• Nenhum resultado encontrado

2 GUADALUPE-TONANTZIN:DOBRADURAS

2.4 Tupãnsy: outra Maria entre a dobra e o vinco

No Brasil, a conquista espiritual dos povos nativos obedecerá a uma lógica diferente daquela aplicada aos povos pré-colombianos com sistemas religiosos estruturados em torno da adoração a divindades e suas imagens. A colônia portuguesa, com populações indígenas sem cultos a deidades ou idolatrias, delineará mais detalhadamente não apenas uma ressignificação do culto mariano, mas uma invenção do mesmo. Entre os “brasis” foi preciso fabular uma genealogia divina para que coubessem noções de veneração totalmente desconhecidas para estes povos. Em 1549, na expedição do Governador Geral Tomé de Souza, chegam à cidade de Salvador, no Brasil, os primeiros jesuítas. Quatorze anos depois, em 1563, o religioso belga Jean Leunis funda, em Roma, a primeira Congregação Mariana. É pelas mãos do padre José de Anchieta (1534-1597), que a fraternidade mariana chega a terras brasileiras, no Colégio de Jesuítas da Bahia. Anchieta, interessado nos costumes, línguas e hábitos dos índigenas, se esforçará no sentido de fazer coincidir culturas radicalmente dissemelhantes. E o fará por intermédio da música, da poética, do teatro, da

conquista dos corpos em suas possibilidades performáticas para a efetiva conquista das almas. Alfredo Bosi (2010) aproxima a aculturação, mudanças que resultam do encontro de culturas diferentes, da tradução, uma tentativa de traduzir o sagrado, diga-se de passagem. Mas ao descobrir no culto aos mortos o centro de poder das metafísicas indígenas, coube à catequese procurar destruir seus significados, demonizando as identidades coletivas que fluíam entre os bons espíritos e os espíritos maus. É assim que doutrinação, tradução e poética significaram sobretudo fratura. No caso de Anchieta, sua retórica pactua, então, com expressões hieráticas as quais não se previa a consciência moral livre.

O projeto de transpor para a fala do índio a mensagem católica demandava um esforço de penetrar no imaginário do outro [...] Na passagem de uma esfera simbólica para outra Anchieta encontrou óbices por vezes incontornáveis. Como dizer aos tupis, por exemplo, a palavra pecado, se eles careciam até mesmo da sua noção, ao menos no registro que esta assumira ao longo da Idade Média europeia? (op. cit., p. 65)

Anchieta, porém, é ainda um dos mais bem-acabados exemplos da capacidade de fusão e de mestiçagem de espiritualidades, línguas e culturas experimentada na América. O caráter educativo de sua obra missionária o faz misturar elementos de uma e outra visão de mundo, conciliando aspectos contraditórios entre estas, uma operação barroca por excelência. No auto Recebimento que fizeram os índios de Guarapari ao Padre Provincial Marçal Beliarte, o jesuíta apresenta Tupãnsy, figura feminina protetora de quem segue os ensinamentos cristãos e que castiga quem se recusa ao novo estado de coisas e crenças. O percurso do frade avança pelas extremidades, traçando curvas hiperbólicas: Tupã, que originariamente não seria um deus, mas o som do trovão, ou o relâmpago, é então fabulado como divindade para facilitação da evangelização, sendo caracterizado como um deus único e supremo, uma espécie de Javé ameríndio. Noutro rasgo de ousadia e invenção, Anchieta, demiurgo de um nova metafísica para os povos ameríndios, cria Tupãnsy, a mãe de Tupã, dobra literária na qual conforma e “envelopa” a “Virgem Mãe de Deus”. Com efeito, afirma: Nenhuma criatura adoram por Deus, somente os trovões cuidam que são Deus, mas nem por isso lhe fazem honra alguma, nem comumente têm ídolos, nem sortes, nem comunicação com o demônio, posto que têm medo dele, porque às vezes o mata nos matos à pancadas, ou nos rios, e porque não lhes faça mal, em alguns lugares medonhos e infamados disso quando passam por eles, lhe deixam alguma flecha ou penas ou outra coisa por oferta. (ANCHIETA, 1933, p. 331)

O esforço de Anchieta parte de uma catequese marcada por soluções muitas vezes violentas, entretanto, não será suficiente para arrefecer o temperamento errático da crença entre os primeiros habitantes do Brasil. Assim como entre os povos originários do México,

que resistiram sobrepondo as imagens astecas às cristãs, aos índios catequizados da colônia portuguesa oscilar entre a crença e a descrença passa a fazer parte do jogo. O padre Antonio Vieira (1608-1697), no Sermão do Espírito Santo (1657), usa das imagens do mármore e da murta para discorrer sobre o caráter inconstante e trabalhoso do indígena nas terras do Brasil. Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de prazer de príncipes, veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos lhe fazem sete, e o que pouco antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidos, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações, pelo contrário — e estas são as do Brasil —, que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não vêem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não dêem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos. (VIEIRA,1957, p. 205-255)

Eduardo Viveiros de Castro (2011), em análise do sermão de Vieira e do tema da “inconstância da alma selvagem”, rejeita a ideia da cultura como um núcleo duro assentado sobre um sistema de crenças e levanta a hipótese de que o fundamento da cultura tupinambá, assim como de outras sociedades ameríndias, seja não o que coincide com o sujeito, mas uma alteridade radical e autotransfigurativa: ser o outro sem se perder a si mesmo. No encontro do índio com o homem branco, a moeda de maior valor para os nativos brasis é a troca e não a identidade, pois a identidade é contingência, e a troca, permanência. Isso, aliado a uma ausência de crença num poder centralizado, tanto política quanto espiritualmente, se tornará, senão um empecilho à conversão, um agente perturbador da mesma: “Os selvagens

não creem em nada porque não adoram nada. E não adoram nada, no fim das contas, porque obedecem a ninguém [...]. Os brasis não podiam adorar e servir a um Deus soberano porque não tinham soberanos nem serviam a alguém.” (op.cit., p.216-217). Decoud, personagem de Nostromo, romance de Joseph Conrad ambientado num imaginário país sul-americano, amplifica esse pensamento dizendo: A América é ingovernável!

No Brasil, em troca, a palavra de Deus era acolhida alacremente por um ouvido e ignorada com displicência pelo outro. O inimigo aqui não era um dogma diferente, mas uma indiferença ao dogma, uma recusa de escolher. Inconstância, indiferença, olvido: “a gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a