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Os grafites de Pompeia e a diversidade

Os grafites a que me refiro são incisões de estiletes feitas nas paredes internas e externas de casas, muros e edifícios públicos e, por serem pequenos, 1 Tais peças encontram-se, até hoje, sob a guarda do Museu Nacional no Rio de Janeiro. Cf.: <http://www. museunacional.ufrj.br/MuseuNacional/arqueologia/Cult_Mediter.htm>.

as pessoas precisavam se aproximar das paredes para poder lê-los. Registrados desde o século XIX no CIL (Corpus Inscripitionum Latinarum), foram pouco estudados pela academia, ainda que, como apontou Feitosa (2005), haja mais de onze mil registros no Corpus. Mesmo que Tanzer (1930) excepcionalmente tenha defendido sua importância para conhecermos aspectos do cotidiano romano na década de 1930, Cebe (1966), como a maioria dos estudiosos, considerava a escrita vulgar demais para ser analisada. Assim, no ramo da Epigrafia há uma clara preferência para as pesquisas sobre as inscrições monumentais ou funerárias, em especial lápides de cidadãos importantes para se discutir a linhagem política de pessoas de renome nas cidades romanas, e as cotidianas têm sido mais estudadas nas últimas três décadas2.

Um dos argumentos centrais para os poucos estudos realizados sobre os grafites é o fato de muitos serem anônimos e fragmentados e, por isso, não constituírem um corpus e tampouco um objeto para estudo. Abel e Buckley (1977), no final dos anos de 1970, rebatem essas afirmações, pois para eles o estudo deve ser feito considerando o contexto e, no caso de Pompeia, constituem relatos espontâneos da vida cotidiana e permitem entender os temas que ocupavam as pessoas comuns. Além disso, o que parece banal pode ser desafiador para linguistas, historiadores e arqueólogos, pois para os primeiros há a possibilidade de pensar as alterações nas formas da escrita do latim e grego, para os segundos a materialização de temas sobre o presente daqueles que escrevem.

De fato, um dos aspectos mais instigantes que as paredes de Pompeia trazem é essa possibilidade de rearticular modos de pensar efêmeros e fluidos da experiência humana no passado. Por serem fragmentados, quando selecionamos e montamos um corpus de estudo acabamos por nos surpreender com a diversidade de temas para reflexões, essa fluidez permite que se construa uma leitura mais dinâmica do passado e nos desafia a rever os preconceitos modernos. Desde as letras do alfabeto cunhadas em paredes de edifícios públicos e privados por crianças (GARRAFFONI; LAURENCE, comunicação inédita) aos xingamentos, piadas e declarações de amor dos adultos de diferentes idades e camadas sociais, nos deparamos com um universo de declarações sobre as paixões cotidianas.

Mas quem eram as pessoas que escreviam nessas paredes? É possível saber quem foram? Funari (1989; 2003a) e Feitosa (2005) fizeram um amplo levantamento e constaram que a maioria dos grafites é anônima; no entanto, dos que estão assinados temos agricultores, gladiadores, artesãos, vendedores de comida (padeiros, boleiros, servidores de bebidas, taberneiros, entre outros), criadores de animais (asnos, bestas, galinhas), escravos, feirantes, para citar alguns exemplos. Ou seja, embora não saibamos exatamente como se dava o processo de alfabetização das diferentes camadas sociais, pela quantidade de inscrições encontradas é possível pensar que escrever nas paredes, entre os minimamente letrados, tinha um caráter público (qualquer um poderia ler, comentar ou modificar o grafite) e constituía um importante meio para 2 Sobre a importância do estudo da Epigrafia monumental, cf., por exemplo, Alföldy (2003); McMullen (1982); López Barja (1987); Meyer (1990).

circulação das ideias e visões de mundo3.

Cabe ressaltar que as inscrições são diversas na língua ‒ a maioria está em latim, mas é possível encontrar exemplares em grego e osco ‒ e, também, na temática. Nas paredes de Pompeia encontram-se piadas, caricaturas, sátiras políticas, declarações de amor, xingamentos, letras, desenhos variados, referências às lutas de gladiadores ou caçadas, a amantes, a inimigos, a amigos, pedidos aos deuses, paródias dos cânones literários ou seus trechos, além dos que mesclam línguas ou letras dos alfabetos... Essa diversidade era conhecida e difundida na antiguidade, pois Plínio o Jovem afirmou em uma de suas cartas (8,8, 7): “lerás, muitas vezes, em todas as paredes e em todas as colunas, muitos grafites escritos por muitas pessoas” (FUNARI, 2003a, p. 80). Diante da imensa quantidade de inscrições e a variedade de assuntos, optei em selecionar, para essa ocasião, um pequeno corpus de inscrições que remetem às paixões da vida para essas pessoas. Nesse sentido, selecionei alguns grafites que falam sobre felicidade, amor, proteção e encontros íntimos4.

