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3 MARIAS DO POVO: VINCOS

3.3 Filha da Marquesinha de la Sierpe: o caso Aída Curi e a mídia impressa

3.4.3 Tânia Maria: menina santa ontem e hoje

Cena de abertura: uma criança, de cerca de quatro anos, gira em meio a chamas. Traja um vestido rosa e azul de cetim brilhante e sua cabeça está ornada por um resplendor igual ao usado nas representações dos santos da Igreja Católica. Após o primeiro giro, as mãos que estão cruzadas junto ao peito se estendem receptivamente às chamas que, por sua vez, crescem em pequenas explosões que parecem sobrenaturais. Após o segundo giro, seus olhos vertem lágrimas de sangue. Após o terceiro giro, a menina se transforma numa estatueta de gesso, uma imagem de santa, um ícone de si mesma.

                                                                                                               

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A descrição refere-se à abertura do programa Linha Direta, em episódio exibido em 2001 pela Rede Globo de Televisão. A atração apresentada semanalmente, nas noites de quinta-feira, entre os anos 1990 e 2007, procurava reconstituir dramaturgicamente, casos envolvendo crimes de morte. Nas últimas quintas-feiras do mês, um especial denominado Linha Direta Justiça, dedicava-se à reconstituição de delitos famosos na história nacional. A cena detalhada acima é o preâmbulo do caso “Fera da Penha”, um crime que abalou o Rio de Janeiro em 1970.

O programa Linha Direta entra para a história da televisão brasileira ao agregar elementos de grande apelo comunicacional: a espetacularização da violência e a folhetinização da notícia aliados a depoimentos reais de pessoas envolvidas no caso, como testemunhas, parentes das vítimas, policiais e outros profissionais. Uma fórmula usada largamente em programas da TV norte-americana, a exemplo de Medical Detectives, onde a medicina forense explica e soluciona casos intrincados com o auxílio dos mesmos elementos. No caso brasileiro, a disponibilização de um número de telefone para o recebimento de denúncias anônimas entra como um elemento comunicacional poderoso ao trazer o espectador para dentro da própria trama.

Segundo Kléber Mendonça, na briga pela audiência, a narratividade do programa busca uma aproximação do gosto popular, uma empatia na qual “é exacerbada uma violência desesperadora que explode no encontro do bem indefeso com o mal impune. A transformação de brigas cotidianas em crimes hediondos simulados (e re-construídos) em cores berrantes ajuda a construir uma linguagem afinada ao gosto popular” (MENDONÇA, 2001., p.52). Citando Jesús Martín-Barbero, Mendonça ressalta que não apenas o sensacionalismo sustenta essa estratégia, mas alinha esse movimento a uma busca de conexão com outras linguagens circulantes na paisagem, uma característica presente na mídia latino-americana.

No programa, muitas tramas se entretecem: a vida ficcionalizada pela dramaturgia, o uso do jargão e dos códigos policiais como instrumento de autoridade, o cidadão comum impelido e seduzido a entrar na narrativa por meio da participação anônima, e desse modo também se ficcionalizando, e ainda o depoimento de testemunhas, familiares, policiais, outros réporteres atestando o produto menos como o objeto dramatúrgico que é e tanto mais como uma verdade fundamentada. Um mosaico complexo e móvel em si mesmo.

No embate entre o bem indefeso e o mal impune e absoluto, encontram-se as personagens Tânia Maria e Neide. Neide Maria Lopes, comerciária suburbana, leitora ávida das crônicas do escritor Nelson Rodrigues, então com 22 anos, envolve-se com Antonio

Couto Araújo. Após descobrir que o mesmo é casado e ser por ele obrigada a fazer um aborto, aproxima-se da família deste, tornando-se amiga de sua esposa e conquistando sua confiança assim como da filha do casal, Tânia Maria Coelho Araújo, de 4 anos de idade. No dia 30 de junho de 1970, fingindo ser uma vizinha, Neide passa na escola em que a menina estuda e a leva consigo. Depois de horas perambulando com a criança, a leva para um local ermo, um abatedouro no bairro da Penha, atira na menina e, conforme consta na cobertura do caso feita pela imprensa da época, com a vítima ainda viva, incendeia o corpo.

