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3. BASES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DO ESTUDO

3.2. Dialogicidade em Freire

Paulo Freire (1921-1997) é um dos mais importantes pensadores do século XX. Nasceu em Recife (Pernambuco/Brasil) e desde lá, ainda na juventude, iniciava seu compromisso com a educação brasileira. Suas obras inspiram ideais democráticos e libertadores preocupados com as desigualdades. Com o golpe militar, em março de 1964, suas práticas foram consideradas “perigosamente subversivas”; por isso foi exilado.38

No exílio, Freire “ad-mirou” e refletiu sobre a realidade com “os deserdados da terra” e intelectuais exilados. Criou parte de suas teorias na esfera da educação – “Pedagogia do Oprimido” (2005), onde denuncia a ideologia da educação bancária, domesticadora, dominadora das consciências, apresentando a teoria da dialogicidade.

38 O exílio não é apenas um tempo que se vive, mas um tempo que se sofre. Sofrer o exílio é assumi-lo com toda dor que isso significa, experimentar a amargura, a clareza de algo nublado em que é preciso mover-se com acerto. Não é apenas lamento, mas projeto, pois não vivemos de passado, e sim da existência no presente e para a volta possível do futuro. “Enquanto situação limite o exílio nos provoca”. (FREIRE, 2003).

Anunciou a ação dialógica, que se dá pelo diálogo com as massas e pela comunicação, para que o outro tenha a possibilidade de ser mais. O diálogo é considerado como capacidade ontológica humana: “existir humanamente é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes a exigir deles novo pronunciar”. (FREIRE, 2005, p. 90).

O diálogo é postura política e ética, base para a educação humanizadora, ao proporcionar a conscientização crítica e intersubjetiva. Para que ele aconteça é necessária a palavra verdadeira, portadora simultaneamente da ação e da reflexão assumidas como práxis. Se algumas dessas dimensões não estiverem presentes, a palavra se torna ativismo ou verbalismo, é alienada. Sendo alienante, nega a humanização. Para que seja palavra verdadeira deve promover a práxis que é o trabalho e a transformação do mundo. Deve permitir a denúncia das estruturas que oprimem as formas de superação. (ibid., p. 84).

Concordamos com Freire que o sujeito é um ser social, histórico e movido pela criatividade. É inconcluso e condicionado, porém não é determinado pela estrutura. Tem sempre possibilidade de interferir na realidade e modificá-la. Está numa realidade objetiva que é o mundo. Está no mundo e com o mundo, por isso “existe” e não somente “vive”. Assim, existir ultrapassa o viver, pois o ato de discernir, de transcender e a capacidade de comunicação com o mundo objetivo são exclusividades do existir, que somente se realiza na relação com outros existires, um encontro entre seres humanos por meio da intersubjetividade. (FREIRE, 2003, p. 48).

Desta maneira, o diálogo nunca é ação isolada mas sempre um ato coletivo. Constitui-se na relação eu-nós, nunca no eu-tu; trata-se de relações de um(ns) com o(s) outro(s) “mediatizados” pelo mundo. O diálogo nunca é unilateral, tampouco é só falar, implica escutar e se escutar. Por isso, o diálogo é um direito de todas/os e não somente daquelas/es que ocupam posições de poder na sociedade.

A partir das relações dos seres com e na realidade, pelos atos de criação, recriação e decisão, começa a dinamização do mundo e a humanização da realidade, acrescida de algo que o próprio ser é fazedor. Os seres humanos fazem cultura, “temporalizam’ espaços geográficos, interagem, desafiam e superam desafios.

Alguns seres são dominados pelos mitos da publicidade que reduzem a capacidade de decisão. São representados por uma elite que interpreta a realidade entregando-a como se fossem “receitas prontas”. Ao ingeri-las os sujeitos tornam-se “coisificados” e passam a ser objetos, adotando um “eu” que não lhes pertence, conformado, esmagado por um profundo sentimento de impotência que os paralisa. (FREIRE, 2003, p. 51-52).

A educação para Freire constrói e liberta o ser humano das cadeias do determinismo neoliberal. Vê a história como um tempo de possibilidades. O futuro deve ser tratado como problema que pode ser solucionado – não inexorável. Seu método de aprendizado parte da realidade, a partir da qual estudamos e entendemos o mundo.

O conhecimento para o autor é construído e produzido por meio do diálogo e da curiosidade, mola propulsora do aprendizado e do ensino. O diálogo é uma opção e uma disposição das pessoas para, em conjunto, denunciar e anunciar o mundo. A dialogicidade não pode ser entendida como um instrumento, mas como uma “exigência da natureza humana”, uma exigência epistemológica, o que implica maturidade, segurança no ato de perguntar e coerência na resposta. (FREIRE, 2005, p. 74).

Enfatiza a necessidade da postura da/o educadora/or ético que respeita o conhecimento da/o educanda/o. Compreende que "formar é muito mais do que puramente treinar no desempenho de destrezas". (FREIRE, 1996, p. 15).

