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3. BASES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DO ESTUDO

3.1. Habermas e a ação comunicativa

Flecha, Gómez e Puigvert (2001, p. 127) reconhecem Habermas como um dos maiores autores da modernidade, e desenvolvem um estudo sobre a principal obra deste: a Teoria da ação comunicativa, de 1987. Esta teoria contribui na elaboração dos princípios da aprendizagem dialógica com alguns de seus conceitos relevantes:

• a racionalidade instrumental e a comunicativa; • a teoria da argumentação;

• as pretensões de validade e as pretensões de poder;

• os tipos de ação: teleológica, normativa, dramatúrgica e comunicativa; • as concepções de linguagem.

A teoria da ação comunicativa foi construída a partir de uma estrutura dual de sociedade, sistema e mundo da vida34. Esta estrutura evidencia que nem os sistemas e nem os sujeitos determinam sozinhos a realidade. Assim, o mundo da vida, enquanto horizonte em que os agentes se movem, fica delimitado pelas mudanças estruturais da sociedade que se transforma na medida em que os agentes produzem mudanças. (HABERMAS, 1987-b, p. 169).

O autor faz uma crítica à redução dos espaços de comunicação que colonizam o mundo da vida. Porém, esta colonização pode ser superada diante da capacidade de comunicação e reflexão dos sujeitos. As ações dos sujeitos são baseadas em consensos alcançados linguisticamente. As mudanças sociais e das instituições são resultados das ações dos sujeitos, ao mesmo tempo construtores e resultados do contexto social e sistêmico. (HABERMAS, 1987-a, p. 115)35.

Habermas considera que a causa dos problemas sociais na modernidade não reside no desenvolvimento científico e tecnológico como tal, mas sim na unilateralidade dessa perspectiva como projeto humano. Posiciona-se radicalmente contra a universalização da racionalidade científica e instrumental, pois esta produz o esvaziamento da ação comunicativa. Assim, são geradas formas de sentir, pensar e agir individualistas, onde os sujeitos são afastados, isolados, induzidos a se tornarem competitivos. Estes valores são apontados como as bases dos problemas sociais.

Em contraposição à racionalidade instrumental, Habermas, em diálogo com Weber, considera o uso instrumental do saber como a escolha dos melhores meios para chegar a fins predeterminados (meio-fins), gerando a burocratização da sociedade industrial e a aniquilação dos sujeitos. Assim, o autor defende outro tipo de racionalidade: a racionalidade comunicativa, tendo em vista que os sujeitos não são determinados pelo meio em que vivem, ou seja, não reagem apenas a estímulos do meio, pois são capazes de atribuir sentido às suas ações comunicadas pela linguagem:

34 O conceito de mundo da vida, formulado por Schutz, é utilizado por Habermas para explicar que não podemos reduzir a racionalidade às emissões e manifestações verdadeiras ou falsas, eficazes ou ineficazes, pois é muito mais do que isso: “Não chamamos racional somente quem faz uma afirmação e é capaz de defendê-la frente a um crítico, mas também quem expressa um desejo, um sentimento, um estado de ânimo e é capaz de comportar-se de forma coerente com o dito”. (GABASSA, 2006, p. 86).

35 Como exemplo, citamos o matrimônio, que surgiu no mundo da vida regulando as relações. Devido à sua burocratização, passou a colonizar as relações e, desta maneira, se tornou instituição inválida para algumas pessoas impulsionadoras de ações que passam a ser aceitas gradativamente. Obtivemos assim, novas maneiras de estabelecer relações que conduziram novas formas jurídicas de matrimônio.

a racionalidade tem menos a ver com o conhecimento ou com a aquisição de conhecimentos, que com a forma em que os sujeitos capazes de linguagem e ação fazem uso do conhecimento. (HABERMAS, 1987-a, p. 24).

A realidade para Habermas é entendida como uma construção humana, que depende do significado que as pessoas constroem comunicativamente, mediado pela interação das pessoas com os mundos: objetivo, social e subjetivo. O mundo objetivo está relacionado às coisas materiais, se refere à natureza externa, que é igual para todas/os, e ao estado de coisas existentes; o social se refere às normas vigentes, aos valores e opiniões compartilhadas intersubjetivamente; o subjetivo é interno, ao qual o sujeito tem acesso privilegiado, e refere-se à totalidade de vivências subjetivas que o sujeito tem e à expressão dos desejos e sentimentos. Importante destacarmos que a subjetividade do sujeito não é construída através de um ato solitário de auto- reflexão é resultante de um processo que se dá em uma complexa rede de interações sociais comunicativas.36

Os sujeitos para Habermas são agentes integrantes, produtores e transformadores da sociedade; constroem e transformam a realidade por meio da interação e da construção dos significados estabelecidos coletivamente – intersubjetividade. Assim, se existe uma predominância da racionalidade do tipo instrumental, como objetivo para alguns fins específicos, é porque os sujeitos que formam essa sociedade a legitimam desta forma. Esta racionalidade também pode ser superada por estes sujeitos.

