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2 GUADALUPE-TONANTZIN:DOBRADURAS

2.3 Representações de Guadalupe

aspectos de formação do povo mexicano, bem como foram imprescindíveis para a adesão do povo ao catolicismo, o Nican mopohua teve, no dizer de Richard Nebel (1995), o papel de um evangelho “transcedente e transcultural”, uma boa nova emanada da cultura, do sistema de valores e crenças daquele povo que, ao encarnar suas histórias, dores e passado, acabou por permitir a criação de outros modos de devoção assentados sobre a energia telúrica da Serpente Emplumada em suas plurais invocações e sobre o estandarte cristão que a Virgem Maria carrega, a partir daí, como mãe da América. E estas práticas devocionais servirão como modelo tanto para a evangelização colonizadora do restante do continente como para o estabelecimento de modos de (re)invenção da religiosidade popular. Guadalupe-Tonantzin, veladamente, conquista o território sob os mais variados rostos e tonalidades. É uma operação complexa e dinâmica de mestiçagem radical que estabelece uma conciliação de diferentes para além dos discursos legitimadores e que transborda em modos muito próprios de viver o cotidiano, de transfigurar santidades e divindades em pessoas comuns, e de perceber a si mesmo e ao outro.

2.3 Representações de Guadalupe

Aqui é pertinente uma análise mais detalhada dos elementos imagéticos de Guadalupe, no sentido de perceber como a mestiçagem se opera material e simbolicamente. Em primeiro lugar é preciso compreender a imagem impressa na tilma10 como uma espécie de códice asteca. Os códices são livros de pintura deixados pelas civilizações pré-hispânicas, feitos em papel amat, uma espécie de cortiça, ou de pele de veado. Esses códices eram centrais na vida do indivíduo, regendo sobre temas como nascimento, morte, direitos, estratégia militar. Sua leitura era feita pelos sábios e orientada por uma tradição oral rigorosamente exata que era aprendida pelos estudantes por meio de um sistema de cantos, poemas e discursos. Sistema este que se constituía num poderoso “texto em presença”, como explica Paul Zumthor:

É nessa rede de percepções, de costumes e de ideias que se desenvolvem as “tradições orais”. A língua, liame da coletividade, propicia a única possibilidade de fazer conhecer o nome e a conduta dos ancestrais, assim como a razão de ser do grupo no dia-a-dia; mas a palavra oral, interiorização da história, não se desenrola no tempo como uma sequência de acontecimentos; ela se sucede dialeticamente a si mesma, em constante                                                                                                                

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Tecido usado por povos pré-colombianos feito a partir da fibra de cacto. Diz-se do manto ou xale feito com esse material.

reorientação de escolhas existenciais, alterando-se a cada vez que nela ressoa a totalidade de nosso ser-no-mundo. (ZUMTHOR, 2010, p. 282) Assim, para o asteca, o poema era o topo da conquista intelectual, o ápice a que o conhecimento humano poderia chegar. Guadalupe em imagem e em poema, no Nican mopohua, pode ser entendida como um impressionante códice mestiço no qual os elementos cristãos são dobrados e redobrados entre os elementos não apenas da mística indígena, mas de todo o seu sistema cultural.

Guadalupe se constitui em uma complexa comunicação entre cosmovisões em diálogo e em conflito. Aqui mesclaremos a análise semiótica a um sistema interpretativo organizado pelo monsenhor Eduardo Chávez11, estudioso mexicano da História da Igreja. Observe-se a figura 1 (p. 38). Trata-se da imagem da Virgem de Guadalupe, nela é possível perceber acentuados elementos indiciais de uma certa mestiçagem cultural. Para uma observação mais detalhada, na figura seguinte (p. 39) destacam-se alguns pontos numerados de 1 a 9:

