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O Livro Didático de Língua Portuguesa de Ensino Médio: espaço para a formação de leitores

CAPÍTULO 1: O ENSINO MÉDIO E O LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA

2. O Livro Didático de Língua Portuguesa de Ensino Médio: espaço para a formação de leitores

O aluno do Ensino Médio pertence a um segmento de escolaridade de longa duração e, consequentemente, torna-se participante, nesse contexto, de práticas e processos de letramentos20 igualmente longos. Entretanto, as práticas

de letramentos oferecidas aos alunos da etapa final da Educação Básica deixam a desejar em relação ao desenvolvimento de capacidades leitoras (ROJO, 2009). Esses pressupostos podem ser comprovados pelos resultados insatisfatórios obtidos em avaliações que envolvem principalmente questões relativas ao processo de leitura (ROJO, 2009). Este quadro, como vimos, é reconhecido pelo próprio MEC, ao propor a criação de um novo programa (Ensino Médio Inovador) com novas propostas curriculares.

A autora considera que, em função da ampliação do acesso ao Ensino Médio, a escola tornou-se um espaço de circulação de letramentos locais (vernaculares), criando uma situação conflitante de práticas letradas valorizadas e não valorizadas na escola. Para dar conta desse cenário antagônico, caberia à

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Assumimos, desde já, o termo letramento em sua forma plural (letramentos). Esclarecimentos a este respeito aparecerão no decorrer deste texto.

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escola a ampliação e a democratização de práticas e eventos de letramentos, mediados pelos textos presentes nesse e em outros espaços sociais e institucionais (ROJO, 2009).

Na perspectiva da autora, o desenvolvimento dos letramentos críticos na escola e mesmo fora dela poderia capacitar o aluno a lidar com os inúmeros textos e discursos que permeiam a sociedade contemporânea globalizada, levando-o a “perceber seus valores, suas intenções, suas estratégias, seus efeitos de sentido” (ROJO, 2009, p. 112).

Nessa perspectiva, os textos, permeados por seus discursos, podem ser objetos culturais importantes que circulam socialmente no espaço escolar possibilitando que tais práticas ganhem sentido para os sujeitos participantes nesse contexto heterogêneo de letramentos. Há, nestes processos enunciativos, valores atribuídos aos textos e que são determinados pelo grupo neles envolvido.

Na visão de Dionísio (2000, p. 42), a escola pode também ensinar a ler no sentido em que nos seus múltiplos contextos (formais e informais), para além de nos dar a conhecer autores e textos, promove atitudes e modos de ler que nos caracterizarão por oposição a outros, quanto ao modo como nos vemos e vemos o mundo e, nele, a leitura.

O ato de leitura, segundo a autora, pode ser influenciado tanto pelos conhecimentos de língua, de mundo e de outros textos, como também pela compreensão atribuída pelo leitor a esse processo. A autora ressalta, em sua análise, que “o modo como nos contextos escolares os indivíduos se encontram com os textos é reconhecidamente (...) determinante no seu futuro como leitores” (DIONÍSIO, 2000, p. 44) Dessa forma, como bem observa, a escola é um contexto relevante, cujas características privilegiadas contribuem para a formação de leitores.

Ampliando a nossa ideia do conceito de letramentos, podemos dizer que as práticas sociais de letramentos – incluindo as que envolvem a leitura de/no livro didático – são inferidas a partir dos eventos de letramentos que propiciam, sendo estes mediados por textos escritos, orais ou multimodais. Os textos, nesse

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caso, têm objetivos sociais e culturais visando à construção de sentidos. Podemos dizer que, em contexto escolar, eles serão mediadores para a realização de atividades escolares específicas, estabelecendo relações entre as práticas do aluno e a instituição escolar.

Kleiman (1995) defende que a falha do sistema educacional na formação de sujeitos plenamente letrados é decorrência de uma série de fatores, dentre eles do próprio modelo de letramento escolar dominante. Na sua acepção, um exemplo significativo seria o ensino instrumental de leitura que pode ir além de sua funcionalidade, tornando-se um instrumento que leve à criticidade e a um processo de transformação de discursos.

A concepção autônoma de letramento21, adotada ainda pela escola, limita

a criticidade em relação a determinados textos já institucionalizados socialmente, por exemplo. Na percepção da autora, a concepção do modelo ideológico de letramento22, que associa práticas letradas aos contextos sociais em que

ocorrem, permite o questionamento crítico dos textos e a transposição à realidade do leitor/aluno (KLEIMAN, 1995).

