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Júlio César (1966)

No documento fernandagallinarisathlermussi (páginas 106-108)

2.3 TRADUZIR TAMBÉM É UM MEIO DE CHEGAR AO PODER

2.3.1 Júlio César (1966)

Lacerda considerava a obra de Shakespeare, intitulada Júlio César, publicada em 1981, era muito complexa e que somente um especialista teria condições de apreciá-la sintaticamente. Trata-se de uma peça teatral de cunho político que conta o trágico fim de um grande guerreiro, estadista, orador e escritor que viveu no Império Romano de 100 a 044 a. C. O eterno conflito jamais resolvido entre a liberdade e a autoridade, entre o bem público e as ambições pessoais, entre o dever e o interesse. Os personagens desse universo shakespeariano transmitem um sentimento de grande atualidade e tem vitalidade exuberante. É uma obra muito importante para algumas nações, considerada uma “bíblia secular nos países da língua inglesa (…) patrimônio impecável da cultura humana”364.

De acordo com Eliane Euzébio365, a tradução de Júlio César366, de Shakespeare, é um exemplo desse “momento certo”: Lacerda publicou a sua tradução 10 anos após a sua

363 GENETTE, Gerard. Paratexts: thresholds interpretation. Cambridge University Press, 2001. p. 56. 364 Apresentação da obra de Júlio César, baseada na apresentação da 1ª edição da obra (distribuidora Record, 1965).

365 EUZÉBIO, Eliane. O Poder das ideias - as traduções com objetivos políticos de Carlos Lacerda. 2007. Departamento de Letras Modernas do PPG em estudos linguísticos e literários em inglês. Universidade de São Paulo, 2007.

366 Como para as outras tragédias romanas, o material histórico de Júlio César foi tirado de Vidas Paralelas, de Plutarco.Júlio César, e é a primeira das grandes tragédias que Shakespeare iria escrever na primeira década do século XVII, e marca uma modificação decisiva na orientação artística do autor, que até então se ocupava com temas inocentes de comédias. Por volta de 1599, após as peças sobre a história inglesa, Shakespeare iniciou com Júlio César o ciclo das tragédias romanas. César, figura particularmente fascinante para os elisabetanos, é assassinado na primeira metade da peça, mas permanece no centro da ação por meio das atitudes e reflexões dos outros personagens.A tragédia fala de ironia, da cegueira do povo, das sangrentas lutas pelo poder, de vida privada e responsabilidade pública, e da imensa tensão entre política e moral.

realização, em 1965, em um momento, por assim dizer, “estratégico”, sendo que a impressão inicial é a de que seu objetivo ao traduzi-la foi um reflexão sobre o Golpe de 1964, com o qual João Goulart foi deposto do cargo da presidência da República: “[...] Lacerda se aproveitou para tecer paralelos com respeito a sua própria posição no panorama político de então, paralelos expressos por sua vez no paratexto do livro, e de modo mais velado na seleção de textos numa gravação de disco realizada por ele e em declarações esparsas367”.

O que se percebe foi que a tradução possui mais sentido quando está entrelaçada no mesmo período do suicídio de Getúlio Vargas, o que ele declarou em Depoimento:

[...] porque o que tinha acontecido no Brasil era o que aconteceu no drama de Shakespeare, e não foi à toa que traduzi esse drama: Júlio César. A mesma multidão que aclamava Brutus e os que mataram César, quando Marco Antônio fez seu discurso com o cadáver nos braços, e começou a pedir a morte dos que tinham assassinado César. Foi assim que passei de vítima a assassino de Vargas.368

Os conflitos com o ex-presidente Vargas haviam se iniciado no seu primeiro mandato. Lacerda foi perseguido por delação no Estado Novo, acusado de fazer campanha para o Partido Comunista, e se intensificou quando na edição de 22 de fevereiro de 1945 do jornal Correio da Manhã, que publicou uma entrevista concedida por José Américo de Almeida ao jornalista Carlos Lacerda, que ficou conhecida como “a reportagem que ajudou a derrubar Getúlio Vargas”369.

Apesar da intensa campanha de Lacerda para que Vargas não ganhasse as próximas eleições, ele acabou conquistando a presidência de forma democrática. Mas Lacerda não desistiu, fundando o Clube da Lanterna370 no Rio de Janeiro em 1953, para combater o governo

367 EUZÉBIO, Eliane. O Poder das ideias - as traduções com objetivos políticos de Carlos Lacerda. 2007. Departamento de Letras Modernas do PPG em estudos linguísticos e literários em inglês. Universidade de São Paulo, 2007, p. 31.

368

Depoimento. p. 149.

369 José Américo de Almeida, então ministro do Tribunal de Contas da União, indicado ao cargo pelo presidente Getúlio Vargas e profundo conhecedor dos bastidores da política brasileira, rompeu com o silêncio imposto pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Menos de um mês depois da publicação, Vargas decreta anistia geral para todos os condenados por crimes políticos desde 1934. Em seguida, permitiu a fundação de partidos políticos banidos desde 1937 e convocou eleições gerais e diretas para os Poderes Executivo e Legislativo a serem realizadas em dezembro de 1945. Antes que pudesse realizar as eleições, Getúlio Vargas foi deposto por um golpe militar liderado pelo general Pedro Aurélio de Góes Monteiro, marcando o fim da ditadura do Estado Novo. Em seguida, Eurico Gaspar Dutra, candidato do Partido Social Democrático, foi eleito democraticamente para a presidência da República.

370 Em agosto de 1954, o clube, como toda a oposição civil e militar a Vargas, conferiu grande importância ao chamado atentado da rua Tonelero, ocorrido no dia 5 daquele mês, no qual foi assassinado o major-aviador Rubens Vaz e saiu ferido Carlos Lacerda. O desenvolvimento do inquérito sobre o episódio revelou o envolvimento de membros da guarda pessoal de Getúlio no crime. No dia 19, o Clube da Lanterna dirigiu um

do presidente Getúlio Vargas. Congregava diversos parlamentares, principalmente da União Democrática Nacional (UDN), maior partido da oposição.

A situação de Vargas estava cada vez mais insustentável e, ao invés da renúncia, como todos imaginavam, ele acabou suicidando-se e deixando uma carta testamento. Lacerda, por medida de segurança, foi embora do Brasil por um tempo. A literária Eliane Euzébio faz uma analogia estabelecida por Lacerda a partir da peça shakespeariana e a carta testamento:

A imagem que Vargas constrói de si nos primeiros parágrafos da Carta é de um presidente perseguido politicamente, injustiçado, “vítima” de uma situação que já se repetiu no passado. (...) Já nos três últimos parágrafos, Vargas faz uso de um discurso político paternalista e apelativo, cujo objetivo principal é de persuadir o povo de sua magnitude, de sua capacidade de abnegação e de sua imagem de redentor. (...) se comparados a um trecho do elogio fúnebre da peça Júlio César, poderão servir para tornar patente a relação feita por Lacerda, principalmente no que diz respeito a referências a sacrifícios, sangue e traição.371

Não apenas é possível traçar paralelos da peça com o governo Vargas, mas também no que tange a renúncia de Jânio Quadros, a deposição de Goulart e o Golpe de 1954, dado pelos militares, no qual Lacerda teve imensurável participação. Estes foram governos nos quais Lacerda teve intensa participação em formato de oposição.

No documento fernandagallinarisathlermussi (páginas 106-108)