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Uma tristeza que nunca passava

No documento fernandagallinarisathlermussi (páginas 136-139)

2.4 A PRAGMÁTICA PUBLICIDADE: A IMPORTÂNCIA DOS JORNAIS E DA

3.1.3 Uma tristeza que nunca passava

Em 1976, quando teve seu mandato político cassado, Lacerda teve que lidar com o sofrimento que o afligia. Essa tristeza é notada no capítulo 4, A dádiva do pobre, em que ele escreveu uma paródia que narrava essa aflição:

Aqui onde estou, há inverno. Lá de onde vim, nunca. Por volta do que seria inverno, quando florescem as mangueiras, lá existe apenas uma leve bruma que de manhãzinha dá às árvores um aspecto mais evocativo do que concreto. Algo dançante com tendência a voar, nas copas ramalhuda sob as quais circula um vozerio indistinto como se os troncos confiarem uns aos outros seus segredos, em idiomas propositadamente indecifráveis. Nada inclina mais ao delírio do que a longa contemplação da natureza. Essa confidência das árvores que se abandonam é a do verão na beira do grande rio que continua a correr, lá de onde eu vim. (...) Não creio que seja o gosto do sofrimento que me faz caminhar agredido pelo vento gelado das ruas, nos mais duros inverno ao meu alcance, até me dar por vencido e me refugiar no primeiro calor disponível (p. 27).

Nada mais parecia fazer sentido, “como um maestro cansado de manter os braços levantados para reger uma orquestra sem sons”; “o maestro” era Lacerda, que incansavelmente lutou pela sua pátria; “a orquestra sem sons” são os militares que comandavam a ditadura militar, que um dia também foi idealizada por ele, mas que agora não fazia mais sentido. Como insistir em um governo que anula os direitos do povo?

Ao anoitecer, sinto o estremecimento que baixa sobre o vale. Tudo fica branco, as formas se tornam fluidas e meus dedos recolhem-se mais, resistem ao esforço de articular o lápis para estar garatujas. Aos poucos a alma entra em repouso. Não será um descanso mas uma vida latente, marcada pelas mesmas ansiedades porém mais lentamente compassadas, como um maestro cansado de manter os braços levantados para reger uma orquestra sem sons, um conjunto de instrumentos obstinadamente mudos, roçam arcos sem crina sobre violinos sem corda, a alma partida não dá a caixa a ressonância desejada (...) (p. 28).

A depressão continuava sendo o seu maior problema, acompanhando-o por muito tempo: “Comecei a falar de inverno porque estou em Zurique! Mas esse arrepio, a melancolia no ar, a queda de tantas folhas dentro da alma compassiva, tudo isso tem a ver com o outono. Foi ele que chegou sem avisar” (p. 29).

Escrever sobre solidão era uma tarefa fácil para ele. Em várias partes do livro, Lacerda demonstra o tanto que ele estava sofrendo por ter que lidar com a depressão:

A solidão me fez crescer. Afinal crescer para que? Aí que está. Para que, se o que me sustenta até o fim é a infância que me ficou? Paisagens, vozes, exemplos que me edificaram ou me surpreenderam. Perfis que armei como sombras da mão entre a luz e a branca parede. E demolições, lentas e graves: os sulcos da erosão no barranco desmatado (p. 131).

E a solidão nunca foi uma opção:

A solidão não é aquela que escolhemos, “escolhi a qual quiser, quero uma de vossas filhas, de marré marré de si”, é a única ao nosso alcance, entrecortada de encontros inúteis, penetradas por invasores, tumultuada a tal ponto que já nem a podemos realmente aproveitar. É uma solidão sem grandeza nem resultados, que toma o tempo e nada entrega em troca. Não é a solidão dos píncaros. A do deserto que começa em Hamraset e se cobre de mantas para dormir no colo da noite enregelada. É a dos cubículos, a mesquinha, a estreita dos egoísmos que procuram resolver sozinhos seus problemas no engano de julgá-los solúveis na água morna, sem a quentura do sentimento de uma fraternidade essencial e irredutível, perante a qual toda cólera é provisória e toda prevenção tem algo de afetado e postiço (p. 137).

