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Sempre me impressionou o fato do Redentor não ter escrito, nem pintado,nem esculpido, mas de ter cantado. 0 Cristo, narra o Evangelho, cantou no próprio dia da sua prisão. Com isto, Ele conferiu à música uma dignidade especial; e a Igreja, recolhendo a lição, sempre deu a maior importância ao cultivo da música, que, como se sabe, desenvolveu-se no Ocidente à sua sombra.

Infelizmente (inclusive dentro mesmo da Igreja) nem todos compreendem e respeitam essa principal dignidade da música trabalhando muitos para seu descrédito e deformação.

Os vociferadores jamais clamarão suficientemente contra os golpes de que a divina arte (divina arte, escrevo com frieza), tem sido vítima neste século, principalmente por parte das companhias que exploram o rádio.

Deus me livre de falar mal de uma invenção maravilhosa que põe ao nosso alcance o conhecimento da obra dos grandes mestres da música, de maneira privilegiada, como não a puderam gozar ou ouvintes de outras épocas. Qualquer amador de hoje, por exemplo, poderá conhecer muito melhor as obras de Haendel, Bach, Mozart, etc., do que os melômanos do século XIX. 0 volume da produção é colossal e a facilidade de transmissão

instantânea. Estou certo de que um homem como como Stendhal que gostava tanto de Mozart, a ponto de incluir o nome dele n^ seu auto-epitáfio, só conheceu do seu ídolo, as óperas mais importantes, e algumas sinfonias e conceitos. De resto, tanto na "Vie de Rossini", como até mesmo em "La Chartreux de Parme", ele se queixa de que as sinfonias de Mozart são

estropiadas na Itália. Não teve portanto, a felicidade, que nós temos, aqui, neste remoto e bárbaro Brasil, de ouvi-las magistralmente interpretadas

por um Bruno Walter ou por um Sir Thomas Beecham, ou por um Fritz Busch. Felicidade que o rádio proporciona a muitos amadores de música que, não podendo comprar discos,dela seriam privados, se não houvesse o rádio.

0 que é preciso vociferar sempre é contra a organização descuidada dos programas, contra o excesso de anúncios, contra a funesta manta de se enxertar anúncios entre um e outro movimento de uma obra

musical, e contra essa verdadeira praga que é a rádio- no ve la. A rádio-novela é, com efeito, um magnífico instrumento da incultura, um incomparável

método de cretinização do nosso pobre povo. Que o mesmo aparelho que

transmite cantatas de Bach, concertos de Mozart, baladas de Chopin, prelúdios de Debussy, blues de Duke Ellington, possa também transmitir esses

de uma sensível porção da classe média, afastando-a da boa música e do teatro, que, entre, nós, se não é excelente, é pelo menos muito superior à rádio-novela.

Acho que os escritores devem apelar incessantemente para os homens de boa vontade e cultura que estão à testa da administração pública no sentido de um saneamento dos programas de rádio e eliminação da monstruosa máquina de deformação cultural do nosso povo, que á a rádio-nove la.

Mas a dignidade da música é também atingida de outras maneiras, mais sutis e su breptícias. Há dias, por exemplo,li, com grande espanto na seção de música de um dos mais importantes matutinos desta

infeliz cidade, o elogio da "condensação da música", abominável e sinistra invenção que — será preciso acrescentar — nos vêm da América do Norte.

Com efeito, as seleções não se contentam mais com o domínio da literatura: passaram agora para o da música. É provável que essa coisa pegue no Brasil

pois temos o hábito de imitar somente o que os ianquis têm de pior. Com

este novo método, uma sinfonia, um concerto, um quarteto, cuja execução dura normalmente, digamos, meia hora, serão comprimidos, condensados, reduzidos a pílulas, podendo durar a uns oito ou nove minutos. "É uma maravilha". Pasmem, senhores e senhoras! A "Nona Sinfonia de Beethoven" na versão original, é uma estopada; gasta uma hora e vinte minutos de execuçã mas condensada pelo novo sistema, dura apenas dezessete minutos! 0

cavalheiro faz a barba, veste-se, e no final da operação a sinfonia

também acaba! É prático, cômodo, confortável. Reserve hoje mesmo a "sua" condensação.

0 artigo que me refiro, elogiava a compreensão de duas das mais famosas sonatas de Beethoven — a dita "Ao Luar" e a "Patética",

reduzidas a um só movimento, e arranjadas para trio de piano, violino e violoncelo — . Não ouvi e não gostei. Detesto essas profanações.

Houve é poca em que as transcrições e arranjos tiveram sua razão de ser. Sabemos que Bach trabalhou dezoito concertos de Vivaldi; que Mozart transcreveu para quarteto de cordas várias fugas para cravo de Bach As condições históricas eram diferentes.a música ainda não tinha as

imensas possibilidades de divulgação que tem hoje. Bach e Vivaldi eram espíritos afins profundamente religiosos, e mestres do contraponto. E

Mozart, ao fazer aquelas transcrições, teve em mira chamar a atenção para a obra do seu grande predecessor, obra que se achava então sepultada,

tanto que ele, Mozart, só veio a conhecê-la já aos vinte e seis anos, quando passou por Leipzig. Também Busoni e Liszt adaptaram ao piano diversas peças de Bach para órgão e cravo — numa época em que tinham desaparecido os bons cravistas e organistas — o que não se dá mais hoje.

mas só feitos com arte e sabedoria. Condenamos, por exemplo, as transcrições do Sr. Stokosvski, principalmente este assassinato que é a sua versão para orquestras da "Tocata e Fuga em Ré menor". E quanto a condensações, que Deus nos livre delas. Chega de infelicidade! A não ser que reduzam a pílulas musicais de um ou dois minutos, os abacaxis de Dvorak, Sineatana, Sibelius & Cia . . .

