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2 GUADALUPE-TONANTZIN:DOBRADURAS

2.5 Guadalupe, Aparecida e Luján: dobraduras, giros e desdobramentos

desafia o desencantado Vieira. Eis porque São Tomé fora designado por Cristo para pregar no Brasil; justo castigo para o apóstolo da dúvida, esse de levar a crença ais incapazes de crer – ou capazes de crer em tudo, o que vem a dar na mesma” “outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer são incrédulos”. (VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p.185)

O cristianismo que se espera arraigar no continente precisará, então, moldar-se a ele, e como a estátua de murta evocada por Vieira, a religião terá que procurar seus caminhos, vicejando nas fendas, nas porosidades. Se, por um lado, os primeiros habitantes ao contato com o branco e sua cultura são arrancados de um suposto estado original, por outro lado, também o europeu é, na América, um sujeito desencontrado. A história desse continente é a história dos “arrancamentos” orquestrados pela empresa colonial, daí a impossibilidade em se falar em termos de origem ou pureza de origens ou mesmo de identidade. Mas, do mesmo modo, a história desse continente é uma história de rearranjos, de dobras turbulentas, de diálogos impossíveis que se convencionalizam e se acertam na dinâmica do jogo.

2.5 Guadalupe, Aparecida e Luján: dobraduras, giros e desdobramentos sobre três e mais

Mas o que interessa Guadalupe-Tonantzin a uma pesquisa circunscrita ao Brasil e Argentina contemporâneos? Em primeiro lugar, a colonização espanhola não deixou marcas apenas nos territórios conquistados. Historicamente o período conhecido como União Ibérica, entre 1580 e 1650, durante o qual a união dinástica entre as monarquias de Portugal e Espanha congregou sob a mesma administração também as possessões coloniais, imprimiu entre elas pontos de contato, influências administrativas, linguísticas e religiosas, entre outras, pautadas pelo constante movimento de viajantes e exploradores de natureza e interesses variados.

A influência de Nossa Senhora de Guadalupe se espalha, desse modo, não apenas na América espanhola, mas chega mesmo à América portuguesa onde lhe são construídos vários

templos, entre eles a Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, em Olinda, Pernambuco, erigida entre 1626 e 1629, de onde a devoção à Senhora de Tepeyac provavelmente se espalhou para ermidas e oratórios do Brasil colonial. Ao lado de Nossa Senhora do Livramento, Guadalupe se constituiu, no Brasil, como uma das padroeiras preferidas nas irmandades dos homens pardos. Essas irmandades, algumas exclusivamente abertas a mestiços, gozavam de grande prestígio social.

Na cidade de Olinda, se vê o Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, a que deram princípio os homens pardos, que levados do exemplo dos pretos lhe fundaram uma formosa casa [...]. Nesta servem os pardos assim forros, como cativos à senhora com grande devoção. Vê-se esta Senhora colocada no altar-mor como Senhora e Padroeira da Casa. (Frei Agostinho de Santa Maria apud QUINTÃO, 2002, p. 183)

Guadalupe também se constituiu como santa de preferência dos indígenas brasileiros convertidos (QUINTÃO, op. cit). Mesmo sem dados históricos que o confirmem, o Padre João Corrêa Machado levanta a hipótese de um aparentamento entre Nossa Senhora de Guadalupe e Nossa Senhora de Aparecida: “a estátua de Nossa Senhora de Aparecida, padroeira do Brasil, não é senão a cópia em barro do retrato miraculoso da aparição de Nossa Senhora de Guadalupe” (MOTT, 1995). Isto evidenciaria não apenas o poder de penetração da influência hispânica nos primórdios da colonização brasileira, especialmente através dos jesuítas, mas a própria plasticidade barroca da padroeira mexicana. No entanto, outros rostos, para além da personagem Tupãnsy, se juntarão ao da Virgem Negra brasileira. Para além de uma evidência histórica que, de fato, pudesse confirmar o parentesco entre Guadalupe e outras virgens mestiças americanas, se tem uma América cuja catequização pede urgência e adesão, inicialmente do indígena ou, mais adiante, do negro e do homem “do povo”, e não por acaso a incidência dessas virgens com materialidades e milagres similares parece obedecer a um projeto articulado.

