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FORMAÇAO DE DISCOTECA (VII)

Insisti na crônica anterior, sobre a alta categoria dos Quartetos de Beethoven, preferindo situá-los, antes de tudo, no plano, da pura musicalidade, já que sua interpretação pode ser marcada "ad libitum", desde que se compreenda a atmosfera de gravidade e

transcendência em que todos eles se situam; atmosfera, repito, que é própria, mais do que a qualquer outra, à nossa geração. Porque na verdade nós herdamos de nossos maiores a angústia, o desajustamento entre o interior e o exterior, que se acentuaram nos últimos três séculos, e que chegou a culminância no momento que vivemos. Por isso, participamos vivamente da consciência de Beethoven, embora ele muitas vezes nos oprima com essa atmosfera especial de terror e desconsolo, pelo que procuramos os caminhos de libertação de Bach, Mozart , Händel ou Debussy, menos duros a pessoas já naturalmente castigadas pela vida como todos nós agora.

0 que não se deve é particularizar a interpretação dos Quartetos. 0 próprio Beethovem já advertia os posteros a respeito de sentido da Sinfonia Pastoral: que ninguém procurasse ali uma cópia da natureza; "deixo ao ouvinte o cuidado de achar a situação..." Se nessa Sinfonia, onde se poderia descobrir sem dificuldade uma intenção pictórica, Beethoven se recusa a fazer música imitativa com muito

menos razão encontraremos intenções didáticas nos Quartetos. 0 que eles querem dizer, cada um captará de acordo com os elementos próprios, que recebeu, certo, entretanto, a priori, de que eles se inscrevem sob o signo da gravidade da condição humana.

Assinalemos, também, que o amador disposto a ouvir e assimilar todos os Quartetos, estará mais apto a abordar a música moderna, essa pobre música moderna de que se fala tanto mal, e que no fim das contas não é moderna: é música. Se continuarem a sujeitar a arte ao critério do tempo, a confusão será geral...

Continuando a passar em revista, embora muito

sucintamente, Os Quartetos, chegamos a uma das produções mais atraentes do segundo período de Beethoven: o Quarteto em mi bemol maior, op.74, também chamado "Quarteto das harpas". Entretanto, não se cuide que Beethoven teve em mira imitar, pelos "pizicati" dos instrumentos

violência dos demais do segundo e terceiro períodos. Desenvolve-se numa atmosfera especial de lirismo, e em muitas passagens a sombra de Mozart se interpõe até chegarmos às maravilhosas variações do último mo vi me nt o.

0 Quarteto em fá menor op. 95, composto em 1810 —

encerra o terceiro período. Quarteto de menores proporções que os outros, mas, talvez por isto mesmo de uma trama cerrada, apresentando uma

visível compreensão da matéria sonora. 0 famoso primeiro movimento "alegro con brio" por si só constitui um retrato espiritual de

Beethoven, enérgico e violento; o homem atacando seu próprio destino, na consciência da força do seu antagonista. Mais uma das muitas

explosões desse grande Espanhol que é Beet ho ve n!...

Durante quatorze anos o mestre não produzira Quartetos.

J á o terceiro período vai adiantado... e aqui fazemos um pequeno parêntese. A teoria de W. de Lenx é hoje mais ou menos aceita em toda a parte; entretanto, é possível que sofra revisões; pois uma obra como o Quarteto "Rasumovski" n9 3, pelo seu espírito, poderia

talvez figurar dignamente na lista do terceiro período... Mas não estamos aqui para discutir teorias musicais. Segue a música. Dizíamos que já o terceiro período ia adiantado, quando Beethoven subitamente retorna aos Quartetos, com o extraordinário Quarteto em mi bemol maior, op. 127. Meu reino (ou um pão!) por este Quarteto, ai meu Deus! Se não

existisse o 131... 0 Quarteto op. 127 logo de início abala o ouvinte, preparando-o para o sublime "adágio ma non troppo e molto contabile", oração musical com o seu tema que é um eco do "Benedictus da Missa So le ne ” .

Passamos ao Quarteto em si bemol maior op. 130, que Vincent d'Indy chama de monumental — como se os outros também não o fossem. Chamo a atenção para o andante deste Quarteto, aparentemente monótono, mas que contém expressões que é lícito julgar das mais

íntimas de Beethoven.

0 Quarteto em dó sustenido menor op. 31, é uma das obras mais elevadas do espírito humano, e representa uma síntese prodigiosa de toda a arte de Beethoven, sendo o mais revolucionário de todos, pois — exceto num único movimento — foge à antiga forma — sonata. A um amador que desejasse ter um só dos Quartetos, e a obra talvez mais representativa do gênio de Beethoven, eu indicaria este sem hesitação. 0 adágio inicial, é, segundo Wagner, a página mais melancólica que jamais foi escrita. Mas a desforra vem no incomparável

0 Quarteto em lá menor, op. 132, tornou-se famoso na literatura, devido ao romance "Counterpoit" de Huxley. É no terceiro movimento que se encontra o "Canto de áção de graças a Deus, por um convalescente", onde o espírito religioso de Beethoven atinge talvez o seu momento máximo.

A Grande Fuga op. 133 é o primitivo final do Quarteto op. 130. Todo o drama da nossa época está contido nessa página

extraordinária, que às vezes nos produz um terrível mal-estar.

0 último Quarteto, em fá menor, op. 135, não apresenta a mesma grandeza dos precedentes. É visível a repetição do processo, o cansaço do mestre. Mas isto não quer dizer que não contenha passagens admiráveis, dignas dos outros quanto aos intérpretes dos Quartetos, me nc io na re mos,pela ordem de nossas preferências pessoais: Quarteto Busch, Quarteto de Budapest, Quarteto Lener.

(0 cronista dirige-se à eletrola e faz passar o disco do extraordinário QUARTETO EM FÁ MAIOR, OP. 59 N° 1 — "RASUMOVSKI" N° 1 — , pelo Quarteto Busch).