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5 A APLICAÇÃO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA NA DOGMÁTICA BRASILEIRA

5.2 A CORREÇÃO AO SENTIDO DO PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA ATRAVÉS DA APLICAÇÃO DA TEORIA DAS FORÇAS

5.2.2 A solidariedade no direito penal

A solidariedade transformou-se em matriz constitucional quando, no art. 3º., I da Constituição da República, indicou-se que os seres humanos precisam da ajuda mútua. A solidariedade legal veio convalidar a inerência da indigência humana (ORTEGA Y GASSET, apud COMPARATO, 2005). Todos os seres humanos são, substancialmente, necessitados de outros seres humanos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, expressava que “Artigo I – Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir umas em relações às outras com espírito de fraternidade”. Fraternidade, de acordo com o léxico (FERREIRA, 1986a, p. 810), significa harmonia, paz, concórdia entre os seres humanos. Essa “organização solidária da vida em comum”, segundo Comparato (2005, p. 49), deve ser o alvo de uma sociedade pós-moderna. Nota-se a “responsabilidade de todos pelas carências ou necessidades de qualquer indivíduo ou grupo social” (COMPARATO, 2005, p. 64). Solidariedade é, neste trabalho, sinônimo de fraternidade.

O mundo penal não nota as fraquezas. Pouco importa as carências para o mundo penal. Pouco importa a necessidade de ajuda. Há abrangência dos fracos, quando fracos ou enfraquecidos, justamente por não terem capacidade de fuga – processo de resistência – ao processo de criminalização das próprias vidas. Caso pudessem – no sentido de capacidade – ninguém residiria em guetos. O conceito de gueto, como este trabalho mostrou, justamente impregna a repulsão. Não existe gueto bom, não há gueto sem pejoração do ser-estar dos que lá vivem como ruins.

A presente argumentação, de que os fracos devem ser expurgados do direito penal, é abstrusa ao mundo penal. Os operadores não refletem em demasia a respeito das fraquezas

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O direito penal somente não deverá funcionar quando a fraqueza gerar uma desnecessidade de atuação com violência. Assim, conforme foi argumentado em tempo oportuno, caso o fazedor do ato açambarcado pelas instâncias penais for forte, em algum ponto, não haverá deslegitimação do direito penal.

dos outros seres humanos, quando da inclusão no mundo penal. Aliás, a discussão mundial é teorética a respeito dos bens jurídicos e da norma penal – dogmática penal. Olvidam-se os seres humanos incluídos e partícipes do mundo penal, invisíveis aos doutos. Redescobrir os seres humanos, amparando-os na medida das próprias fraquezas, é a medida salutar da evolução cultural da humanidade porque contempla a solidariedade, matéria de ajuda dos seres humanos fortes em prol dos seres humanos fracos. A solidariedade entre os seres humanos, com a visão da importância da teorização dos muito fracos, gerará a diminuição da dor de viver dos extremófilos – extremamente vulneráveis.

O direito penal precisa enxergar pessoas237 em todos. Há uma necessidade imperiosa de envidar esforços no sentido de saber da existência de pessoas – como as residentes em regiões guetificadas (WACQUANT, 2004a, 2004b) – que são estigmatizadas (GOFFMAN, 2008), desde a infância, em forma de repulsão social. Outras pessoas, por exemplo, não sabem ler e escrever, na própria língua materna; falam com barbarismos238 e pouco compreendem as nuanças da linguagem de exclusão que utilizam. Outros tantos, por incapacidades físicas várias, vivem uma vida de reclusão, introspecção e sofrimento. Os muito fracos não podem ser açambarcados pelo direito penal porque fracos, e o direito penal é forte – violento – demais na atuação das tentativas de resoluções sociais.

Diante disso, solidariedade/fraternidade – também chamada de compaixão – é atuar com garantias do direito penal no mundo penal, ou seja, garantir atuação, com a violência Estatal, somente perante aqueles que possuem força suficiente para suportá-la. Dando sentido novo ao princípio da intervenção mínima, assumindo uma nova proibição da intervenção violenta estatal perante os extremófilos, o Estado fará a busca da justiça material. Os muito fracos, os extremófilos, devem permanecer sem a presença do direito penal nas próprias vidas – na medida das possibilidades – porque a fraqueza é tanta, que flamula a desnecessidade. No entanto, o mundo penal entrará nas vidas dos fracos porque impossível inibir a atuação dos fatores porosos de poder social.

Para Silva Neto (2006, p. 230), “Solidária é a sociedade que não minimiza os

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Não há de haver, assim, diferenças entre o conceito de pessoa e indivíduo para que excluídas este da ambiência protetiva do direito penal possa cair em ostracismo de garantias. Todos são pessoas e devem ser respeitados como tal, com as diferenças e nuanças caracterizadoras. Não existem inimigos. Não há chandalas, párias como sói informar Günther Jakobs (2007, p. 28-29), quando fala que “Consequentemente, quem não participa na vida em um ‘estado comunitário-legal’, deve retirar-se, o que significa que é expelido (ou impelido à custódia de segurança); em todo caso, não há que ser tratado como pessoa, mas pode ser ‘tratado’, como anota expressamente Kant, ‘como um inimigo’.”

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Apesar de a linguística indicar que os barbarismos não existem, na vida cotidiana, os menos letrados são tratados diferentemente quando se equivocam nas regras gramaticais.

indivíduos, fazendo com que porfie na consecução das metas de todos os segmentos ou grupos nela inseridos, promovendo o desejável equilíbrio entre os interesses heterogêneos”.

Assim, utilizar o direito penal para abranger os muito fracos fere o princípio, explícito, da solidariedade, pois não respeita as diferenças entre as pessoas na resolução das dificuldades sociais, ou seja, não as vê como diferentes necessitadas de medidas diversas. Entrementes, o mundo penal não é sistemático. Desrespeita, com amplidão, os quereres dos doutos de organização e lógica. Assim, por esse motivo, os operadores do Direito na pós- modernidade devem ter em conta a fraqueza alheia no trato do direito penal, direito processual penal e execução penal. A fraternidade elencada no pretender francês de antanho deve vingar em uma sociedade marcada pela desigualdade intrínseca.

O trato dos desiguais deve existir, em algum momento da vida dos muito fracos. Afinal, conforme Galeano (2008, p. 71), há a crença de que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, diz o artigo I. Que nasçam, vá lá, mas poucos minutos depois já se faz o reparte”.239 O trato diferenciado é solidariedade. Obedecer ao comando constitucional, principalmente em seara penal é, assim, uma imposição democrática.