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3 MARIAS DO POVO: VINCOS

3.5 Difunta Correa: santa madre falecida

3.5.1 Difunta Correa: uma encruzilhada semiótica

Difunta Correa é uma santa argentina de existência mítica, surgida no século XIX, cuja devoção se espalhou de um pequeno povoado da porção mais andina do país para todo o território nacional (e para além dele, no Chile e Bolívia) e que chega aos séculos XX e XXI difundida primeiramente pelos trânsitos orais atrelados às transumâncias e depois pela difusão escrita. Encarnando o papel da mãe sofredora, é redobrada dentro dos papéis e limites do catolicismo, a partir do trabalho da fundação responsável pela sua devoção na localidade de Vallecito. O livro A Difunta Correa (1978), de Susana Chertudi e Sara Newbery, é um marco nos estudos da religiosidade e da canonização popular na América Latina. Além da análise antropológica do “complexo cultural Difunta Correa”, as autoras estabelecem fundamentos para a compreensão do fenômeno com o culto a esses defuntos íntimos, partindo da emergência da tradição católica, no que constituiria uma espécie de exercício paralelo do poder santificador exercido pelo povo.

No mito da Difunta Correa, temas como os da maternidade perseverante, da mulher valorosa e da jornada heróica se sobressaem. Em sua imagem se operam mestiçagens do arquétipo da mãe, no qual se comunicam as faces de Agar, a escrava e mãe do primogênito de Abraão que foge para o deserto ao ser humilhada por Sarai; da “mulher vestida de sol”, do Apocalipse, que foge também para o deserto, onde Deus provê um retiro para que seja sustentada por mais de mil e duzentos dias junto a seu filho; e ainda de deusas mães andinas, como Pacha Mama, uma das grandes divindades telúricas protoamericanas, de culto vinculado à agua, e a quem os devotos pedem, entre outras coisas, proteção em suas viagens e travessias. Há na mulher que se lança ao deserto uma autossuficiência que se comunica ainda com as grandes deusas mães africanas. Assim, não deixa de ser interessante a observação de Afonso (1995) com relação às festas em honra das Iami, mães ancestrais Iorubá:

Nestas festas que servem para acalmar as grandes mães, a comunidade masculina veste roupa feminina para lhes agradar. Há uma licenciosidade na linguagem que permite evocar de modo mais ou menos jocoso o enorme poder destas figuras. De facto, ele é tal, que só em momentos rituais pode ser encarado. Diferentes das outras mulheres que têm que o partilhar com o sexo masculino, nestas mães primordiais encontramos uma espécie de autossuficiência. Elas são completas, sagradas. São fálicas, poderosas. A participação masculina no seu universo é circunstancial. Contêm dentro de si todas as possíveis ambivalências. (AFONSO, 1995, p.42)

Ora, no contexto latinoamericano, em que a Mãe leva ao Filho, e em que o Pai é figura difusa (pensando na lógica da catequização mariana), esses trânsitos vão levar também ao rosto da mulher contemporânea no continente: mulheres que, se constituindo em arrimo de família, mas sem o equivalente salarial e de status social dos homens, atravessam o cotidiano com os filhos por alimentar, educar, salvar. Segundo dados do CEPAL (2004), na Argentina 31,2% das mulheres são chefes de família. No Brasil, o número sobe para 38,2%. Essa ida ao deserto das mulheres contemporâneas, assim como para a mítica Difunta, não se trata de opção, mas de impossibilidade.

Para compreender a importância da Difunta Correa, faz-se necessário recompor algumas trilhas históricas e culturais que se entrecruzam às portas do seu santuário, veredas que compõem uma narrativa na qual lenda e fato histórico se entrelaçam de tal modo que se torna impossível determinar onde começa um e acaba o outro. A personagem surge cercada de circunstâncias que a tornam verossímil, entretanto não há qualquer documentação, para além do registro oral, que confirme sua historicidade. Inúmeras versões sobre sua vida e morte surgiram principalmente ao longo do século XX; versões em que elementos como estado civil, nome e propósitos da personagem são alterados. Se em uma versão ela é casada, em outra surge como viúva. Se numa narrativa ela parte em busca do marido e do pai, em outra ela foge para o deserto a fim de escapar da tentação da infidelidade.

