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Diana e Dulce: “Hechas para beberse la vida hasta el fondo de la copa”

Embora a afirmação que intitula essa seção tenha sido escrita por Diana para caracterizar a amiga Leonora, frase que praticamente abre o romance, serão, efetivamente, Dulce, no romance de Salim Miguel, e Diana, no romance de Liliana Heker, que revelarão a intensidade de toda a trama e mostrarão que, na verdade, são elas as mulheres feitas para viver em profundidade.

O principal dilema de cada uma delas está na tentativa de encontrarem-se a si mesmas. Diana, através da escritura de um livro que resgate os ideais da adolescência, os quais partilhava com a amiga, Leonora, e ao mesmo tempo prestar uma homenagem para esta que, supostamente, morreu por tais ideais. Dulce, por meio de uma interminável conversação telefônica, quer descobrir, na verdade, quem é, qual o seu papel nesta nação em que se insere, mostra-se cada vez mais dependente deste cordão umbilical20, simbolizado pela linha telefônica, que a mantêm unida a sua mãe, cordão que nunca foi cortado e que não permite que se torne uma mulher madura, autônoma, independente e segura. Esse cordão umbilical representa, igualmente, a ligação de Dulce com sua pátria, pois, à medida que essa mesma pátria é desestruturada pelos excessos da ditadura militar, a protagonista vai se sentido mais fragmentada, mais desorientada. As histórias, porém, não conseguem sair dos primeiros capítulos, não conseguem definir um eixo condutor, uma organização e que desfecho terão.

O conflito, imposto pela dificuldade de encontrar-se, é revelado pela escritura, em Diana e pela falta de logicidade, em Dulce. Isso faz com que ambas, constantemente, busquem, em suas memórias, elementos que revelem a total intensidade dessas personagens que fazem parte da história mesma da Argentina e do Brasil. A necessidade de utilizar a

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memória reflete a necessidade de reconstruir, de recriar, de buscar na “Tradição”21, uma pureza anterior e redescobrir uma unidade que Diana e Dulce sentem como perdida.

Em Memória e sociedade, Ecléia Bosi afirma que:

O caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é, segundo Halbawachs, excepcional. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado “tal como foi”, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual (BOSI, 1983, p. 17). Não é à toa que, para ambas as protagonistas, o passado ressurja quase tão fragmentado e confuso quanto o presente em que se inserem. A história das personagens, mais uma vez, se atrela à história de seus países.

O que se torna perceptível, ao retomarmos a trajetória dessas duas protagonistas, Dulce e Diana, bem como o conjunto das duas obras, é a constante tentativa de conciliar três idéias: o regate do passado, a necessidade da vivência em comunidade e a herança que devem deixar às gerações vindouras.

Primeiramente surge a necessidade de resgate do passado. Tanto Dulce quanto Diana utilizam constantemente lembranças de suas adolescências. Tais lembranças funcionam como uma espécie de tábua de salvação, já que retomando constantemente suas memórias, tentam (re)descobrir quem são e que lugar devem verdadeiramente ocupar nesta nação à qual pertencem e da qual querem fazer parte como cidadãs vivas e atuantes.

Ao resgatar o passado, essas duas personagens perpetuam suas próprias existências e reafirmam o desejo de voltar a viver nessa “irmandade” da qual foram excluídas. Tanto Dulce quanto Diana, vivem quase sós e sentem um desejo premente de voltar a partilhar suas vivências em uma comunidade. Isoladas, sentem mais contundentemente o estilhaçamento da

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O termo aparece no livro de Stuart Hall e significa uma volta às origens ou ao passado na tentativa de recuperar a pureza anterior e as certezas nacionais que vão sendo sentidas como perdidas.

nação e revelam o desejo de reintegrá-la em uma comunidade que, interagindo, se constrói e se perpetua.

Além dessas duas primeiras idéias, há uma última que a elas se soma, ou, se preferirmos, que delas decorre: a necessidade de perpetuar as experiências. Dulce e Diana, ao buscarem-se e buscarem “suas” nações, sentem uma intensa vontade de deixar às futuras gerações um legado centrado em suas próprias vivências. Isso explica a insistente repetição de fatos nas conversas telefônicas de Dulce e a idéia fixa de escrever um livro de Diana.

É preciso que as novas gerações, observando as experiências dessas mulheres, conheçam a trajetória política-ideológica-social da nação de que fazem parte e, através desse resgate, evitem os erros do passado e teçam novas metas em relação ao futuro.

Stuart Hall afirma justamente que estas três idéias são suportes para a constituição da própria cultura nacional:

Em seu famoso ensaio sobre o tema, Ernest Renan disse que três coisas constituem o princípio espiritual da unidade de uma nação: “... a posse em comum de um rico legado de memórias..., o desejo de viver em conjunto e a vontade de perpetuar, de uma forma indivisiva, a herança que se recebeu”(Renan, 1990, p. 19). Devemos ter em mente esses três conceitos, ressonantes daquilo que constitui uma cultura nacional como uma “comunidade imaginada”: as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da herança (HALL, 2000, p. 58).

Entretanto, no decorrer das narrativas, perceberemos que nenhum desses princípios se concretizará. A cultura nacional como uma comunidade imaginada, na contemporaneidade, não está mais baseada na seqüência crono-lógica. Ela se baseia no deslocamento, na fragmentação da identidade nacional, na diferença, refletida nas figuras fragmentadas de Dulce e Diana.