Descoberta como autora do assassinato, numa confissão conseguida após doze horas de inquérito, pelo jornalista Saulo Gomes, que havia pedido ao delegado responsável a permissão para entrevistar a moça, Neide admite a culpa e, a partir daí, recebe a alcunha que a torna conhecida, Fera da Penha. Num caso desde o começo pautado pela imprensa, a assassina é apresentada como uma pessoa fria, calculista, fora dos padrões considerados normais para uma moça de sua idade: fumava, trabalhava, mantinha um relacionamento ilícito. O fato de ser leitora de Nelson Rodrigues é sutilmente colocado pelo discurso moralizante como um agravante, ela mesma uma espécie de personagem rodrigueana que parece pular das páginas do jornal, das linhas do folhetim, para o mundo real. Um ser que consegue essa façanha é em si mesmo, segundo os códigos sociais, uma aberração, um ser monstruoso e obtuso.

Em artigo escrito por Arlindo Silva e publicado em 30 de julho de 1960, na revista O Cruzeiro, Neide é qualificada como “Frankestein de saia”, o que reforça seu caráter duplamente humano e monstruoso. Anette Lobato (2008), ao traçar o percurso da construção da monstrualidade de Neide, chama a atenção de que, ao não ser feita qualquer alusão ao caráter do amante ou ao fato de ter sido obrigada a abortar, a assassina é delineada pela imprensa conforme uma agenda moral pré-estabelecida e pouco simpática ao perfil de mulher que ela representa: uma mulher sexualmente livre, em busca de uma independência financeira e dada a leituras pouco convenientes a uma “moça de família”.

A maneira singular de ser e de viver da moça Neide chocava com o que estava estabelecido ideologicamente para o país e para as mulheres. Além disso, Neide era uma moça pobre, mais facilmente tornada um anti- paradigma por uma propaganda contra a emancipação feminina. Ao deslizar (o que não significa evadir-se) do projeto hegemônico de família, contenedor das mulheres, Neide apresentou indiretamente razões para que os operadores da imprensa (uma fratria) se alçassem à construção da Fera da Penha, no passado e mesmo em nossos dias. As condições para o aparecimento de um ser abjeto (meio mulher- meio fera) de grande projeção estavam dadas naqueles anos sessenta. Era preciso brecar o avanço das mulheres, aproveitar, para isso, a grande capilaridade dos jornais e rádios populares e usar de um Sistema Judiciário comprometido

com os interesses de uma elite burguesa e seu projeto disciplinador. Embora os jornalistas tenham tido acesso à vida pregressa dessa moça, publicaram o que era conveniente à sua abjeção e omitiram o que a humanizava. (LOBATO, 2008, p. 63)

Não há construção de um santo que avance sem a ação de uma maldade essencial. Sem a mulher-monstro não há criança santa. A santidade imputada a Tânia Maria é determinada, em parte, pelas circunstâncias de sua morte e, em parte, pelo caráter de sua assassina, uma mulher desprovida da empatia maternal agendada pelo discurso social e científico. Um santo é tão mais santo na hagiografia conforme o martírio que o vitimiza e a crueldade do seu algoz. É o que reitera o artigo de Arlindo Silva. Há um equilíbrio entre oposição e complementaridade:

