elite, que por meio deles eternizavam em pedra suas preferências, valores e crenças, ao mesmo tempo em que reafirmavam o seu prestígio diante dos pares, não sendo por acaso que os mosaicos maiores e mais suntuosos eram instalados nas salas de recepção (oeci) e de jantar (triclinia), aposentos nos quais os notáveis tinham por hábito receber os seus convidados ao cair da tarde para cear e debater os mais variados assuntos (BUSTAMANTE, 2002, p. 331). Nesse contexto, os temas escolhidos pelo cliente para figurar nos mosaicos conectavam-se com a cosmovisão do grupo ao qual pertencia, como comprova a predominância, nos mosaicos figurativos da fase imperial, de referências à mitologia greco-romana, espinha dorsal da paideia; às formas de lazer cívico (ludi gladiatorum, combates de feras, mimos e pantomimas), cujo patrocínio era motivo de enaltecimento público; aos esportes, especialmente a arte da caça (cinegética), um passatempo dos mais ricos; e ao cotidiano das

villae, das propriedades rurais da aristocracia. Ling (1998, p. 134-135) sugere

que a interpretação do significado desses temas seja uma operação arriscada na medida em que a presença, nos mosaicos, de temas mitológicos ou outros não constituiria uma evidência segura acerca da crença ou das reais intenções do cliente. Para o autor, a escolha dos temas ocorreria de modo banal, aleatório, envolvendo por vezes a consulta a livros-moldes, cuja existência é atestada, mas dos quais infelizmente não possuímos nenhum exemplar. Ling supõe também que a motivação do proprietário poderia obedecer, em certos casos, ao desejo de tornar a residência mais elegante para si mesmo e para os visitantes, uma meta que seria alcançada recorrendo-se a elementos da cultura clássica.

Uma opinião como essa, é bom que se diga, prende-se a uma interpretação por demais restritiva acerca das composições musivas. Ainda que pudessem ser instalados em praticamente todos os aposentos, caso o proprietário dispusesse de recursos suficientes para tanto, os mosaicos mais luxuosos, ou seja, os policromáticos e figurativos, alguns dos quais de amplas proporções, eram destinados aos oeci e triclinia, constituindo parte integrante de celebrações nas quais anfitriões e convidados discutiam os mais variados assuntos e assistiam a performances literárias e artísticas, como recomendavam as regras

do symposium. Isso implica concluir que os mosaicos, embora circunscritos ao interior das residências urbanas e rurais, adquiriam, em certa medida, uma dimensão pública, pois eram consumidos por integrantes da elite local e das ordens superiores da sociedade romana. Reunidos nos oeci e triclinia, anfitriões e convidados estabeleciam relações de sociabilidade que incluíam, sem dúvida, articulações de natureza política e o debate de assuntos concernentes à vida cívica que, no momento, despertassem o interesse. Em recintos tão valorizados como os oeci e triclinia, a arte musiva desempenhava um papel central em termos decorativos, dado que não deve ser desprezado quando se trata de avaliar o seu impacto social. Atentos a isso, os pesquisadores têm atualmente se empenhado em recolocar os mosaicos greco-romanos no seu devido contexto, uma vez que muitos deles integram hoje o acervo dos museus e galerias europeus e norte-americanos, não sendo incomum encontrarmos dispersos pelo mundo painéis que outrora faziam parte do mesmo conjunto musivo, circunstância que dificulta a correta percepção acerca das nuances estéticas das composições. O que tem motivado os pesquisadores numa tarefa tão difícil como essa é a constatação de que os mosaicos faziam parte de um cenário no qual a disposição dos assentos, as eventuais entradas e saídas, a ereção de fontes, estátuas e pórticos, as dimensões do aposento e a possibilidade de o indivíduo se colocar de pé sobre o mosaico interferiam diretamente na perspectiva de observação. Em outras palavras, na confecção dos mosaicos os artífices orientavam-se por regras visando a otimizar as potencialidades estéticas da obra, o que somente reafirma a posição de destaque da qual esta gozava. Difícil crer que com tantos cuidados os clientes não atribuíssem um valor afetivo ao que era representado. Um reforço ao argumento segundo o qual os clientes deveriam ser bastante ciosos na escolha dos temas da arte musiva provém da constatação de que, uma vez instalados, os mosaicos permaneceriam em uso por décadas a fio, não sendo a sua substituição uma operação das mais simples, como ocorre hoje com o papel de parede ou os pisos sintéticos. Ainda a esse respeito, é bom lembrar que, muito embora os mosaicistas pudessem se apoiar em cadernos de moldes e que diversos motivos tenham sido reproduzidos continuamente ao longo dos séculos, nenhum mosaico é idêntico ao outro, variando conforme as dimensões, a forma e a função dos aposentos que decoravam, os materiais disponíveis, a habilidade técnica do artesão e, acima de tudo, as predileções do proprietário (BUSTAMANTE, 2009, p. 94). Isso equivale a dizer que, em se tratando da arte musiva, não estamos lidando com utensílios produzidos em série, mas com objetos artesanais de um expressivo conteúdo estético que exibem notáveis singularidades quando comparados entre si.

