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Difusão e complexidade no tratamento contábil dos instrumentos

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.3 Difusão e complexidade no tratamento contábil dos instrumentos

A contabilização de instrumentos financeiros híbridos é um tópico recente, ao menos no bojo das normas internacionais de relatórios financeiros. Antes da IAS 25 – Contabilização de Investimentos – cuja publicação ocorreu em 1986, praticamente nada se mencionava a respeito do assunto, inclusive pouco se cogitava sobre o tratamento geral dos instrumentos financeiros.

Com a emissão da IAS 32 em 1995, o predecessor do IASB o IASC27 elevou o nível

técnico da discussão possibilitando o tratamento mencionado.

É importante destacar que para fins de US-GAAP28 já existia desde 1969 uma

opinião técnica emanada pela Accounting Principles Board29 – APBO 14 – a qual

estabelecia perspectivas para o registro contábil de dívidas conversíveis, bem como de ações com direitos a recompra. Todavia, diferentes pesquisadores foram unânimes em ressaltar que a APBO 14 não refletia a substância econômica dessas transações (e.g., DUDLEY; SCHADLER, 1994; BILLINGSLEY; LAMY; THOMPSON, 1986; KING, 1984; BRENNAN; SCHAWARTZ, 1980).

Outro controverso ponto relacionado à contabilização de instrumentos financeiros e, por conseguinte, híbridos, residia na existência de regramentos contábeis assíncronos entre si, os quais variando de forma jurisdicional acentuavam a falta de comparabilidade entre as demonstrações financeiras das companhias (e.g., CHALMERS, 2001; CHALMERS; GODFREY, 2000; BLANKLEY; LAMB; SCHROEDER, 2000; ROULSTONE, 1999; MAHONEY; KAWAMURA, 1995).

27 International Accounting Standards Committee. 28 Generally Accepted Accounting Principles. 29 Em tradução livre: Junta de Princípios Contábeis.

Contudo é incorreto acreditar que após a publicação da IAS 32 e da IAS 39, bem como da adoção do IFRS por parte dos países signatários do bloco da União Europeia, houve a pacificação das discrepâncias acima destacadas.

Nobes (2013) ressalta que é lugar comum encontrar menções ao fato de que o IFRS é adotado como padrão contábil em mais de 100 jurisdições ao redor do mundo. Todavia, o uso das normas internacionais não suprimiu a existência de disparidades entre os ordenamentos contábeis, segundo o pesquisador.

Corroborando com isso, diferentes pesquisas revelam que a complexidade das IFRSs relacionadas a instrumentos financeiros, por vezes, resulta na aplicação de tratamentos contábeis díspares no tocante ao reconhecimento, mensuração e evidenciação dos instrumentos financeiros (e.g., LOPES; RODRIGUES, 2008; STREET, 2003; JERMAKOWICZ, 2004; SUCHER; JINDRICHOVSKA, 2004; LARSON; STREET, 2004).

Outro argumento fundamental para que tais disfunções permanecessem até os dias atuais situa-se no formato de adoção do IFRS por expressiva parte das 138 jurisdições signatárias desse ordenamento de maneira direta ou indireta. Diferentemente do processo brasileiro, representativa parte dos países adotaram as normas internacionais somente para fins de demonstrações financeiras consolidadas, ou seja, nessas localidades, as companhias convivem com dois conjuntos de relatórios contábeis, sendo um local e outro internacional.

Segundo Nobes (2013, p. 84)30, “[...] há dois aspectos regulatórios os quais

diferenciam as jurisdições: tradução do IFRS e o cumprimento do IFRS”. Uma das hipóteses aventadas pelo autor indica que a forma como as normas são traduzidas, considerando aspectos etimológicos e semânticos, tem o potencial de afetar a maneira como a aplicação dos conceitos é realizada.

Do mesmo modo, a imposição realizada por meio dos agentes reguladores, enforcement, igualmente afeta a qualidade da adoção do IFRS.

30 “[...] there are two other regulatory issues which differ by jurisdiction: translations of IFRS and enforcement

Dessa forma, é possível encontrar organizações que se valem desse contexto para emissão de híbridos e os registra de forma diferente em cada um dos regramentos. Carvalho e Flores (2014, p. 322) exemplificam a questão a partir de um caso real.

Em janeiro de 2013, a Telekom Austria emitiu títulos híbridos no montante de 600 milhões de euros, os quais, segundo a Companhia, são tratados interinamente como patrimônio líquido de acordo com as IFRSs. Contudo, para avaliação por parte das agências de rating, tais instrumentos são considerados 50% como passivo financeiro e o restante como patrimônio líquido [...].

Há uma menção especial de que, para fins de atendimento dos padrões contábeis locais, denominados de Austrian-GAAP, os cupons são classificados como despesas de juros. Porém, sob a ótica das IFRSs tais valores são reconhecidos como distribuições de dividendos. Basicamente essa divergência de critérios ocorre pelo fato dos juros serem dedutíveis de acordo com as regras austríacas para fins de determinação do lucro tributável.

Em síntese objetiva, a existência de um hiato entre dois conjuntos de regras contábeis possibilita que as entidades arbitrem a seu favor no uso de IFH, melhorando indicadores financeiros e reduzindo a carga tributária de forma concomitante.

Especificamente no que se refere ao caso brasileiro, ressalta-se que a adoção das IFRS ocorreu tanto em demonstrações consolidadas quanto em demonstrações individuais, impedindo que haja a possibilidade de se utilizar critérios escolhidos por conveniência, ao menos no que se refere aos híbridos.

Cabe salientar nesse ponto o caso das instituições financeiras, as quais submissas à supervisão do Banco Central do Brasil (Bacen), permanecem adotando um conjunto próprio de regras contábeis, denominado pelo mercado como Bacen-Gaap ou Cosif31, o qual permite que títulos, cuja substância econômica é notavelmente de

dívida (e.g., ações preferências resgatáveis), sejam registrados junto às rubricas do patrimônio líquido.

Ademais, a importância dada pela Comissão de Valores Mobiliários acerca do registro dos híbridos, seja como passivo ou patrimônio líquido, pode ser em relevante parcela atribuída à opção de se utilizar as normas internacionais em livros

locais, tendo em vista que ao fazê-lo via a promulgação de dispositivos legais, como a Lei 11.638/07 e a Lei 11.941/09, atribue-se à referida autarquia o direito e a responsabilidade de supervisionar os relatórios contábeis das companhias de capital aberto à luz dessas normas. Tal o Conselho Federal de Contabilidade para as organizações não abertas.

Dessa maneira, ao se cotejar o contexto contábil brasileiro acerca do uso do IFRS com o de outras jurisdições, não seria surpreendente identificar em território nacional uma abordagem mais restritiva e de certa maneira mais rigorosa quanto à classificação de valores junto ao patrimônio líquido, consideradas as condições regulatórias do ambiente.