À parte as divergências próprias à dinâmica oral da lenda (pelo menos no que se difundiu no século XIX), as narrações guardam um núcleo comum: a morte trágica no deserto e o milagre nutriz da criança amamentada milagrosamente. Segundo a versão mais difundida atualmente, conta-se que em Vallecito, na província de San Juan, Argentina, havia uma bela mulher chamada Deolinda Correa, cujo pai, Pedro Correa, fora preso e o marido, Baudilio Bustos, havia sido alistado à força durante uma das sangrentas guerras civis que perturbaram o país no século XIX. De fato, de 1814 a 1880 o território argentino convulsionou em conflitos armados que mataram milhares de civis e militares. Unitários e federalistas se engalfinhavam em batalhas que decidiriam os rumos que a Argentina tomaria no século seguinte. No interior, os caudilhos se organizavam em montoneras, grupos

armados que assolavam vilas e povoados após as batalhas, deixando um rastro de medo, sobretudo nas mulheres, crianças e idosos. E é nesse contexto que a história da Difunta Correa surge: num cenário de guerra fratricida, no qual a violência e a insegurança dão o tom numa paisagem marcada pela aridez do deserto.

Os relatos situam a morte de Deolinda Correa entre os anos 1830 e 1840. Conta-se que, em busca do marido e possivelmente por estar sofrendo assédio do comandante da tropa arranchada na vila, Deolinda resolve atravessar o deserto com o filho recém-nascido nos braços, vindo a morrer de sede durante a jornada. Diz a tradição que, sentindo a morte se aproximar, a mulher rogou aos céus vitalidade para os seus seios, para que o filho não viesse a sofrer o mesmo destino que ela. Dias depois, alguns tropeiros encontraram o cadáver e, sobre ele, a criança viva e mamando, no que se constituiria no primeiro prodígio da “milagrosa Correa”. Essa história, conforme informa Collucio (1994), é propagada através de poemas e de canções populares, fazendo surgir a figura maternal da Difunta Correa amparando tropeiros e viajantes, atendendo mães necessitadas de socorro, salvando filhos alheios de toda sorte de perigos. Sua devoção vai se espalhando e seu túmulo passa a ser local de peregrinação, o que se intensifica, sobretudo a partir de 1890, quando, em cumprimento a uma promessa, um tropeiro chamado Dom Flavio Zeballos manda construir uma capela em seu louvor. A devoção e os lugares de culto à Difunta ganham todo o território argentino, favorecendo-se dos deslocamentos, primeiro dos tropeiros, e mais recentemente dos caminhoneiros.

É no século XX que a devoção à Difunta se aprofunda e ganha novos matizes. Em 1948 é criada a fundação Cemitério de Vallecito, entidade responsável pela administração do santuário e das oferendas destinadas à santa. A expansão da devoção coloca a região no mapa turístico nacional ao mesmo tempo em que atrai a antipatia dos setores mais conservadores da Igreja Católica, o que leva, em 1976, à declaração da ilegitimidade do culto. Entretanto, a potência do mito não se extingue por decreto. O santuário em Vallecito resiste às forças de oposição que unem esforços durante os anos 1960-1970, anos de ditadura militar no país, e a devoção ganha, assim, fôlego e novos adeptos.

Atualmente, pesquisas acadêmicas, romances, contos, um longa-metragem e documentários somam-se à vasta memorabilia nacional argentina em torno da Difunta Correa, juntando-se também aos exvotos que se acumulam no santuário, que conta com várias capelas construídas por fiéis em agradecimento por graças alcançadas. Para além dos exvotos comuns a esse tipo de devoção (placas, flores, diplomas, vestidos de noiva, maquetes de casas, miniaturas de carros, entre outros), inúmeros trechos de estradas e rodovias

argentinas (las rutas) são tomados por pilhas imensas de garrafas pet de água30 em honra da Difunta, transformando a paisagem numa extensão do local sagrado. Extrapolando os limites da mediação espiritual que é imputada aos santos, há dentre os fiéis quem designe a Difunta Correa de “diosa” (deusa), e é nesse nicho que sua singularidade resplandece.