A/o educadora/or não é superior ou mais inteligente porque domina conhecimentos que a/o educanda/o ainda não domina. São participantes do mesmo processo de construção da aprendizagem. A educação se faz com e não para as pessoas. Nesse sentido, concordamos que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”. (FREIRE, 1996, p. 25).

Ensinar é ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas e inibições do outro, é ser crítico, inquiridor e inquieto, é não transformar a experiência educativa em treinamento técnico, amesquinhando o que há de fundamentalmente humano na educação: o seu caráter formador. “Se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando”. (FREIRE, 1996, p. 7).

Freire considera como absolutamente necessário o rigor metódico e intelectual que o educador deve desenvolver em si próprio, como pesquisador, sujeito curioso, que busca o saber e

o assimila de uma forma crítica e não ingênua. Orienta educandas/os a seguirem essa linha metodológica de estudar e entender o mundo, relacionando os conhecimentos adquiridos com a realidade. (FREIRE, 1982).

As/os educadoras/es precisam estar cientes de que suas atitudes influenciam positiva ou negativamente a vida de uma/um educanda/o. O conhecimento do professor precisa ser vivido por ele, “encarnado”, para que se transforme em prática aplicável e coerente. Este conhecimento encarnado relaciona-se com o que Freire (1986, p. 15) afirma sobre a leitura da palavra e a leitura do mundo:

toda leitura da palavra pressupõe uma leitura anterior do mundo, e toda leitura da palavra implica a volta sobre a leitura do mundo, de tal maneira que ler o mundo e ler a palavra se constituam em movimento em que não há ruptura, em que você vai e volta. Desta forma, ler o mundo e ler a palavra implica “reescrever” o mundo, ou seja, transformá-lo. A leitura da palavra deve ser inserida na compreensão da transformação do mundo provocando a leitura dele remetendo-nos, sempre, à leitura de novo do mundo. Por isso, a exigência de uma educação pelo exemplo, coerente com a maneira de estarmos no mundo, com o mundo.

Com relação ao processo de ensino e aprendizagem destacamos que para o autor ensinar, aprender e pesquisar compreende dois momentos: o de aprendizagem do conhecimento já existente e o que trabalha a produção do conhecimento ainda não existente.

Não há ensino sem pesquisa nem pesquisa sem ensino. Esse pesquisar, buscar e compreender criticamente só ocorrerá se a professora/or souber pensar certo, deixando transparecer aos educandos que uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo, como seres históricos, é a capacidade de intervir no mundo, conhecer o mundo de maneira a transformar a realidade. (FREIRE, 1996, p. 32).

O ensino e a prática não podem ser tratados como algo definitivo e estável, pois este é passível de mudanças. Assim, o ato de ensinar e aprender deve ser permanente.

Freire anuncia que: a fase de “trânsito” (de uma fase histórica a outra) impregna as mudanças que nutrem a sociedade. Porém, esta não é somente mudança, mas sim a procura da sociedade por novos temas, novas tarefas. Quando estes iniciam seu esvaziamento de significação novos temas emergem, e é sinal que a sociedade começa a passar para outra época, onde os “velhos” temas esgotados dão lugar aos novos temas. Essa passagem se dá de maneira sacrificada, de idas e vindas, avanços e recuos até a plenitude onde a sociedade encontrará seu

ritmo normal de mudança, à espera de um novo período de trânsito em que os seres se humanizam cada vez mais.

Os sujeitos devem ser radicais em suas escolhas, implicando o enraizamento da opção preponderantemente crítica, dialógica e amorosa, não negando ao outro o direito de optar e de julgar-se também certo. Não significa que a radicalização deve acomodar-se passivamente diante do poder exacerbado de alguns, que leva à desumanização tanto do opressor como do oprimido. (FREIRE, 2003, p. 58).

A sociedade que se “abre” no momento de transição emerge em seu processo e deixa de ser puramente expectadora. Esta passa pela tomada de consciência de sua possibilidade de participação, renunciando ao otimismo ingênuo e aos idealismos utópicos, assumindo um otimismo crítico e responsável. A esperança toma o lugar da desesperança alienante e, na medida em que vão se integrando no tempo e no espaço, são capazes de se projetar onde a autoconfiança transforma as “receitas” antes simplesmente importadas em estudos sérios e profundos da realidade. (FREIRE, 2003, p. 61).

Diante de tais reflexões, compreendemos que a pedagogia do oprimido retrata a necessidade do comprometimento com a libertação das pessoas por meio do diálogo. Essa é a via da educação para a prática da liberdade, que exige alguns elementos fundamentais relacionados entre si:

• amor profundo pelo mundo, pelas mulheres e homens, como ato de criação e recriação contrário à dominação. Esta postura exige coragem, nunca medo. Amor pela causa dos oprimidos para o rompimento das relações de opressão. (FREIRE, 2005, p. 92).