Dizem que a memória do povo é fraca, mas o caso do assassino da menina Tânia Maria, pelo Frankenstein de saias, Neide Maria Lopes, duvido que o povo esqueça. O local onde a garotinha foi morta, um terreno baldio junto ao matadouro da Penha (Rio de Janeiro), está convertido num pequeno santuário, onde, diàriamente, milhares de pessoas fazem preces, levam flôres, acendem velas e pedem graças. O pequeno pedaço de chão onde a criança morreu queimada, após levar tiro na cabeça, foi cercado por barras de ferro, imitando um pequeno berço, por um popular anônimo. No dia seguinte à morte de Tânia, já se erguia no local uma cruz branca, e, desde então, a peregrinação não cessou. Começa de manhã e vai até altas horas da noite. Senhoras, moradoras nas imediações, contam que cêrca de 1.000 pessoas por dia, muitas vindas de longe ou em trânsito pelas rodovias Rio-São Paulo e Rio-Petrópolis, vão até o local onde morreu a “Flor do Campo”. Êste é o nome que poetas desconhecidos deram à pobre menina. À cruz estão pregados poemas de louvor e glorificação à pequena vítima. Êsses poemas falam: “Ó Santa menina - O mundo não era teu - Tu fôste predestinada - Para a glória do céu”. Também foi pregado à cruzinha branca o “Hino à Flor do Campo”, com estrofes assim: “Ó menina imaculada - Ó meu anjo salvador - Aqui, aqui te louvamos - Com a nossa imensa dor”. Continua: “Vamos todos para o campo - Lá morreu a nossa flor - Aqui, aqui te ofertamos - Todo nosso grande amor”. E o Hino termina: “Êste campo consagrado - É da filha do Senhor - Aqui, aqui nós rezamos - Ó meu anjo salvador”. Em volta do pequeno carneiro improvisado, oram, ajoelhadas, mulheres idosas, mocinhas e crianças, como se estivessem ante um altar. Velhas mães, não contendo sua indignação, dizem que a Polícia deveria deixar a mulher- fera nas mãos do povo.(O Cruzeiro, 30/071960, disponível em http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/, acessado em 17/05/2013)

No episódio Fera da Penha exibido pela Rede Globo, a abertura do programa com a criança em meio a chamas, transformada numa santidade, adverte o espectador a respeito do território ao qual se irá adentrar: chão sagrado. Não se trata, pois, de um crime banal, senão uma imolação, um sacrifício. Na base da devoção dos santos, está uma substituição, conforme René Girard (1990). O morto toma o lugar do deus e é para que não retorne perturbando a ordem natural das coisas, para que não se vingue dos vivos, que lhe é rendido culto. Se o morto foi vitimado por morte violenta, cabe cumprir alguns ritos para que a violência não retorne potencializada, ameaçando destruir a sociedade. Render culto ao morto, santificá-lo, prestar homenagens diante do seu túmulo ou local de morte são rituais

de isolamento e purificação. De potencial inimigo vingativo, ele é transformado em aliado, adjutor. Celebrar o morto reforça os laços comunitários e os fortalece no embate de, na impossibilidade de expurgar o mal, mantê-lo sobre controle: “A morte do indivíduo isolado mostra-se vagamente como um tributo a ser pago para que a vida coletiva possa continuar. Um único ser morre e a solidariedade de todos os vivos é reforçada” (GIRARD, 1990, p. 319).

No catolicismo popular é em torno do culto ao santo que orbita a vida espiritual. O santo é o centro e, em países por muito tempo à margem das canonizações oficiais, parece um caminho genuíno a criação de santos e devoções que atendam não apenas às demandas populares, mas que permitam uma identificação imediata. Santos do povo, saídos do povo. Se o catolicismo trazido ao novo continente foi aquele permeado de culpa, em que um Deus punitivo tudo via e castigava, é no culto aos santos que a fé cotidiana irá florescer: “Se os atos de culto ao Deus Juiz se restringem basicamente a penitências sinalizando um “não” à vida, o culto aos santos sigifica um “sim” que eclode num leque tão abrangente de formas quanto é abrangente e uniforme a própria vida” (OTTEN, 1999, p.15).

Mesmo depois de tantos anos passados, a mídia reforça e reitera a santidade da menina Tânia. Se no artigo da revista O Cruzeiro a pureza e inocência da criança é ressaltada pela transcrição de poemas nos quais vários epítetos vão se acumulando (menina santa, menina imaculada, anjo salvador, filha do Senhor), na abertura do programa Linha Direta, a carne é transubstanciada, a morte opera o milagre e o que resta é imagem, uma unidade de manifestação autossuficiente, um objeto semiótico (GREIMAS, 1989, p. 226). Aqui, o signo visual não substitui a mensagem, é a própria mensagem estabelecida a partir de feixes de relações entre múltiplos sujeitos, contextos, discursos. A estatueta na qual a menina é transformada condensa e traduz esse feixe de relações. É, indubitavelmente, uma operação sofisticada.