• Nenhum resultado encontrado

6. ROMANCES CONFLITANTEMENTE URBANOS

6.3 Vias de mão única

Em A voz submersa e El fin de la historia o elemento deflagrador do conflito que gerenciará as tramas vem da rua. Para Annateresa Fabris (2000, p. 71):

A rua é o reverso especular da casa. Se esta pode ser considerada uma realidade controlada, reino da ordem, da calma, do afeto, lugar de descanso e recuperação, a rua, ao contrário, é o próprio mundo com seus imprevistos e suas paixões. Território da novidade, da ação, do movimento, nela se diluem diferenças de sexo e de idade, se afirmam as forças impessoais do governo e do destino...

Embora seja vista como o reverso da casa, a rua adquire, nas duas obras, uma outra dimensão que reafirma a ruptura da fronteira entre o público e o privado, uma vez que as sensações despertadas na rua invadirão o espaço reservado da casa, desequilibrando-o, como veremos a seguir.

É, dessa forma, na rua, que Dulce vivencia a morte de Edson Luís. É na rua que Leonora é presa. A rua é, portanto, o ponto de partida para todos os encontros e desencontros ocorridos nos dois romances.

A escolha da rua, da via pública como ponto de partida, é bastante emblemática. Kevin Lynch (1997, p. 52) define-a da seguinte forma:

1.Vias. As vias são os canais de circulação ao longo dos quais o observador se locomove de modo habitual, ocasional ou potencial. Podem ser ruas, alamedas, linhas de trânsito, canais, ferrovias. Para muitas pessoas, são estes os elementos predominantes em sua imagem. Os habitantes de uma cidade observam-na à medida que se locomovem por ela, e, ao longo dessas vias, os outros elementos ambientais se organizam e se relacionam.

Nesse espaço em que as pessoas estão sempre de passagem, mas, ao mesmo tempo, conseguem, durante seu percurso, estabelecer relações com outras pessoas, ocorreram as situações que marcaram as protagonistas e não somente elas, mas toda uma geração.

Em A voz submersa, Dulce surge em meio à multidão que ocupa as ruas que compõem a Cinelândia. Vê o estudante morto e o cortejo que o carrega para as escadarias da Câmara. Nossa protagonista foge, busca refúgio em casa.

Já em El fin de la historia, uma mulher caminha desconfiada pelas ruas de Buenos Aires, ruma para uma reunião com os Montoneros e leva em sua bolsa duas cartas. Durante o trajeto é presa, encapuzada e levada para um lugar que aos poucos revela ser a Escola da Marinha.

Não apenas as tramas iniciam-se nas vias públicas com estas são constantemente mencionadas ao longo dos dois romances. Dulce menciona, em suas falas, a Rua Paissandu, Largo do Machado, as avenidas Rio Branco e Atlântida, e as ruas de Florianópolis: Conselheiro Mafra e Felipe Schmidt. Diana faz sempre menção às ruas Florida, Corrientes, Montes Oca, Suárez, Wenceslao Villafañe, etc. Observe-se que são ruas realmente existentes nessas cidades. São mais fortes, inclusive, no romance de Liliana Heker, essas localizações. Mas, afinal, o que isso significa? Primeiramente, pensemos nas afirmações de Kevin Lynch (1997, p. 60):

As pessoas tendiam a pensar em termos de destino das ruas e de seus pontos de origem: gostavam de saber de onde surgiam e para onde levavam. As vias com origem e destino claros e bem conhecidos tinham identidades mais fortes, ajudavam a unir a cidade e davam ao observador um senso de direção sempre que ele passava por elas.