B A C H

Há vários anos um conhecido professor e musicólogo norte- americano de passagem pelo Rio, surpreendeu-me com a declaração de que a música de Bach só pode ser compreendida pelos protestantes. Só mais tarde pude decifrar o enigma contido para mim em semelhante afirmativa.

É que a obra de Bach tem sido alvo dos mais diversos conceitos de interpretação. Conforme a sensibilidade dos povos, ou a de certos grupos que representam determinadas tendências, ou ainda a de certos indivíduos que se colocam a priori num único ângulo de visão (ou melhor, de audição) a obra de Bach, muda de aspecto e de significado. Alguns críticos, conservando-se num plano puramente histórico, chegam a restringir a importância de Bach no panorama geral do desenvolvimento da música; por exemplo, o nosso caro Mário de Andrade pôde escrever que "Bach viria saudosista e anacronicamente apontar para trás o passado". Ora se ficarmos firmes dentro deste critério de exclusivo aperfeiçoamento técnico teremos que restringir ainda muito mais à importância de Beethoven, Chopin, Schumann e tantos outros, que já encontraram o terreno mais do que

preparado, apesar das "inovações" que fizeram...

Outros tendem a considerar Bach unicamente como músico

religioso, pondo sua arte a serviço da comunidade protestante (ou, algumas vezes, a serviço da Igreja Católica, como no caso das Missas para a corte de Dresden). Esqueceu-se de que naquela época a vida profana, apesar da decadência religiosa, ainda estava um tanto impregnada do conceito de

sacralidade. Bach com todo seu profundo misticismo, foi um homem enraizado na vida temporal, pai de vinte filhos, sempre à turras com o Reitor da Escola de Leipzig e com outras renitentes autoridades. Mas, insisto, o conceito de vida não era ainda separado do de religião. Aquela gente, de resto, é que estava certa; religião é vida, e não negação de vida.

Há uma corrente que encara a obra do autor das "Paixões" dentro de um critério de puro formalismo, como se fugisse à interpretação, como se a fantasia estivesse ausente dela. Montados em tal opinião,

conferem a Bach o título de clássico 100 por cento, e mais do isto, rígido e escolástico 100 por cento.

Outros, pelo contrário, aceitam-no somente como poeta

romântico, procurando extrair dos Prelúdios, das Fugas e dos Corais todo o subjetivismo que possam conter. E exultam diante da "Fantasia Cromática e Fuga", mãe de toda a música romântica, peça onde talvez já se encontre o germe de Liszt... "hélas!".

artistas, a cultura, a vida em geral, no plano da universalidade. Este método da universalidade consiste antes de tudo, em que o indivíduo deve procurar manter-se na vida como se fosse o centro dela, para que possa ter sempre a perfeita relação das idéias e dos fatos. Tal método conduz o homem a uma filtragem dos elementos construtivos, cambatendo a desproporção e a unilateralidade do temperamento.

Ora, a única tradição verdadeiramente grande que, apesar de tudo, temos no Brasil, é a católica, isto é, uma tradição de universalidade. Os sinos das igrejas não testemunham apenas o passado, chamam para o

futuro, chamam-nos para Aquele que se definiu a própria Vida. E, repito,é à luz dessa universalidade que devemos procurar comentar e julgar,

comparando-as fora de um critério apenas histórico — embora admitindo as coordenadas trazidas pelo tempo, — as obras que chegam ao nosso conhecimento. À luz dessa universalidade, Bach aparece-nos como o supremo educador pela música, nos tempos modernos. É clássico, romântico e atual. Une o passado, o presente e o futuro. Se "historicamente", examinando com frieza sua obra, verificamos o conflito entre o contraponto e a melodia, entre o estilo

instrumental e o vocal se podemos afirmar, sem medo de engano, que seu maior valor consiste em ter fixado o "temperamento igual", não insistamos nesses pontos que escapam, afinal,à nossa competência: não somos técnicos nem cientistas. Simples poetas...

Bach, repetimos, é por excelência o Educador, isto é, o

homem integral, o homem que combate a desproporção e conquista a unidade, tema fundamental da cultura e base da própria vida. É o educador, não só de alunos de música, como dos adultos, dos grupos humanos de toda a espécie, que se acham fora dos conservatórios. É o músico que congrega os homens das mais diversas tendências. Desperta a religiosidade escondida no mais íntimo do ateu (?), desenvolve e aperfeiçoa a religiosidade do crente. É severo e infantil, é rígido e fantasista. É íntimo e coletivista. Luterano e universal. É mesmo o modelo do cristão, do homem total que venceu as forças exteriores pela contemplação dos mistérios do Salvador. É um resultado da encarnação vivida, continuada, repetida e desenvolvida, musicalmente, até ao máximo, no espírito, no coração, no ser todo de um europeu existindo em pleno século XVIII. Sua pedagogia (convencemo-nos mais uma vez disto, há poucos dias, por ocasião do recital do pianista Borovsky) é fruto de um espírito não só muito refinado, como absolutamente simples. Bach é sem dúvida o músico que melhor corresponde às necessidades do atormentado homem do nosso tempo. Num mundo que perdeu a disciplina e levou ao apogeu o cultivo dos "estados de alma" ele é o ordenador, o

necessário como Mozart — se levarmos em conta sua carreira fulminante e seu incomparável dom de improvisação — é possivelmente mais genial; mas Bach é máis importante. Que o universo inteiro incline um dia os ouvidos à sua música, já que Deus o criou para a educação de todos...

Esta crônica foi inspirada pela audição das "Trinta

variações Goldberg" de J.S. Bach, para cravo, na interpretação de Vanda La n d o c k a .

FORMAÇAO DE DISCOTECA