• humildade para perceber-se ignorante – não arrogância. “Ninguém sabe tudo”. Sempre temos algo a aprender com os outros, daí a necessidade de não nos sentirmos superiores, nem acreditarmos que “só um grupo seleto pode mudar o mundo”. “Não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há mulheres e homens que em comunhão, buscam ser mais39”.

• fé nas mulheres e nos homens e no seu poder de fazer e de refazer, na sua vocação de ser mais: O diálogo implica a fé no ser humano em poder refazer o mundo, fé na vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns, mas direito de todas as pessoas. Trata-se de

uma fé crítica não ingênua. A fé não fatalista que mobiliza para a criação de condições em que mulheres e homens possam renascer “na e pela luta por sua libertação”. Fé que não permite comodismo; (FREIRE, 2005, p. 93-94).

• confiança: consequência óbvia do diálogo, portanto, se instaura com ele. A confiança não existe se não existir a coerência, se as palavras não coincidem com os atos. Tal confiança nos permite saber sempre de que lado estamos e assim construir caminhos de transformação lado a lado;

• esperança: emerge de saber que somos imperfeitos e por isso em eterna busca, “não se faz no isolamento, mas na comunicação”. A injustiça instaurada, porém provisória, não deve apagar a esperança, mas ao contrário, alimentá-la para buscar a humanização; restaurá-la. Esperança entendida não como pura espera. “Me movo na esperança enquanto luto, se luto com esperança espero”.

Diante do discorrido, Freire nos faz refletir sobre muitos conceitos, como, por exemplo, o “pensar certo” e a “palavra verdadeira”, que são muitas vezes interpretados na perspectiva dualista do certo e errado como algo absoluto e inquestionável. O sentido trazido por Freire sobre o “pensar certo” refere-se a um pensamento construído dialogicamente com as pessoas, por meio do bom senso, do respeito, e não como verdade absoluta. A palavra verdadeira está relacionada com a coerência entre o que falamos e o que fazemos – práxis. Sem esses elementos é impossível a realização do diálogo como palavra verdadeira, pois dialogar não é tagarelar, é busca crítica.

As contribuições de Freire para a educação ambiental crítica são inúmeras e apesar de não escrever sobre educação utilizando a categoria ambiental, participou da jornada internacional de educação ambiental, pronunciando-se sobre educação e vida – Fórum Global/Rio 92. Sua fala sensibilizou e potencializou a idéia da educação ambiental como elemento de transformação social, inspirada no diálogo, na perspectiva transformadora, popular e planetária.

Diante de suas reflexões no Fórum Global percebemos que as palavras “consciência” e “conscientização” são frequentemente utilizadas de forma “bancária” implicando a imposição de regras para cuidarmos do ambiente. A conscientização não é o ponto de partida do engajamento, mais um produto do engajamento: “não me conscientizo para lutar. Lutando, me conscientizo”. Não devemos primeiro criar escolas de conscientização, para depois com as massas populares “preparadas” transformar a sociedade.

É na experiência de serem exploradas/os e na prática de arregimentar-se para superar a situação concreta de opressão que as classes populares se conscientizam. Por isso, a mobilização que implica a organização para a luta é fundamental à conscientização, mais profunda que a pura tomada de consciência. (FREIRE, 1995).

As idéias centrais de Freire vêm sendo recriadas em muitas ações educativas transformadoras que confiam nos seres como capazes de transformação da realidade, rompendo assim, com a ideologia do silêncio por meio do diálogo igualitário. Habermas, Freire, e outros teóricos que confiam na capacidade dos sujeitos em transformar as injustiças socioambientais, na possibilidade de melhorar a educação e a sociedade são tachados de utópicos e pouco realistas.

Contrário às críticas que recebem, estes autores buscam a amorosidade atrelada ao sentido político que o verdadeiro amor requer, o sentido emancipador, e se preocupam com a importância do ensino rigoroso de conteúdo, com a organização coerente do espaço e do tempo educativo.

Freire (1980, p. 12) destaca sua preocupação:

conhecer não é o ato através do qual o sujeito transformado em objeto recebe dócil e passivamente os conteúdos que outro lhe dá ou lhe impõe. O conhecimento pelo contrário exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora perante a realidade. Demanda uma busca constante. Implica invenção e reinvenção.

Segundo Aubert, et al., (2008, p. 153) as pessoas que fazem críticas a estes autores são exatamente as que menos lêem e conhecem as obras destes, pois se tivessem lido saberiam que Freire, por exemplo, conhecia perfeitamente a sociedade que estudava, carregada de injustiças e exclusão. Conhecendo profundamente a realidade dos oprimidos, Freire propunha uma educação da pergunta, uma educação que liberta e conscientiza, pois transformação e comunicação estão necessariamente juntas. Esta educação é dirigida a mobilizar todos os recursos possíveis do entorno para mudar as situações de desigualdade em situações de possibilidade.

Ao falarmos de aprendizagem e transformação, sentimos a necessidade de fazer referência a Vygotsky, que em sua teoria sociocultural traz importantes contribuições para a aprendizagem dialógica. Posteriormente recordaremos algumas idéias centrais deste autor.