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As dificuldades para a posse de Goulart

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1.5 JÂNIO QUADROS: AMIGO OU INIMIGO?

1.5.1 As dificuldades para a posse de Goulart

Havia se formado uma ampla aliança entre os partidos políticos pela defesa da ordem constitucional. Todos apoiaram a posse do vice-presidente e repudiaram a intimidação militar. Porém, os ministros militares se opuseram à posse, pois viam nele uma ameaça ao país. Liderada por Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Jango, iniciou-se a campanha da legalidade, que exigia a posse de Goulart. Ele havia confidenciado a um amigo que “dessa vez não darão o golpe por telefone225”, referindo-se à prática comum na América Latina de se desferir golpes militares. A ideia central de Brizola era trazer Jango à capital gaúcha e defender, a todo custo, seu mandato presidencial, sem violência.

223 DULLES, 1992, p. 339.

224 Mazzilli, como presidente da Câmara, assumiu a presidência da República algumas vezes, duas delas em circunstâncias extremamente dramáticas da vida política nacional. Por ocasião da renúncia do presidente Jânio Quadros (25/08/1961), o vice-presidente João Goulart, seu substituto legal, encontrava-se em missão oficial na China Popular. Por conta disso, Mazzilli, o segundo na linha sucessória, assumiu o governo interinamente. A perspectiva da investidura de Goulart na presidência agravou a crise política já em curso, uma vez que os ministros militares vetaram a sua posse, alegando que ela representava uma ameaça à ordem e à segurança nacional. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/biografias/ranieri_mazzilli.

225 FERREIRA & CASTRO. 1964 - O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 35.

Brizola fez algumas ligações para oficiais militares com a esperança de conseguir ajuda para esse conflito que já estava traçado. Entre a lista de militares que Brizola recorreu, destaca- se o marechal Henrique Teixeira Lott, o mesmo que havia garantido a posse de JK, que orientou Brizola, indicando as pessoas que ele deveria procurar e as medidas emergenciais que ajudariam a resistir ao golpe militar. Liderada por Leonel Brizola, a campanha da legalidade exigia a posse de Goulart. Brizola e o general Machado Lopes, comandante do III Exército, baseado no Rio Grande do Sul, mobilizaram o estado em defesa dessa causa. Usando uma cadeia de mais de cem emissoras de rádio, o governador gaúcho clamava que a população saísse às ruas para defender a legalidade. A campanha logo recebeu o apoio dos governadores Mauro Borges, de Goiás, e Nei Braga, do Paraná.

Há também registros de manifestações populares em apoio à posse de Goulart. E, embora não houvesse declarações oficiais, o Brasil estava em estado de sítio. O congresso resistia, mas o circo aumentava cada vez mais. A implantação de violenta censura à imprensa foi uma das primeiras medidas tomadas pelo governador Lacerda, procurando impedir a circulação, no Estado, dos jornais que denunciassem a tentativa de golpe contra Jango, ou que traziam notícias da resistência criada no sul por Brizola. A Tribuna da Imprensa foi um dos poucos periódicos que continuou circulando durante esses dias intensos de conflitos:

Os proprietários de jornais e a ABI chegaram a enviar telegramas para a Associação Interamericana de Imprensa, nos quais denunciavam a atitude do governador da Guanabara e pediam, até sua expulsão da entidade. Lacerda, todavia, parece ter conseguido interceptar as mensagens, pois estas nunca chegaram ao destinatário. Além disso, valendo-se de um completo controle sobre os meios de comunicação, tentou convencer a população de que o Parlamento decretou estado de Sítio, fato que, como é notório, não ocorreu. Dessa forma, considerou-se livre para determinar à polícia que invadisse sindicatos e entidades estudantis.226

Inconformado com a probabilidade da ascensão de um herdeiro do getulismo ao poder, Lacerda tentou, de várias formas, legais ou ilegais, impedir que Jango tomasse posse da presidência do Brasil. Dessa maneira, em um primeiro momento, procurou manter uma postura de respeito às leis e à ordem institucional, apesar de apoiar integralmente a tentativa de golpe militar para impedir a posse de Jango, discurso este bastante diferente do guardado em Depoimento, em que afirmou que a sua primeira decisão foi comunicar ao seu secretariado que estaria a favor da posse de Goulart:

[...] muita gente pensa que conspirei contra a posse de Jango. Até aquele momento a minha decisão era a favor da posse. O que me importava acima de tudo, embora eu soubesse que isso ia dar realmente as piores consequências para o país, eu achava pior ainda era, primeiro, ficarmos sem governo e, segundo quebrar definitivamente o processo democrático que Jânio havia interrompido. Vamos empossá-lo, vamos vigiá-lo e vamos combatê-lo. E na primeira que ele fizer vamos tirá-lo, não será a primeira vez que isso acontece. Mas vamos ver se ele assume, se assume compromissos, se cumpre, vamos ver …. Em todo caso é melhor do que essa situação de uma junta militar, que não é sequer uma junta [...]227.

