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DIFICULDADES QUE PROVAVELMENTE NUNCA SERÃO RESOLVIDAS COM VIOLÊNCIA

2 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA PERANTE AS ATUAÇÕES VIOLENTAS ESTATAIS

2.4 DIFICULDADES QUE PROVAVELMENTE NUNCA SERÃO RESOLVIDAS COM VIOLÊNCIA

A atualidade carrega, em si mesma, uma incrível sensação de poder. Por conta das inúmeras possibilidades atuais – tecnológicas, biológicas – o ser humano acredita na possibilidade de fazer muito mais proezas que em tempos passados. Nos dias vividos, em qualquer lugar do planeta, a população mundial – que tem acesso ao sistema de computadores – pode alinhavar um diálogo com uma outra pessoa – ou com outras pessoas – observando as expressões faciais através do celular. Essa capacidade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo – em uma neoubiquidade –, através de computadores, celulares, pagers e outras traquitanas, fizeram o ser humano haurir uma ilusão de capacidade de resolução de todas as dificuldades. O consumo45 de tudo criou proles. No entanto, alguns empecilhos não serão resolvidos. Provavelmente nunca. Pouco importa a capacidade de compra do cidadão. Resolver, na pós-modernidade, findou por um sentido de extermínio. Consumo do problema, da repugnância. O consumidor de si mesmo, que se autodeglute em um banquete pantagruélico, não consegue findar as questões momentâneas.

Algumas dificuldades humanas provavelmente não irão se resolver46, por quaisquer métodos, porque a própria natureza humana, em sociedade, caminha para a não-resolução.47

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O termo “consumo” carrega, no presente trabalho, um tom de crítica ao extermínio e coisificação do ser das pessoas, objetos e idéias. O consumidor é um comedor de vida. Um engolidor, insaciável, de novos quereres a cada segundo. A sociedade pós-moderna é consumidora no sentido de destruidora de relações humanas. Há uma transformação do ser humano em coisa para ser utilizado.

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Paulo Queiroz (2002e, p. 131-134) indica que, “Não sem razão, tem-se afirmado que a justiça criminal ‘decide’ conflitos, mas não os resolve”.

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Importante frisar a diferença entre o discurso de resolução e a manutenção de condutas incompatíveis. Apesar de o século XX ter sido marcado por guerras atrozes, o século XXI, no seu clarear, sem olvidar as palavras infladas em prol da paz, continua produzindo armas. A indústria determina as guerras. Assim, em verdade, a não-resolução é o querido pelas condutas – produzir armas, não fechar acordos de paz, intolerar as diferenças religiosas –, apesar do discurso, quando há público e aplausos, no sentido inverso.

Individualmente, no entanto, os quereres são diversos e, portanto, o que agrada algumas pessoas pode ser a “trave no olho” de muitas outras. Vive-se em cidades nas quais os problemas multiplicam-se. A sociedade é complexa e multifacetada. Novas dificuldades surgem e apagam-se. Dessa forma, tudo indica que sempre haverá problemas humanos, sociais e individuais os quais o Estado não saberá “resolver”.

O direito penal, por ser o último a ser chamado, tem o condão de carregar o arquétipo da esperança humana; a única, pendurada, a ser mantida na Caixa de Pandora. As tentativas frustradas geram ansiedade. O ser humano não consegue entender o fio de Ariadne que o levará para fora do labirinto de opressão sentida a cada respirar. O último da fila das resoluções incumbe-se de tentar resolver – retirar da faixa de ansiedade – dificuldades, às vezes, de impossível elucidação.

No entanto, a pouco e pouco, as quimeras, dolorosamente, saem de cena. O sentimento de solidão do vazio da não-resolução – mesmo com a utilização do mundo penal – gera uma sensação de impotência catastrófica – descrédito inconsciente. A atualidade carrega o não-resolver. Relações que, outrora, eram extintas das vidas de todos, no dia-a-dia vivente, têm de ser (com) vividas. Não mais há escolha entre o sim e o não, não mais se faz sínteses – nem mesmo históricas – dos problemas. O terceiro milênio indica a convivência como método regular de “resolução” das dificuldades e manutenção – em certa medida - do status quo, pela demonstração de inoperância de uma dialética com capacidade de sintetizar a dificuldade ou mesmo optar por uma das proposições.

O direito penal, dessa forma, acompanha as tendências mundiais. Apesar de não haver a justificação ou concordância, há o entendimento que a defesa, por meio do direito penal, dos novos bens jurídicos – econômicos, ambientais, financeiros, cibernéticos – geram a impressão de uma expansão imensa da violência estatal. Mas a quantidade de legislação, apesar de relativamente ruins, são confirmações do solidificado princípio da legalidade, sempre de bom tom. No entanto, novas formas de vida, novo momento do viver societário, inexoravelmente, ventilam novidades atuariais dos seres humanos. A adaptação acaba por ser o objetivo. A convivência – pacífica ou não – é o mote pós-moderno para as tentativas de resolução dos desequilíbrios atuais.

O Estado também atua com violência, no entanto, legitimada. Segundo Salo de Carvalho (2003, p. 118), “O uso da força no interior de uma ordem jurídico-política seria sempre limitado por regras e centralizado em organismos determinados, visto a sanção

jurídico-penal ser sempre, independente da espécie de pena aplicada, um ato de violência”. A perda da paciência de esperar gera a violência estatal, desmesurada. O direito penal não “resolverá” todas as dificuldades humanas. Essa verdade – alétheia (CHAUÍ, 2005) – deve guiar a política criminal do século XXI. Alguns acontecimentos mundiais, apesar de haver possibilidade de punições e responsabilidades penais, não são “resolvíveis”. Afinal de contas, quem resolverá o desequilíbrio dos ventos nas cidades litorâneas, a perda de sal dos mares oriunda do degelamento das geleiras polares, o aumento do clima, em níveis de hecatombe, causador da chamada “febre da Terra” e o descrédito cultural da geração permissora de tais acontecimentos?

Igualmente, quando o Estado pode açular os veios mais fáceis de seu comportamento desequilibrante, infla as interpretações e acaba por manipular os conceitos aplicativos da intervenção mínima, estimulando o mundo penal na ambiência consumeirista, apenas no sentido de aplicá-lo quando aprouver aos muito fortes. Há, assim, uma pasteurização dos discursos ao redor do tema, o qual, desafiadoramente, carece ser suplantada no caminhar do presente milênio.

Ao final, o Estado usará violência quando puder enxergar uma resolução ao conflito – ou uma convivência ao conflito – na qual o direito penal seja compatível. Isso quer indicar que dificuldades sem resolução através da violência devem ser não imaginadas correlacionando-se ao sistema penal. Por isso, as “dificuldades não resolvidas” devem ser convividas, apenas.

As dificuldades de entendimento de um título como “prováveis resoluções impossíveis” são presentes. Mas, insta firmar a convicção de não-abalo do ego perante uma proposta de perda de poder de mando. Há, em realidade, uma busca de poder resolver todas as mazelas da humanidade, com solidariedade e paciência. Principalmente em âmbito penal, por sua característica universal de violência, a tentativa de “resolver” é imperiosa. No entanto, aceitar que muitas mazelas provavelmente não serão resolvidas, por nenhum meio, nem mesmo se utilizando da violência estatal, é de certo modo salutar, porque confere maior autoridade reflexiva aos seres humanos. No dealbar do século XXI, quando as guerras e atrocidades continuam, a hora é chegada de imaginar novas respostas convivenciais, além da já falada violência estatal. Por isso, ao revés de sintetizar as dificuldades, tem-se uma nova ordenação de conviver com elas.