1.(Grat)ae nostrae feliciter (perp)etuo

rogo domna per (Venere)m Física te rogo ni me (...)us babeto mei memoriam.

(CIL IV, 6865)

[A minha querida Grata, com felicidade eterna. Te peço, senhora minha, por Vênus Física, que você não se esqueça de mim. Me tenha sempre em teus pensamentos!]5

2. Si potes et non uis cur gaudia differs spemque foues et cras

usque redirei ubes? (Er)go coge mori quem sine te uiuere coges. Múnus erit certe non cruciasse boni. Quod spes eripuit spes certe redd(i)t amanti.

(CIL, IV, 1837)

[Se você pode e não deseja, porque adia a felicidade e acalenta a esperança, me dizendo sempre para retornar amanhã? Assim você força a morrer alguém que obriga a viver sem ti. Será um presente ao menos não me atormentar. Certamente a esperança devolve ao amante o que a própria esperança arrebatou.] 3. (H)ic sumus felices. Valiamus recte.

(CIL, IV, 8657)

[Aqui somos felizes. E continuamos firmes.] 4. (H)ic (h)abitamus: felices nos dii faciant (CIL, IV, 8670)

[Aqui habitamos. Que os deuses nos façam felizes.] 5. Hysocryse puer Natalis uerpa te salutat

(CIL IV 1655)

[Jovem Hysocrysus, Natalis o falo te saúda]

3 Sobre a questão da alfabetização, cf. a dicussão de Funari (2003a, p. 69-90)

4 Alguns dos grafites comentados a seguir se encontram em outras publicações, mas foram adaptados e reinterpretados para o contexto da presente discussão. Para outras possibilidades de interpretação e discussão dos mesmos grafites, cf. Feitosa (2005); Garraffoni (2007); Feitosa e Garraffoni (2010); Garraffoni e Sanfelice (inédito).

6. Fututa sum hic (CIL IV 2217) [Aqui fui possuída] 7. Albanus cinaedus est (CIL IV 4917)

[Albanus é um cinaedus] 8. Crescens Publicus cinaedus (CIL IV 5001)

[Crescens Publicus é um cinaedus]

Essas oito inscrições foram destacadas com a intenção de exemplificar a diversidade de grafites à qual me referia há pouco. Há grafites extensos e poéticos, outros mais sintéticos e diretos; grafites que expressam sentimentos, busca por proteção e afetividade; ainda outros que indicam conflitos e xingamentos. Alguns são simples relatos da necessidade de marcar sua passagem ou estadia pela cidade; outros registram lugares de prazer ou felicidade. Por constituírem fragmentos da vida cotidiana, sua reunião aqui pode nos ajudar a pensar o dia a dia dos romanos em Pompeia, suas preocupações, sonhos e rancores. Vejamos, então, como podem, na prática, trazer outras percepções sobre o passado romano, iniciando uma reflexão sobre a felicidade para, em seguida, pensar a dinâmica dos encontros íntimos.

Nos grafites 1, 3 e 4, os termos traduzidos como “felicidade” são feliciter,

felices, felicitas, todos derivados de um mesmo termo latino ‒ felix. Em seu sentido

original, felix significa “fértil”, “fecundo”, “favorável”, tornando seus derivados termos que significam a um só tempo “felicidade”, “fertilidade”, “abundância” e “sorte”, dependendo do contexto em que se encontram. Já no grafite 2, o termo encontrado para designar felicidade é gaudia, que pode ser traduzido como “alegria”, “gosto do bem presente”, “prazer interior”. Esses diferentes sentidos são fundamentais para pensarmos sobre as inscrições selecionadas.