Nessa ótica, a rejeição de práticas de letramentos na perspectiva do modelo autônomo, em que os contextos sociais de práticas não são considerados, leva à possibilidade de construção de contextos de aprendizagem efetivos em função das práticas discursivas retomadas em contexto escolar. Essa discussão, entretanto, somente terá resultados condizentes se houver a adoção de perspectivas ideológicas ou sócio-históricas de letramentos. A autora

21“Concepção que pressupõe que há apenas uma maneira de o letramento ser desenvolvido, sendo que essa forma está associada quase que causalmente com o progresso, a civilização, a mobilidade social” (KLEIMAN, 1995, p. 21).

22“Práticas de letramento no plural, são social e culturalmente determinadas e, como tal, os significados específicos que a escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida” (KLEIMAN, 1995, p. 21).

O modelo autônomo e o modelo ideológico de letramento podem ser considerados modelos interpretativos dos estudos que revelam como “vemos” os objetos, os sujeitos e suas relações nas práticas. Ou seja, o nosso olhar será para observar o modelo de letramento pressuposto nas atividades de leitura dos livros didáticos.

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defende, portanto, que o modelo ideológico de letramento é mais significativo para a elaboração de programas cujas concepções pedagógicas levem em conta a pluralidade e a diferença do contexto escolar (KLEIMAN, 1995).

Street (2000) ao afirmar a concepção de letramento como uma prática social, reconhece a existência dos múltiplos letramentos que podem variar de acordo com o espaço, o tempo e as relações de poder a que estes estão associados. Nessa perspectiva, questiona quais letramentos podem ser considerados dominantes e quais marginalizados. Reitera que as pesquisas contemporâneas de letramento – os Novos Estudos do Letramento (NEL) – desafiam o conceito como algo universal e neutro, além de sugerirem que as práticas de letramento variam de um contexto a outro, de uma cultura a outra, provocando, com isso diferentes letramentos em diferentes condições. Portanto, a adoção de um modelo ideológico de letramento oferece uma visão culturalmente sensível para as práticas de letramentos, na escola ou fora dela.

Muito embora este modelo pressuponha a pluralidade do termo (letramentos) em função de sua relação com as variedades de práticas, necessita ainda de maior precisão, sendo mais produtiva sua especificação, já que tal noção (mesmo no plural) apresenta-se ainda genérica e pouco definida (BARBOSA, 2001, p. 71 e 77). Essa opinião da autora poderia justificar a necessidade de adjetivação do conceito para dar conta da diversidade de acepções (letramentos múltiplos, críticos, dentre outros).

Street (2000) destaca também a contribuição das pesquisas atuais nos NEL para as questões relativas às identidades envolvidas nas práticas de letramentos existentes no contexto escolar e para as noções de intertextualidade e de letramentos críticos que se podem observar em tais práticas. Observa que os NEL têm levado em conta, nas pesquisas contemporâneas, a incorporação da noção de criticidade às questões relacionadas ao uso de leitura e escrita em contexto educacional, conceitos associados às relações de poder e de dominação. O autor reitera que as pesquisas no contexto educacional têm

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crescido em função do surgimento de novos problemas a partir dessa perspectiva.

Os estudos de letramentos críticos são também apontados por Baynham (1995), que assume as premissas de um propósito social do letramento, além de considerar que letramento é mais bem compreendido em seu contexto de uso, que não tem um caráter neutro, que está associado a posicionamentos ideológicos, que deve ser compreendido em termos de poder social e, finalmente, que pode ser crítico.

Assumindo a perspectiva crítica do letramento, Baynham (1995) afirma que se letramento está associado aos usos sociais da leitura e da escrita em contexto de uso, o que o faz crítico, é o questionamento dos letramentos considerados dominantes pelos discursos e instituições de poder. A função do letramento não é, segundo o autor, necessariamente crítica, mas pode ser uma poderosa ferramenta para o desenvolvimento do pensamento crítico, porque a linguagem como prática social estabelece uma relação de poder e as instituições e as organizações sociais estão estruturadas e se reproduzem através da linguagem. O autor lembra-nos de que a linguagem é o que nos introduz como sujeitos na ordem social estabelecida.

Baynham (1995) afirma, ainda, que o letramento crítico23 pode ser uma

oportunidade de percepção das dimensões de um texto como produto e processo e pode desenvolver, igualmente, uma percepção crítica das intenções sociais e de a quais interesses o texto serve.

O autor observa que a perspectiva crítica de letramento cria uma percepção das questões sociais envolvidas nos processos de letramentos. Nessa percepção, um leitor crítico, para atuar nas práticas de letramento, precisa ser capaz de interpretar as perspectivas discursivas implícitas ou explícitas em textos, tais como artigos de jornais, documentos ou afins. Reitera que os

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Segundo nossa reflexão, imaginamos que os letramentos críticos podem desenvolver também práticas de escrita como contra-palavra, réplica, numa perspectiva embasada pelos conceitos bakhtinianos.