No ponto 1 (figura 2, p.39), observem-se as mãos cruzadas. A mão direita, que se sobrepõe à esquerda, é levemente mais escura pelo jogo de luz e sombra, o que se poderia configurar como um indício da mestiçagem entre o ibérico e o indígena americano ou ainda entre Maria e Tonantzin. Para o monsenhor Chaves, as mãos postas indicam ao fiel indígena também uma substituição: não há mais a necessidade do sacrifício humano e do oferecimento do coração em sacrifício aos deuses. No sistema de crenças asteca, esta era uma das principais oferendas, aquela que permitia que o sol continuasse a brilhar e que os deuses fossem pródigos em bênçãos aos homens. Sendo uma mulher vestida de sol (ponto 5, na figura 2), ou o próprio sol a surgir entre as nuvens (evidenciado pelo ponto 9), Guadalupe efetua por completo a substituição icônica em relação ao antigo sistema de crenças.

No ponto 2 (figura 2, p. 39), o cinto que circunda a cintura da Virgem indica sua gravidez. A concepção sagrada é dada pela virgindade, esta atestada pelo manto sobre a cabeça e pelos cabelos soltos. A túnica (pontos 3 e 4) também reflete o claro/escuro das mãos da Virgem, representando novamente sua natureza dual, divina e terrena.

As flores do vestido (figuras 3 e 4, p. 40), em padrão asteca, têm suas raízes voltadas para o manto (ver ponto 6 da figura 2) o que indica a natureza divina da mulher representada. Dentre essas flores apenas uma é de quatro pétalas (figura 4, p. 40), a flor de Nahui Ollin,

                                                                                                               

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Na série “Descubriendo a Santa Maria Guadalupe”, disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=C7RsGN0xebk&list=PL77H81SkQ9ix80If-A8siOfnVGa2DfgVh e acessado em 12/04/2013.  

signo representativo do sol e do movimento incessante, morada de Deus, que na imagem indica também os quatro pontos cardeais. Segundo o monsenhor Chavéz, em comparação com os códices astecas, as demais flores representam colinas e por extensão as tribos do império.

Retornando a mirada para a figura 2 (p. 39), no ponto 6, o manto azul esverdeado, representa, por um lado, a harmonia entre a água e os céus, e por outro, um mapa celeste de Tepeyac no momento da aparição. A constelação que aparece no zênite, logo acima da Nahui Ollin, é a constelação de Leão, que se refere, no contexto, diretamente ao filho que a mulher traz no ventre. Curiosamente esta constelação em náhuatl também se chama Nahui Ollin. O anjo (ponto 9) em nada se assemelha aos putti barrocos europeus. Por um lado tem as feições de criança (ver detalhe na figura 5, p. 41), no entanto, uma acentuada calvície evidencia uma idade mais avançada, dando-lhe o contorno de um “menino velho”. Suas asas não são asas de anjo, mas de águia, pássaro que, na cultura asteca, seria o único capaz de se aproximar do sol, um mensageiro entre deuses e homens, aquele que levava nas garras os corações até o sol. O anjo alude a Juan Diego, testemunha e mensageiro do milagre de Guadalupe, o rosto moreno e mestiço que espelha, na baixa extremidade da tilma, o rosto moreno e mestiço da Virgem, que se posiciona no alto. Por fim, a lua negra em que se firmam as figuras é o próprio México, cujo significado é literalmente “no umbigo da lua”. Neste ponto, retomando o Nican mopohua, vale ressaltar que a Virgem se comunica com Juan Diego não em espanhol, mas em náhuatl. Isso é válido também para a tilma, e ambos, poema e manto, se configurando como um códice mestiço, composto comunicacional bordado de sentidos não apenas para os indígenas, mas para o novo indivíduo que é gestado a partir daquele evento. Um sujeito mais próximo do divino, tocado também por uma nova sacralidade. Assim, a criança que Guadalupe-Tonantzin gesta, é uma criança de natureza dupla, uma criança dos deuses e do povo.

Figura 1: Virgem de Guadalupe

Figura 2- Virgem de Guadalupe

Figura 3: Detalhe do manto, flor.

Fonte: Frame do filme Descubriendo a Santa María de Guadalupe

Figura 4: Detalhe do manto, flor de Nahui Ollin

Figura 5: Detalhe do anjo

Frame do filme Descubriendo a Santa María de Guadalupe