A imagem de Nossa Senhora de Aparecida foi encontrada por três pescadores, possivelmente na segunda quinzena de outubro de 1717, no rio Paraíba do Sul, nas imediações de Guaratinguetá, interior de São Paulo. Conta-se que a estatueta veio às redes em dois pedaços, primeiro o corpo e, em seguida, a cabeça. Os pescadores, que até então não haviam conseguido qualquer peixe, após o achamento, foram agraciados com o milagre de uma pesca farta. Seu nome, Aparecida, se deve ao surgimento nas águas. A devoção a esta imagem surgida das águas (como Guadalupe, note-se) ficou circunscrita, por muito tempo, ao âmbito familiar, mas ganha notoriedade com o crescimento econômico da região em que foi encontrada e, mais tarde, quando chama a atenção da Princesa Isabel, que lhe oferta uma coroa e um manto azul bordado. Para Lourival do Santos (2007) Aparecida funde duas outras

devoções marianas importantes no Brasil Colonial, Nossa Senhora da Conceição (da qual sua imagem é originária) e Nossa Senhora do Rosário, virgem de especial devoção entre a população negra: “Conta-se que a imagem da santa foi achada com a cabeça separada do tronco. Teria sido emendada posteriormente e, para disfarçar, a emenda, foi colocado um rosário em torno do pescoço que se estende até as mãos” (SANTOS, 2007, p. 94).

Maria é dentre os santos do catolicismo a que recebe mais títulos, são mais de mil diferentes nomeações. Seu nome é um só, Maria, e as intitulações sofrem quatro tipos de variação:

1. conforme os atributos de sua missão: Nossa Senhora da Imaculada Conceição, por ter sido concebida sem pecado original; Nossa Senhora Mãe de Deus, por conceber Jesus por intermédio do Espírito Santo; Nossa Senhora da Assunção, porque, isenta de pecado e mãe de Deus, foi elevada ao céu em corpo e alma.

2. conforme os fatos de caráter biográfico: Nossa Senhora de Nazaré, Nossa Senhora de Belém, Nossa Senhora das Dores do Calvário, entre outras.

3. conforme suas virtudes: Nossa Senhora Rainha da Fé; Nossa Senhora da Elevada Graça, Nossa Senhora da Caridade etc.

4. conforme os lugares onde ela é honrada ou conforme suas aparições e/ou intervenções: Nossa Senhora da Salette; Nossa Senhora de Lourdes, Nossa Senhora Achiropita, entre outras.

Esta plurirrepresentatividade parece mais que adequada a uma sociedade barroca, sobretudo num continente em que a figura da deusa mãe se multiplica também em nomes e poderes. E é no centro desse entroncamento que colocamos esta Nossa Senhora de Guadalupe, filha de uma mestiçagem radical desde antes de sua saída da Extremadura. E em suas ramificações, como segmentos principais do interesse dessa pesquisa, colocamos Nossa Senhora de Aparecida e a Virgem de Luján, respectivamente padroeira do Brasil e padroeira da Argentina.

Não seria casual, portanto, tantos episódios de aparição a índios, na América espanhola, uma vez que a sua domesticação, inclusive como mão- de-obra, foi uma preocupação mais constante do que na América portuguesa. Nesse sentido, pode-se buscar o entendimento da atribuição da cor negra à Aparecida, processo que percorreu longo caminho até ser incorporado pelo discurso oficial. Possivelmente, tal percurso se tenha dado com outras Virgens da América espanhola, o que, por si só, seria assunto de grande interesse. As várias invocações e representações da imagem de Nossa Senhora demonstram a multiplicidade de realidades que esse símbolo pode incorporar. Talvez seja exatamente aí que resida a sua força: ao ser única e ao poder tomar diferentes representações, Maria se

consolidou como mediadora do povo cristão junto a Deus. Intercessora especial, única a gozar o privilégio da proximidade de Deus e dos homens, se fazia, ao mesmo tempo, elo de ligação entre o Céu e a terra. Mais do que isso: na América, identificando-se com a cor de negros, índios e mestiços, fazia-se mediadora cultural entre o universo letrado e o mundo a ser conquistado pela fé católica. (SOUZA, 2011, p. 5)