Chegava a dizer que ele e a solidão eram inseparáveis, dedicando um capítulo inteiro (o capítulo 20, Inseparável) para mostrar como se sentia, como seus dias eram difíceis e suas noites prolongadas:

A solidão não é a noite, como pensam os que a confundem com a momentânea sensação de abandono. A verdadeira não é castigo, é vocação. Não tem hora nem temporada. Povoa-se não raro de temores. É populosa a noite, visões, suores, estalidos, degraus que rangem, uivos de cão, assobios de vento.

Portanto, a seu modo, é companheira. Já nem falo da presença de terceiros, mas dela própria, perfurada de estrelas refulgentes. A manhã, está nunca, pois surge inevitável e já povoada logo que o galo canta e a criança grita. A solidão poderia estar, quem sabe, no meio-dia estonteado. No seu pasmo, a solidão fulgurante (p. 169).

No capítulo 9, Coleções incompletas, Lacerda quis preparar o leitor para conhecer um pouco mais dos seus sonhos, que ficaram incompletos. Ele, mais uma vez, prefere falar em forma de paródia, intitulada A casa, e assim parecia mais fácil para exemplificar suas angústias. A casa seriam os desejados sonhos:

Restam as casas. Cada casa. Coleciono aquelas pelas quais passei. Achei há pouco, numa velha fotografia, a casa em que nasci. Procuro adivinhar aquela em que vou morrer. Desde que tive de descer pelo elevador uma querida morta que se achava muito cansada de viver, não gosto desse modo de sair dos apartamentos para o condomínio dos velórios, banalização da morte com risco de trocar de “capela” e se enganar de defunto - como já tem acontecido. Será preocupação para outros. Mais me toca o redescobrimento dos tetos sob quais decorre - tão depressa! - minha vida (p. 74).

No caso, o seu maior sonho, aquele que, para ele, esperançosamente, quase foi realizado em 1965/66:

As casas são plataformas de sonhos, catapultas de fantasia. Numa se vegeta, noutras se multiplica. Conheço casas que se desfazem pouco a pouco, com um ruído rouco, como se invisíveis formigas as devoraram. O cupim do tédio rói, implacável, assoalhos e almas. Umas são principalmente o leito, noutras sobressai o porão, intenso e palpitante como aquele em que eu me aventurar, num pavor reconfortante, junto aos alicerces da casa da Rua Alice (p. 74).

A desejada presidência da República acabou se desfazendo pouco a pouco, “como ruído rouco, como se invisíveis formigas as devoraram(...) E eu, furtivamente, passeando ali naqueles sonhos esboçados minha angustiada maravilha” (p. 73-74).

No início de 1969 viajou para a Europa e, em maio, seguiu para a África como enviado especial de O Estado de S. Paulo e do Jornal da Tarde. De volta ao Brasil, dedicou-se às atividades empresariais nas companhias Crédito Novo Rio e Construtora Novo Rio, e às atividades editoriais na Nova Fronteira e Nova Aguillar, sendo ambas as editoras de sua propriedade. Colaborou ainda em O Estado de S. Paulo e no Jornal do Brasil, sob o pseudônimo de Júlio Tavares. Faleceu no Rio de Janeiro em 21 de maio de 1977, e os sonhos também.

Outra grande tristeza foi a morte de seu avô, sendo a parte da obra mais sensível (capítulo 6, A roda e a folha). Lacerda, ainda muito jovem, de forma muito detalhada, retrata

um dos momentos mais difíceis da sua vida: “(...) de repente me senti adulto e expulso do paraíso”443, e nada mais fazia sentido, nem a chácara que ele tanto amava, “pode uma casa ser cruel? acho que sim, na medida em que não a tratavam com o respeito que a estima inspira”444.

No documento fernandagallinarisathlermussi (páginas 136-139)