Lacerda insinuava que não havia participado da conspiração contra Jango; entretanto, não estaria tranquilo caso ele tomasse posse da presidência do Brasil. Em outro trecho ele define Goulart como aquele que “tinha gosto do poder. Mas não o tal gosto do poder a que me refiro, não era o poder para fazer as coisas; era o poder pelo poder, era o poder para beneficiar os amigos, era o poder para fazer “cosquinhas” nos adversários, era o poder, enfim, que eu acho de provinciano”228. O Provinciano é o título de uma obra literária escrita por Lacerda e que não chegou a ser publicada, sendo guardada no AORCL229. Provinciano significa: atrasado, de mau gosto, superado, sem elegância e sofisticação. Por não ser um adjetivo comum no vocábulo brasileiro, de imediato não se percebe possível ligação entre a obra e o presidente Goulart. Desqualificar Goulart assim mostrava o inconformismo que Lacerda estava acerca da possibilidade de se “defrontar novamente com o espectro de Getulismo a assombrar seu caminho”230.

Lacerda tentava também vincular Jango aos comunistas para assim incentivar um clima de pânico que pudesse legitimar a tentativa de golpe de Estado. De acordo com Gabriel Lacerda231, todos familiares o aconselharam na época a largar essa situação, pois acreditavam que os militares não tinham forças para conseguir nada, que a melhor opção era ele se pronunciar ao público em favor da posse do Jango. Em meio a um possível golpe militar, Brizola percebeu que, para resistir, era necessário ter também o apoio popular e, para isso, conseguiu burlar a censura por meio da Rádio Guaíba. Defendeu a legalidade do mandato de Jango, mobilizando imediatamente a população da capital e do interior do sul do país. O governador gaúcho clamava que a população saísse às ruas para defender a legalidade. Lacerda

227 LACERDA, 1977, p. 267. 228 Ibid., p. 269.

229 Sigla criada para diminuir o nome do arquivo: Arquivo de obras raras. O arquivo encontra-se na UNB, universidade de Brasília, sob domínio público. Todas as informações são reeditadas dos documentos guardados no arquivo.

230 MENDONÇA, 2002, p. 266. 231 LACERDA, Gabriel, p. 45.

o difamou, dizendo que ele apenas conseguiu fazer sua campanha pela rádio em troca do perdão das dívidas que o filho desse proprietário havia construído.

Com o apoio do general Marechal Rocha, que havia rompido com Denys, o ministro de guerra, Brizola voltou a ter a esperança de que conseguiriam ajudar Goulart a assumir seu posto. Enquanto isso, Jango retornava da sua extensa viagem, sem saber direito a proporção da crise que o Brasil enfrentava:

Inicialmente pensou em renunciar e convocar eleições presidenciais, para evitar uma tensão maior que desembocava em conflito armado. Mas a radical rejeição dos ministros militares a seu nome, somada à atitude em relação a Brizola, teriam impedido que ele tomasse tal decisão. E havia o Congresso, onde uma frente de partidos políticos não se curvava à Junta Militar.232

Na volta da China, Goulart aguardou em Montevidéu, capital do Uruguai, a solução da crise político-militar desencadeada após da renúncia de Jânio. Como os militares não retrocediam, o Congresso fazia uma proposta conciliatória: a adoção do parlamentarismo. Essa solução, para Lacerda, era falsa, não iria funcionar e serviria apenas para dar a posse a Goulart, que depois passaria ao regime presidencialista de novo e a ditador. Ele afirma que foi a partir daí que ele começou a combater a posse de Jango, “combatê-lo por sua falsidade”233.

O presidente tomaria posse, preservando a ordem constitucional, mas parte de seu poder seria deslocada para um primeiro-ministro, Tancredo Neves, que chefiaria o governo. Tancredo Neves foi nomeado pelo próprio Goulart assim que este assumiu a presidência, e foi ele quem convenceu Goulart da necessidade de aceitar o parlamentarismo, já que o país se encontrava frustrado e ameaçado por um conflito armado. A possibilidade iminente de uma guerra civil fez com que o presidente aceitasse o regime parlamentarista, mesmo a contragosto234. Apesar de Brizola querer tomar atitudes mais radicais com a tentativa de um governo presidencialista, Goulart preferiu algo mais tranquilo, sem guerra e derramamento de sangue. Preferiu a paz e conduziu sua administração de forma pacífica, exercendo seu mandato dentro dos apertados limites que o sistema parlamentar o proporcionava.