A primeira é uma súplica amorosa feita a Grata, intermediada pela deusa Vênus, para que aquela receba felicidade eterna e não se esqueça do amor que vivera com o autor da inscrição. Já os grafites 3 e 4 são registros mais sintéticos de momentos vividos e desejos de que os enamorados sigam juntos com a permissão dos deuses. Todos esses grafites se referem ao campo afetivo, buscam pela manutenção do amor e felicidade, com a permissão dos deuses, e, como destaca Feitosa (2005), não necessariamente remetem a uma noção muito difundida na historiografia na qual a virilidade seria o atributo maior da masculinidade e, consequentemente, justificaria o domínio e submissão da companheira. Esse tipo de interpretação, na qual a masculinidade se resume à virtude daquele que detém o poder para comandar a vida política é cunhada a partir de interpretações de leis e textos escritos pela elite romana, mas não necessariamente é a única forma de experimentar a vida, como nos faz pensar as inscrições destacadas. O que chama a atenção nessas três inscrições é a lógica menos hierárquica do cotidiano romano, ao menos daqueles que não

faziam parte das elites, o que nos leva a crer que domínio não era a única forma de relação afetiva entre homens e mulheres. Estamos, portanto, diante de registros menos convencionais para se pensar o universo masculino romano, pois o grafite 1, direcionado a Grata, é uma súplica masculina por felicidade e amor, enquanto os 3 e 4 são pedidos de compartilhamento de bons momentos entre casais apaixonados ou de proteção aos deuses para que a felicidade siga presente em suas casas.

Por sua vez, a inscrição 2 se insere em um ambiente emotivo por outro viés, pois destaca a dor e a frustração amorosa. Apesar do revés, a noção de felicidade daquele que cunhou a inscrição é bastante clara, como nos exemplos anteriores, de que para que seja completa precisa ser compartilhada. No início da inscrição, o termo gaudia foi empregado para opor o prazer do presente a uma possibilidade de retorno no amanhã, o que indica a relação da felicidade com o presente vivido e não com uma tênue esperança de reencontro futuro. Há aqui, portanto, um outro elemento que deve ser considerado em conjunto com os demais: a felicidade entre casais, além de compartilhada, deve ser reconhecida no presente dos enamorados.

Os grafites de 5 a 8 são mais sucintos e, no entanto, trazem à tona elementos das práticas sexuais, de encontros íntimos e seus múltiplos significados. Escritos em paredes externas de diferentes lugares e um deles próximo ao prostíbulo da cidade (6), essas quatro inscrições enfatizam prazeres, proteção e conflitos. O grafite 5 pode ser entendido dentro do contexto aprotopaico, ou seja, é possível pensar que a saudação, relacionada ao pênis, seja um meio de desejar boa sorte e proteção ao jovem. Funari (1993; 2003b) afirma que ‘falo’, na cultura popular, não só afastava o mal olhado, função de um objeto apotropaico, como também trazia sorte e felicidade, atrelando a imagem fálica de fertilidade com a possibilidade de boa fortuna. Há muitas imagens e objetos que atrelam o membro masculino em ereção com a percepção de vida, fecundidade e sorte. Nesse sentido, ao ler uma inscrição como esta é preciso evitar restringir a menção ao pênis à noção de pornografia moderna. Para entender melhor essa relação, Cavicchioli afirma que no mundo romano as práticas sexuais não constituíam uma esfera compartimentada da vida, mas eram influenciadas por outros aspectos como a moral e a religiosidade. Desse modo, mais do que isolar as menções aos encontros íntimos ou aos elementos fálicos, tão presentes nas paredes de Pompeia, é preciso perceber que constituem parte da religiosidade, da busca pela felicidade, proteção e fartura, dependendo do contexto.

Por conseguinte, a inscrição de número 5, pensada em um contexto no qual as representações fálicas são abundantes, indica que separar a esfera sexual do religioso no mundo romano é mais um preconceito moderno do que uma percepção antiga. Funari, no referido estudo, aponta para a necessidade de nos despirmos de nossos próprios juízos de valores para perceber que a relação entre “felicidade” e “sorte”, entendida no contexto apotropaico, pode apresentar outro olhar sobre a cultura romana.