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modelos críticos de letramento não devem considerar os contextos e os objetivos sociais como dados, mas torná-los objeto de uma análise crítica como parte do processo educacional. Aponta que o letramento crítico opera com a linguagem como prática social. Observa que em contextos complexos, desenvolvidos em sociedades igualmente complexas, o letramento crítico surge como uma necessidade.

Baynham (1995) ressalta ainda que uma leitura crítica envolve a capacidade de perceber para onde o autor está levando o leitor, qual a posição desse autor em relação ao leitor, quais posicionamentos ideológicos esse autor assume no texto. Uma leitura crítica deve levar o leitor a questionar o que o texto traz, a aceitar ou a rejeitar o que ele lhe traz. A percepção dos textos como práticas sociais e, consequentemente, a leitura como prática social nos faz compreender o papel crucial da leitura crítica. Esta dimensão necessária da leitura como tal é que a torna uma leitura crítica, enfatizando o seu caráter de resistência, de leitura do mundo social que ela contempla indo além daquilo que o texto possibilita compreender.

Rojo (2009, p. 114) afirma que

são cruciais os letramentos críticos que tratam os textos/enunciados como materialidades de discursos, carregados de apreciações e valores, que buscam efeitos de sentido e ecos e ressonâncias ideológicas. É preciso, portanto, um re-enfocar do texto, fora da escola, mas principalmente nela, por sua vocação cosmopolita, por sua capacidade de agenciamento de populações locais na direção do universal, dos patrimônios da humanidade.

Considerando a escola e a Educação Básica – neste caso, especialmente o Ensino Médio – como um espaço de circulação de discursos e de ideologias trazidos pelas práticas letradas, temos no livro didático um importante instrumento de formação de um leitor cidadão, como indicam os documentos oficiais, por se tratar de importante aliado nas práticas de letramentos críticos e protagonistas.

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A ideia de multiplicidade de letramentos encontra respaldo também em Soares (2004), para quem a multiplicidade de práticas sociais e escolares permeadas pelo uso da escrita exige variabilidade de habilidades, conhecimentos e atitudes para dar conta dessas práticas. Na concepção da autora, o letramento como um processo envolve

múltiplas práticas com múltiplas funções, com múltiplos objetivos condicionados por e dependentes de múltiplas situações e múltiplos contextos em que, consequentemente, são múltiplas e muito variadas as habilidades, conhecimentos, atitudes de leitura e de escrita demandadas, não havendo gradação nem progressão que permita fixar um critério objetivo que se determine o ponto que separa letrados de iletrados (SOARES, 2004, p. 95).

Street (2000) registra que a existência de múltiplos letramentos está associada também à existência de múltiplas culturas. Acredita, pois, que na ressignificação do termo letramento é importante levar em conta as práticas sociais envolvidas no contexto de construção, uso e significados que o termo envolve.

Em relação ao livro didático, defendemos que seu objetivo seja também o de promover os letramentos que extrapolem o universo escolar. Um possível caminho é a diversidade de textos em gêneros e esferas igualmente diversificados que contribuam para situar o leitor “num mundo altamente semiotizado da globalização” (MOITA LOPES; ROJO, 2004, p. 37-38). Isso implica um trabalho levado a termo pelo livro didático de Língua Portuguesa com essa diversidade textual e genérica, para que os leitores em formação ajam como “interlocutores (escritores e leitores, por exemplo) situados no mundo social com seus valores, projetos políticos, histórias e desejos que constroem seus significados para agir na vida social” (MOITA LOPES; ROJO, 2004, p. 37- 38).

Dessa forma, consideramos importante que as atividades propostas a partir dos diversos textos em gêneros e esferas diversificadas, presentes nos livros didáticos de Língua Portuguesa de Ensino Médio, conduzam os alunos ao

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desenvolvimento da criticidade, possibilitando-lhes “fazer escolhas éticas entre os discursos que circulam” (MOITA LOPES; ROJO, 2004, p. 37-38). Esses textos/gêneros e essas atividades de leitura podem contribuir para o desenvolvimento de capacidades leitoras que levem à formação de um leitor crítico.

Ainda nessa perspectiva, Dionísio (2000, p. 104) pressupõe que as práticas de leitura em contexto escolar buscam o desenvolvimento e o aperfeiçoamento das capacidades leitoras que supostamente os alunos/leitores ainda não possuem e que, nesse processo, o livro didático participa como um dos “agentes de escolarização”.

Reiterando essa concepção, Dionísio (2000, p.102-103) afirma

que os textos selecionados, as atividades apresentadas são factor constitutivo e constituinte de concepções partilhadas sobre textos e leitores, sobre leitura e literatura e sobre o processo do seu ensino-aprendizagem bem assim como dos valores a elas associados.