Ao contrário de Ling, acreditamos que os mosaicos, em virtude da natureza e da função do suporte, constituam testemunhos indispensáveis quando se trata de captar as variações de sensibilidade e comportamento no Império Romano, e isso não apenas em termos temporais, mas igualmente em termos espaciais, pois a tradição musiva praticada no norte da África, por exemplo, conserva características próprias que a distinguem da tradição musiva da Península Ibérica ou do Oriente Próximo. A qualidade da informação

transmitida pelo mosaico e, por extensão, o seu maior ou menor potencial para servir a uma história cultural, social, política ou mesmo econômica dependerão dos interesses do pesquisador e da sua habilidade em formular perguntas para as quais os mosaicos possam fornecer respostas, procedimento análogo àquele que é adotado quando analisamos um diário de viagem, uma correspondência ou um inventário. O fundamental, no entanto, é não ignorar que os mosaicos, instalados via de regra em ambientes nos quais circulava um maior número de pessoas, atendiam às exigências de uma elite que buscava alcançar dois propósitos: afirmar a sua opulência, pois os mosaicos, como dissemos, eram artefatos de confecção onerosa; e exibir os traços distintivos de uma cosmovisão compartilhada, donde resulta que os mosaicos eram artefatos que concorriam para a configuração de uma determinada identidade. E mesmo que a arte musiva antiga, como de resto qualquer outra manifestação artística, não fosse isenta dos seus topoi, das suas fórmulas canônicas, devemos argumentar que um topos iconográfico nunca se reduz a um estereótipo insípido e inócuo, a uma mera

praxe ou convenção, como querem alguns, pois enquanto ele estiver em uso, isso significa que os usuários reconhecem nele um propósito. Quando um topos não for mais tido como válido, ou seja, como um elemento indispensável à composição, a tendência será o seu desaparecimento. Por essa razão, devemos desconfiar de análises como as de Ling (1998, p. 109), que interpretam os temas próprios da cultura clássica presentes nos mosaicos da fase final do Império Romano como elementos “profanos”, ou seja, não cristãos, empregados como “deferência a uma tradição decorativa persistente”, sugerindo uma cisão

Figura 3: Competição de aurigas. Opus sectile proveniente da tumba de Júnio Basso, em Roma (séc. IV)

temerária entre o que é representado e as crenças dos consumidores da obra, pois, se assim fosse, a presença do Chi-ro, o monograma de Cristo, e da pomba numa lápide ou num sarcófago não nos autorizaria a afirmar que o defunto ou sua família fossem adeptos do cristianismo, uma conclusão que os especialistas prontamente refutariam. A estratégia mais prudente ao nos deparamos, nos mosaicos dos séculos IV e V, com temas e motivos extraídos do repertório mitológico greco-romano ou conectados com o modus vivendi da cidade clássica seria tomá-los como indício de que a assim denominada “cristianização” do Império foi um processo muito mais complexo do que costumamos supor, difundindo-se de modo descontínuo por entre o tecido social, num movimento semelhante àquele que ocorre em termos topográficos. Julgamos que uma situação como essa vigora em Antioquia, cidade que nos legou a maior coleção de mosaicos de pavimento oriundos das províncias orientais do Império.