As inscrições 6 a 8, no entanto, nos levam a explorar um outro viés, aquele que comenta encontros íntimos entre homens e mulheres ou

entre homens, pois são relatos de prazer feminino (6) e de conflitos (7 e 8), o que mais uma vez ressalta como as representações das práticas sexuais são múltiplas. Como já destacou Williams (1999), grafites como esses de 6 a 8 são instigantes porque se referem ao vocabulário de cunho sexual, sejam eles entendido como forma de prazer ou como forma de crítica ao outro. Do ponto de vista do vocabulário, Williams (1999) destaca que mesmo que haja aqueles que se referem ao amor ou amizade, cerca de 260 grafites possuem termos explicitamente sexuais como os substantivos mentula ou cunnus e os verbos

futuere, pedicare ou fellare. Ou seja, a grande maioria das inscrições que tratam

de encontros íntimos possui conotação sexual explícita. Para essa ocasião, além da declaração de prazer da mulher (6), optei por selecionar duas inscrições que trazem a figura do cinaedus, pouco mencionada nos estudos históricos, apesar de presente nos textos literários e nos grafites.

No levantamento feito por Williams (1999), há cerca de 30 inscrições em que o termo aparece, em geral nas fachadas voltadas para as ruas de Pompeia. O estudioso afirma que, se seguirmos os padrões da literatura, os termos mais populares para ofender a honra seriam fellator, cunnilingus e cinaedus (WILLIAMS 1999, p. 293). Os cinaedi, como atesta Williams a partir de Sêneca (1999, p. 203), tinham presença garantida nas cidades e poderiam ser tanto homens mais velhos como jovens escravos. Há uma ampla discussão sobre o significado do termo cinaedus e este pode designar diferentes situações: dançarino que veio do Oriente; homem afeminado; aquele de rompe com as noções de masculino, mas que não necessariamente é penetrado (WILLIAMS, 1999; SIHVOLA; NUSSBAUM 2002). Ou seja, um cinaedus pode manter relações sexuais com mulheres e mesmo assim continuar sendo entendido como tal e, por outro lado, nem todos os homens que mantinham relações com outros homens são chamados de cinaedus. Nesse sentido, não é a penetração que define o cinaedus, mas, para além disso, uma série de questões como maneira de andar, falar, de vestir, enfim, de como se relaciona com seu corpo e extravasar as noções de feminino e masculino. Ou, como observou Halperin (2002, p. 36), a questão não estava na relação sexual em si e sim na subversão dos papéis de gênero.

Os grafites de 6 a 8 são exemplos do desafio de ler essas inscrições que comentava há pouco. Mesmo que não saibamos quem seja a mulher que registrou seu momento de prazer ou os homens ironicamente (ou não) chamados de cinaedus, o fato é que tais registros se encontram nas paredes, visíveis e ao alcance de todos letrados. Faziam parte da paisagem urbana e, por isso, não devem ser ignorados ou taxados de obscenos, mas pensados como parte do cotidiano dos homens e mulheres romanos comuns. Além disso, tais grafites nos remetem a sujeitos que muitas vezes não aparecem na historiografia ou são pouco valorizados por ela e nos instigam a pensar outras formas de entender o passado, considerando a pluralidade das relações de gênero, suas ambiguidades, seus conflitos, enfim, as diferentes formas de vivenciar os encontros íntimos, de representar o sexo ou o prazer e suas implicações culturais.

vontade de viver o presente sem esperar o futuro, proteção, prazer e desafeto. Escritos por pessoas anônimas, relatam momentos de solidão, alegria, de vontade de viver, de prazer, de desafeto, situações cotidianas que podem ser lidas ou conhecidas devido a uma tragédia natural ocorrida há mais de dois mil anos. Reflexões poéticas ou declarações sucintas, essas inscrições permitem que possamos pensar a paisagem urbana como meio de expressão de sonhos, anseios e desentendimentos. As paredes de Pompeia ou as suas colunas, entendidas por essa perspectiva, nos desafiam a pensar os espaços de escrita sobre encontros íntimos, desejos de bons agouros ou de ofensas, fornecem pistas da vida daqueles que foram marginalizados pela historiografia, nos levam a refletir sobre o dia a dia e as apreensões humanas.

Por fim, cabe ressaltar que selecionamos oito inscrições para essa reflexão e, mesmo assim, foi possível localizar muitas lacunas e silêncios em nosso conhecimento sobre o passado de Pompeia sob o domínio romano. Como há mais de onze mil cadastradas, a possibilidade de nos surpreender é muito grande, ainda. É por essa razão que acredito que um olhar atento a essa documentação, a partir de uma perspectiva menos normativa e mais interdisciplinar, é fundamental para que seja possível dar voz a experiências cotidianas que, muitas vezes, nos passam despercebidas, mas nem por isso são menos importantes para repensarmos a forma com que nos aproximamos do passado romano.