Sobre a Virgem de Luján, um dado histórico é pertinente à circularidade que se pretende evidenciar. Na Argentina, os primeiros jesuítas se estabelecem oficialmente na província de Córdoba, em 1599, na chamada Manzana Jesuítica, um complexo educacional e espiritual cujo objetivo seria a catequização e educação dos indígenas e colonos. A devoção à Virgem Maria em terras argentinas se aprofundará, no entanto, com a presença da Virgem de Luján, cuja imagem chega ao país em maio de 1630 pelas mãos de um estancieiro vindo do Brasil. É também uma virgem morena e aparentada iconicamente a Nossa Senhora de Aparecida. O mito fundador da devoção mariana na argentina conta que este homem trazia em seu carro de boi duas imagens de Nossa Senhora da Conceição que foram encomendadas e trazidas de Pernambuco, no Brasil, para culto em uma capela na região de Sumampa. Foi enviada uma imagem a mais como prova de amizade e talvez garantia para o caso de algum acidente. Nesta comitiva estava também um negro escravizado chamado Manoel. Ao chegar às margens do rio Luján, a carroça não mais se move. E é justamente Manoel quem aconselha para que se retire do carrro uma das imagens, ao que este permaneceu imóvel. Manoel aconselha depois que se retire a segunda imagem, e logo o carro torna a se movimentar. Repetindo a experiência algumas vezes, percebe-se que o carro se movimenta apenas com uma das imagens e não mais com as duas. Interpretando o fato como uma vontade da Virgem de não abandonar o lugar, a deixam na casa mais próxima, onde é estabelecido um lugar de culto que passa, a partir desse evento, a atrair fiéis, dando lugar a uma povoação. O escravo Manoel também é deixado e, a partir daí, dedica sua vida à devoção daquela que fica conhecida como Virgem de Luján. Esta senhora é adotada pela Igreja como devoção digna de culto. Não por acaso é também nomeada a “Reconquistadora”, e está ligada aos movimentos nacionalistas argentinos.

O parentesco entre estas três virgens mestiças se dá para além das semelhanças da representação indicial da Imaculada Conceição, ou seja, a meia lua sob os pés, o uso do manto, as mãos postas sobre o peito. Essa imagem de Maria reporta à mulher apocaliptíca: “E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça” (APOCALIPSE 12: 1). Esta mulher não raro tem sob seus pés uma serpente. De Villuercas a Luján, elas se relacionam de modo

direto ou indireto às àguas dos rios e suas aparições e milagres falam diretamente ao povo mais simples: índios, pescadores e escravos. Para a Igreja Católica, a Imaculada Conceição é simultaneamente um título e um dogma. Como dogma, trata-se de uma revelação divina, acatada e proclamada pela Igreja, cujo significado aponta para uma “concepção sem manchas”, ou seja, para o mistério da fé de que Maria, mãe de Jesus, foi preservada do pecado, não tocada por qualquer falta desde que foi concebida. O dogma da Imaculada Conceição foi proclamado pela Igreja Católica em 8 de dezembro de 1854 pelo Papa Pio IX. Como título, Nossa Senhora da Imaculada Conceição remete ainda ao arquétipo de maternidade de origem divina que marca diversas narrativas sagradas. Em Guadalupe, Aparecida e Luján, para ficar apenas na matéria delimitada a esta pesquisa, a Imaculada Conceição se transfigura e se amolda a um mundo que precisa ainda ser inventado. Guadalupe, por ser a primeira de tantas, seria na América uma “mãe das mães”: no rosto de todas elas, o rosto de todas; no rosto de todas elas, o rosto de uma só.