Os livros didáticos apresentam ao aluno na escola não somente uma coletânea de textos/gêneros selecionada e considerada relevante de acordo com o projeto autoral e editorial, como faria uma antologia, mas também exercem sobre esses mesmos textos, por meio das propostas de atividades de compreensão, leituras específicas que podem conduzir o aluno à percepção e à compreensão por certas vias e não outras. Por isso, consideramos necessário neste trabalho analisarmos tanto os textos selecionados pelos livros didáticos como também algumas das atividades de compreensão referentes ao trabalho com a leitura para eles propostas.

Para finalizar este capítulo, retomamos aqui aquilo a que nos propusemos no início do capítulo, ou seja, percorrer, ainda que brevemente, a trajetória das relações entre a disciplina e o livro didático de Língua Portuguesa, a partir do contexto de Ensino Médio, ao longo dos séculos XIX ao XXI, no Brasil.

Percebemos, nesse percurso, uma relação imbricada da disciplina, do livro didático e do Ensino Médio. Dificilmente podemos pensar em separá-los para

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tentar apreender as suas transformações isoladamente. Em alguns momentos, os livros didáticos orquestram as mudanças; em outros, as políticas públicas para o Ensino Médio dão o tom das transformações. Essa alternância de responsabilidades não é neutra, pois vem carregada das apreciações

valorativas, plurivalentes e contraditórias, numa perspectiva bakhtiniana, de

cada interlocutor ou agente e de seus interesses imediatos. Disso, entretanto, não advêm, necessariamente, todas as soluções almejadas pelos principais atores envolvidos nessa trajetória: alunos e professores.

Muitas contribuições teóricas sobre texto, discurso, letramentos, gênero, ainda hoje em discussões acirradas, foram incorporadas nesse percurso, tanto na configuração da disciplina quanto do livro didático, como também na elaboração de ações e programas relativos às tentativas de melhoria das condições de atuação do Ensino Médio.

Em síntese, todo esse movimento histórico de acertos e desacertos de ordem social, econômica, epistemológica e política refletiu-se de forma singular na configuração das práticas sociais de leitura em diferentes contextos sociais contemporâneos, incluindo o escolar.

O objetivo central de nosso trabalho de pesquisa é, pois, buscar a compreensão da (re) configuração dessas práticas sociais contemporâneas em contexto escolar, por meio das análises da natureza do material textual/genérico e das atividades propostas para leitura em alguns dos livros didáticos de Língua Portuguesa de Ensino Médio.

Para tanto, estabeleceremos, desde já, alguns critérios de análise a partir de algumas discussões trazidas neste capítulo.

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3. Categorias de análise para letramentos e leitura críticos

Aliás, é útil aqui retomarmos a distinção entre as perspectivas da leitura

crítica e a do letramento crítico, realizada por Cervetti, Pardales e Damico

(2001, s. p.), conforme o Quadro a seguir:

Área Leitura Crítica Letramento Crítico

Conhecimento (epistemologia)

Conhecimento é obtido através da experiência sensorial no

mundo ou através do pensamento racional; é assumida a separação entre fatos, inferências e avaliações do

leitor.

O que conta como conhecimento não é natural ou neutro; o conhecimento está sempre baseado em regras do discurso de uma comunidade particular e

é, então, ideológico.

Realidade (ontologia)

A realidade é diretamente cognoscível e pode, portanto, servir como um referente para a

interpretação.

A realidade definitivamente não pode ser conhecida nem capturada pela linguagem; portanto, decisões sobre a verdade não podem se basear numa teoria de correspondência

com a realidade, mas, ao contrário, precisam ser tomadas

localmente.

Autoria

Detectar as intenções do autor é a base para níveis mais altos de

interpretação do texto.

A significação do texto é sempre múltipla, contestada, situada

histórica e culturalmente e construída a partir de diferentes

relações de poder. Objetivos

instrucionais

Desenvolvimento de habilidades de compreensão e interpretação

de nível mais alto.

Desenvolvimento da consciência crítica.

Quadro 1 – Distinções entre Leitura Crítica na perspectiva Liberal-Humanista e Letramento Crítico

Segundo os autores, a leitura crítica conduz à busca racional de conhecimento e isso ocorre de maneira experiencial, ou seja, o leitor reflete sobre os fatos que lhes são postos a ler a partir de sua vivência como leitor, o que lhe permite, dessa forma, fazer avaliações e inferências associativas.

Nessa perspectiva de leitura, a realidade observada e experienciada pelo leitor contribuem para que ele oriente-se no processo interpretativo de leitura,