Assim, podemos supor que conhecer as ruas, de onde saem e para onde levam, implica uma sensação de conforto e segurança. Nomear as ruas significa conhecê-las; conhecê-las significa não estar perdido. Inclusive, “a palavra ‘perdido’ remete a muito mais que à simples incerteza geográfica, trazendo consigo implicações de completo desastre”. (LYNCH, 1997, p.4)

As protagonistas de A voz submersa e El fin de la historia estão completamente perdidas, não sabem quem são, que lugar ocupam nessa sociedade e, para não se renderem ao caos que ameaça tragá-las a qualquer momento, se apegam aos pontos geográficos que

podem, minimamente, indicar onde estão; por isso, fazem questão de nomear as ruas. Nesse momento de suas vidas, indicar onde estão é praticamente saber onde podem localizar suas identidades e isso significa suas próprias existências.

Outro fato importante e que novamente resgata a dissolução dos limites entre público e privado é que os acontecimentos das ruas invadem suas casas. Nem Dulce, nem Diana conseguem abrigar-se daquilo que lhes entra portas, janelas e mentes adentro:

Bater um papinho dos nossos, desabafar e relaxar, apagar o ontem, o quê, mas não soubeste, a cidade está cheia de boataria como resultado dos incidentes, lá na Cinelândia. Mamãe, o estudante morto no Calabouço, o corpo carregado pra Cinelândia por uma multidão, os discursos, o quebra- quebra, os gritos, a polícia contra os estudantes, eu no meio de tudo aquilo carregada sem poder escapar, quase esmagada, tentando sair, já não te falei, falei, (...) (MIGUEL, 1984, p. 49)

Y ella sin previo aviso cae, sus palabras caen en el pozo sin fondo de estar sabiendo con todo el cuerpo, mientras desesperadamente escribe, que ayer entraron a la casa de unos primos lejanos y se llevaron a todos, desde la abuelita judia hasta los nietos adolescentes, que sentirá un escalofrío en la nuca cada vez que abra la puerta de su casa (...) (HEKER, 1996, p. 52) As ruas, com seus nomes, origem e destino, não são mais do que ilusões, fios tênues aos quais se agarram as protagonistas, buscando um rumo e um pouco de paz. Entretanto, esses fios se dissolvem, se dissipam no ar e, rapidamente, a realidade cai como pedra sobre suas cabeças. As ruas e tudo o que nelas acontece nesse período de terror, confrontos, protestos e balas, invadem suas casas e despejam nelas tudo o que nossas protagonistas lutam para não ver e para não lembrar.

E, também, nas ruas estarão aqueles que, acreditando na Unidade Nacional pregada pelo sistema ditatorial militar, se encarregarão de estabelecer uma ordem que, na maioria das vezes, soa absurda. Um exemplo disso está registrado em El fin de la historia. Diana, desorientada em relação a si e a seu romance, atravessa a rua Corrientes, na faixa de pedestres com o sinal vermelho. Durante a travessia é parada pela guarda de trânsito que lhe aplica uma multa e se coloca como autoridade absoluta e não permite explicações. Parada em pleno

centro da cidade, segurando uma multa, nossa protagonista se dá conta, mais uma vez, de sua insignificância diante de tamanhos desmandos governamentais:

(...) La pena será dictaminada por un Tribunal de Faltas ante el cual la infractora deberá comparecer a la brevedad posible, y ante el cual abyectamente sabe que comparecerá ya que no puede conocer las consecuencias de no presentarse ante ése u otros tribunales, aunque tampoco puede conocer las consecuencias de presentarse, tal vez ya esté condenada tal vez en el momento en que, arrebatada por una alegría totalmente a destiempo, cruzó con luz roja, ya se había sellado su destino... (HEKER, 1996, p. 224).

Assim, parece evidente que cidadãos como Diana estão sob constante vigilância e não podem sentir-se alegres quando queiram, isso é subversão. A alegria também precisa ser conduzida pelo Estado e utilizada em proveito próprio, como nas manifestações de alegria pela conquista do Campeonato Mundial de Futebol, que geraram uma propaganda positiva para amenizar as denúncias de violação dos direitos humanos. Situação vivida tanto no Brasil, em 1970, quanto na Argentina, em 1976.

Talvez seja por causa de todo esse controle que as protagonistas tentem refugiar-se em lugares onde esse contexto violento não tenha chance de entrar.