Não deveria, então, ser entendida a racionalidade materializada nos sistemas de ação racional com objetivo a fins como uma racionalidade especificamente restringida? Essa racionalidade da ciência e da técnica não contém já em seu seio, em lugar de reduzir-se, como pretende, às regras da lógica e da ação controlada pelo êxito, um a priori material surgido historicamente e, por isso, também historicamente superável? (HABERMAS, 1984, p. 57).

O autor apresenta as pretensões de validade contidas nos argumentos para a comunicação. Estes argumentos podem estabelecer pretensões de poder vinculadas à imposição, à força; ou pretensões de validade representadas por argumentos que não são absolutos e podem ser revistos por meio da comunicação. Esta diferença entre pretensão de validez e pretensão de poder não é

36 Mello (2002) considera que a concepção de Habermas sobre a consciência comunicativa dos sujeitos e da ação no mundo a partir do entendimento linguístico para construção da realidade social é que foi responsável pelo distanciamento deste, entre os outros autores da escola de Frankfurt, pois estes autores continuaram atribuindo a consciência localizada apenas à um ator solitário.

considerada pelos autores pós-estruturalistas, mencionados anteriormente, pois para eles todas as pretensões se reduzem em poder.

Os argumentos que estabelecem relações de poder e os de validez são realizados para que sejam considerados como verdadeiros, bons ou ruins na comunicação. (HABERMAS, 1987-a, p. 47).

A argumentação pode ser considerada de um terceiro ponto de vista: tem por objetivo produzir argumentos pertinentes, que convençam em virtudes de suas propriedades intrínsecas, com que desempenhar ou rejeitar as pretensões de validade. Os argumentos são os meios com cuja ajuda pode obter-se um reconhecimento intersubjetivo para a pretensão de validade que o proponente formula de forma hipotética, e com os quais, portanto, uma opinião pode transformar-se em saber.

Por exemplo, o acordo em manter uma relação sexual livremente é bom, pois a decisão foi baseada em pretensões de validez advinda de acordos realizados pelos envolvidos. Entretanto, se ocorrer uma violação no acordo, e uma das partes for lesada, isto se torna ruim, pois a ação foi baseada em relações de poder.

As pretensões de validade se dividem em diferentes tipos de qualificação para se obter o consenso:

- pretensões de verdade: forma de argumentação apresentada pelo discurso teórico indicando que o enunciado é verdadeiro (a ciência);

- pretensões de retitude normativa: forma de argumentação apresentada pelo discurso prático que remete o ato de fala como correto em relação ao contexto normativo vigente (ética);

- pretensões de veracidade expressiva: forma de argumentação apresentada pela crítica, indicando que a intenção expressada coincide com o que a pessoa falante pensa.

O consenso é sempre provisório e deve ser buscado tanto nos âmbitos cognitivo e ético como no estético e afetivo. Segundo Habermas, um consenso não pode produzir-se quando “um ouvinte aceita uma verdade de uma afirmação, mas põe em dúvida a veracidade do falante ou a adequação normativa de sua emissão”. Assim, como no caso de um ouvinte que “aceita a validez normativa de um mandato, mas põe em dúvida a seriedade do desejo que no mandato se expressa, ou a pressuposição de existência anexa à ação que lhe ordena”. (HABERMAS, 1987-b, p. 172).

Por exemplo, quando a sociedade determina que a violação sexual é algo ruim para as pessoas, mas que a liberdade sexual é algo bom, pretende-se conseguir que todo o mundo aceite

este critério, penalizando a ação de violação, como o delito sexual, às pessoas que cometeram tal ação. Porém autores que reduzem todas as ações às relações de poder, não vêem diferença entre a liberdade sexual e a violação, pois ambas são ações criadoras de poder.

Importante destacar que o consenso abrange possibilidades do dissenso e do conflito, podendo ser superados mediante a argumentação, bases para que as emissões sejam revistas e as hipóteses eventualmente refutadas. A não aceitação dos argumentos expostos sobre determinado tema, ou seja, o dissenso exige a busca de melhores razões para sustentar as posições apresentadas.

Muitas vezes nos tornamos demasiadamente seguros sobre o que pensamos. Ao apresentarmos argumentos que não serão impostos pela posição que ocupamos, mas sim pela sua validade, precisamos de maiores esforços para organizar e reforçar nossos argumentos para comprovar a visão apresentada. Assim adquirimos aprendizagens diferenciadas, desenvolvendo capacidades de seleção, processamento e aplicação da informação.