A posse de Jango não alterou substancialmente o clima de radicalismo político que cresceu durante a crise político-militar. Ele enfrentou muitas dificuldades para governar o país,

232 FERREIRA & CASTRO. 1964 - O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 39.

233 LACERDA, 1977, p. 268.

234 FERREIRA & CASTRO. 1964 - O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 44.

principalmente por se tratar de uma situação peculiar, o parlamentarismo. A posse tinha garantido o restabelecimento da legalidade no país, e a nova tentativa de um golpe militar, com apoio civil, havia fracassado, e os conspiradores, como Lacerda, já estavam se rearticulando para que, na primeira oportunidade, pudessem tomar o poder.

De acordo com o historiador Jorge Ferreira, o que se pode verificar é que, em seus dois primeiros anos, ao menos, não havia ambiente propício a golpes e rupturas institucionais235. Ele fazia de tudo para demonstrar sua posição política: “anticomunista e democrática”236, e assim ganhava tempo para recuperar seus poderes presidenciais e principalmente a confiança e a aprovação popular. O governo divulgou o Plano Trienal, elaborado pelo economista Celso Furtado, para combater a inflação e promover o desenvolvimento econômico (e enum passo seguinte, implementar as reformas, sobretudo no aparelho administrativo, no sistema bancário, na estrutura fiscal e, em particular, na agrária237). O Plano Trienal falhou, após enfrentar forte oposição, e o governo brasileiro viu-se obrigado a negociar empréstimos com o Fundo Monetário Internacional, o que exigia cortes significativos nos investimentos. Nesse mesmo período, sancionou-se a Lei 4.130 que, no seu artigo 2º, eliminou a idade mínima para se aposentar.

A emenda constitucional n°4, que implantou o parlamentarismo, dizia, no seu artigo 25, que, a critério do Congresso Nacional, um plebiscito poderia ser convocado para que o povo se manifestasse sobre sua continuidade ou o retorno do presidencialismo238. Em 1963, houve o tão esperado plebiscito e o parlamentarismo foi amplamente rejeitado, graças a uma forte campanha publicitária promovida pelo governo. A situação era que Goulart já havia conquistado um prestígio, porém, não se pode eliminar o fato de que lideranças políticas como JK e Lacerda tinham muito interesse ao retorno presidencialista, pois estavam de olho nas eleições de 1965239.

Goulart sofria fortes influências da frente liderada por Brizola, e mesmo com o fracasso do Plano Trienal, implementou as reformas de base - medidas econômicas e sociais de caráter nacionalista que previam uma maior intervenção do Estado na economia. O Comíssio das Reformas, ocorrido no dia 13 de março de 1964, e o Levante dos Marinheiros, em 25 de março

235 FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista. Getulismo, PTB e cultura política popular, 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 63.

236 SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Getúlio a Castello. Paz e Terra, 1982. p. 265.

237 FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista. Getulismo, PTB e cultura política popular, 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 331.

238 FERREIRA & CASTRO. 1964 - O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 113.

do mesmo ano, levaram alguns jornais, como o Jornal do Brasil, o Diário de Notícias, o Correio da Manhã e outros tantos, a intensificar a campanha contra Goulart. O presidente parecia fazer de tudo o que seu adversário pedia a Deus que fizesse para facilitar o golpe240:

Depoimentos de pessoas próximas a ele, como Amaral Peixoto e o chefe do Serviço Federal de Informações e Contrainformações do governo, o capitão de mar e guerra Ivo Corseuil, mostram que Goulart não dava atenção aos frequentes alertas que lhe faziam sobre os riscos políticos de muitos de seus atos. Nomeavam generais não confiáveis para o comando de postos-chave, como os do III exército, mantinha, às vésperas do golpe, no Ministério de Guerra, um general hospitalizado e, no Gabinete Militar, outro general vítima de alcoolismo a que fora levado por crise familiar, não ouvia os conselhos para agir com mais firmeza na manutenção da disciplina militar ameaçada por rebeliões de sargentos e marinheiros.241

Segundo Thomas Skidmore242, a derrubada de Goulart provou que os processos constitucionais habituais tinham falhado no Brasil. A queda de Goulart havia sido tão rápida que até os “revolucionários” ficaram surpresos. Em vez de armar uma resistência, o ex- presidente preferiu fugir do país, deixando seus perplexos partidários isolados em face aos revolucionários que se mobilizaram rapidamente. Embora fossem os militares que haviam interferido para salvar o Brasil da “corrupção” e do “comunismo”, os civis também acreditavam ter sido eles os vencedores, tais eram os “antigetulistas civis de ideias neoliberais”243.

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