Diante disto, tomamos como base que os sujeitos são capazes de interagir chegando ao entendimento coordenado de suas ações. Negociando situações compartilhadas, podem utilizar a racionalidade comunicativa, numa realidade que oferece a possibilidade de ação dos sujeitos e não apenas uma realidade objetiva imposta de forma determinista.

Habermas discute, com base em autores da sociologia, quatro tipos de ação para apresentar o paradigma comunicativo:

ação teleológica: conceito elaborado por Weber correspondente à uma ação orientada ao mundo objetivo, onde toda ação é intencional e pode ser definida como a concretização de uma intenção de um agente que escolhe e decide livremente os meios para realizá-la. A ação estratégica é uma modalidade da ação teleológica, onde cada ator calcula suas ações com base nos interesses sobre a decisão da outra pessoa. Um exemplo de ação teleológica seria fazer um anúncio com a pretensão de aumentar as vendas de produtos orgânicos. A modalidade estratégica pode ser exemplificada pelo jogo de xadrez, ou pela utilização de “apelos emocionais de salvação do planeta” na campanha dos produtos orgânicos, escolhendo assim, os melhores meios para atingir seus objetivos de venda, visando êxito. (HABERMAS, 1987-a, p. 122).

ação normativa: com base em Durkheim e Parsons, esta ação é regulada por valores e regras comuns que podem ser formalizadas ou estarem implícitas, serem formais ou de fundo. São normas fixadas pelo mundo social, da qual a proposta para aprendizagem é internalizar valores e regras. Concebe a linguagem como um meio para a transmissão de valores culturais e ratifica um consenso a cada novo entendimento normativo. (HABERMAS, 1987-b, p. 172).

Um exemplo de ação normativa é não jogar papel no chão devido a multa aplicada às pessoas que cometem tal ação, e não necessariamente porque existe uma preocupação com o meio ambiente. Outro exemplo é não jogar o papel no chão, pois no local, todas as pessoas presentes são ambientalistas e recriminariam este ato.

- ação dramatúrgica: corresponde à auto-encenação para se chegar aos objetivos de quem fala para o convencimento do outro; a linguagem incorpora formas de expressão verbal e não verbal, com elementos estéticos e estilísticos convincentes. As pessoas se comportam diante das outras como se estas fossem seus públicos, produzindo uma dramaturgia pela qual possam construir deliberadamente uma imagem que querem transmitir de si às/aos outras/os. (HABERMAS, 1987-b, p. 124).

Um exemplo de ação dramatúrgica é parecer interessada e conhecedora do assunto, numa entrevista de emprego para convencer o contratante.

- ação comunicativa: é composta por relações intersubjetivas orientadas para o entendimento e para o consenso37. A linguagem é utilizada como um meio fundamental de entendimento entre as pessoas e parte dos mundos: social, subjetivo e objetivo, construídos pela intersubjetividade. A negociação das situações e ações acordadas pode ser compartilhada por todas e todos. A ação comunicativa não pode ser reduzida à conversação – palavra vazia. É constituída por operações interpretativas dos sujeitos em diálogo que é ação. Por isso, a ação comunicativa é a junção entre comunicação e mundo da vida, e possibilita a construção de uma sociedade mais igualitária. (HABERMAS, 1987-a, p. 124).

Um exemplo de ação comunicativa seria combinar uma viagem onde todas pessoas envolvidas pudessem sugerir os lugares, e cada pessoa apresentasse seu argumento para a escolha

37 Os padrões universais de consenso não admitem, de forma alguma, a descaracterização de culturas e agentes, mas sim, reafirmam o respeito a partir de suas diferenças.

do lugar. O local da viagem seria decidido comunicativamente tornando-se interessante para todo o grupo, convencidos pelo argumento melhor elaborado.

Nas ações teleológicas, normativas e dramatúrgicas é possível identificar um objetivo comum, suas categorias asseguram um desnível metodologicamente relevante entre o plano de interpretação da ação e da ação interpretada, pois posso agir almejando um determinado fim e as pessoas envolvidas acabarem por aceitar minha sugestão, não pelo motivo real da ação, mas pela manipulação desta. (FLECHA, GOMÉZ e PUIGVERT, 2001).

Na ação comunicativa a interação depende, desde seu início, que os participantes estejam de acordo com tal decisão, realizado intersubjetivamente.

Os conceitos apresentados da teoria da ação comunicativa convergem com a nossa compreensão de ação educativa. Entendemos que nos educamos uns com os outros em comunicação, não isoladamente e que as pessoas envolvidas no processo devem estabelecer acordos para que todas as necessidades sejam atendidas de maneira igualitária.

A seguir, apresentamos a dialogicidade em Freire, que, junto com a ação comunicativa, compõe as bases da aprendizagem dialógica.