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A formação de uma discoteca levanta, conforme assinalei na crônica anterior, problemas de escolha e opção. É preciso distinguir o amador esclarecido de música do colecionador de discos. Lembro-me de ter sido convidado há alguns anos atrás, a visitar uma discoteca parti cular famosa. No fim de duas horas eu estava exausto, com raiva do colecionador, dos fabricantes de discos e quase até da música.

0 homenzinho, implacável, possuidor de nada menos de 4.000 discos, fazia questão de mostrar todas as maravilhas da sua coleção, em que havia de tudo, um sortimento completo, inclusive dezenas dos mais banais tangos argentinos. A música de salão recebia as mesmas homenagens devidas a Bach, Mozart e Beethoven. Era alucinante. Quase foram necessários os socorros da Assistência.

Há certa peças musicais — e das maiores — cuja audição perde muito a meu ver, dentro de um pequeno aposento, para uma, duas ou três pessoas. "A Paixão Segundo São Mateus", de Bach, o "Messias", de

Händel, a "Nona Sinfonia" de Beethoven, por exemplo. São obras de expressão coletivista e monumental, obras destinadas a produzir contágio de idéias e sentimentos elevados entre os homens; requerem a atmosfera de uma

igreja, de um auditório, de um teatro. Entretanto, o amador que possui uma pequena discoteca poderá comprar duas ou três peças destacadas de cada uma, se bem que eu, pessoalmente, seja, em princípio, contra a mutilação das obras musicais. Mas, na verdade dentro da agitada vida moderna como arranjar tempo para ouvir sempre a "Paixão Segundo São Mateus" cuja execução dura três horas e meia?...

0 problema da hierarquia, de uma prioridade de valores

e de preferências, coloca-se inevitavelmente diante de toda a pessoa que inicia a formação de uma discoteca com 200 ou 300 discos. 0 critério mais certo, consiste em começar pelos músicos essenciais, fundamentais: Palestrina — Bach — Händel — Mozart — Beethoven — aos quais vem se

juntar, entre os modernos, Debussy.

Por exemplo: Mendelssohn, Liszt, Tchaikovski, são bons músicos, mas trazê-los para casa, e deixar de lado Bach e os outros que apontei, será um abominável "sacrilégio".

0 critério de universalidade choca-se com o de ecletismo.

fazer sua instrução e educação musical, terá que conhecer aqueles músicos secundários,muitos outros, mesmo inferiores. Mas isto já é outra história.

Da outra vez citamos algumas peças importantes da música clássica. Desta vez quero chamar a atenção dos amadores de boa vontade para a obra de dois músicos da época clássica inglesa: Willian Byrd e Henry Purcell. A Inglaterra, que é tão fértil em grandes poetas, não o é em grandes músicos. Mas os dois nomes citados asseguram-lhe, por si sós, um posto de honra entre os países que contribuem para a música mundial. De

vez em quando, aparecem por aqui discos com trechos de missas, com

"chaconnes", pavanas e "gagliardas" de Willian Byrd. Comprem, srs.

amadores, comprem tudo que encontrarem! Serão transportados de novo a esse lugar de inocência que tanto amam as crianças, os santos e os poetas; a

esse "evert paradis des amours enfantines, l'innocent paradis, plein de

plaisirs furtifs" que Baudelaire celebrou num poema para sempre famoso, e que a música nos reconstitui melhor que nenhuma outra arte, dando-nos uma antecipação da Promessa.

Na minha opinião, uma das coisas mais belas que existem em música é "Dido e Eneas", de Purcell. Essa espécie de oratório ou ópera, como quiserem é uma das mais perfeitas "reussites" do gênero. Alto lirismo e força de expressão dramátic a,riqueza de conteúdo, representação da

paixão amorosa, um senso exato da economia de proporções da ópera, que

já anuncia Mozart — com o qual possui Purcell mais de um ponto de contato -, tudo isto faz de "Dido e Eneas" uma peça da mais alta importância, que não deve faltar na discoteca de um amador esclarecido — já que, felizmente, para nosso prazer, ela está gravada.

Ainda de Purcell poderá ser encontrada com relativa facilidade, a célebre "Golden sonata", para dois violinos e cravo.

E por falar em cravo, convém tomar nota da obra dos

cravistas franceses,principalmente Conperin e Rameau. A influência destes

dois grandes homens sobre músicos consideráveis está hoje definitivamente estabelecida, sobretudo a influência de Conperin sobre Bach, e a de Rameau sobre Debussy — o que não é falar pouco...

Voltarei ao assunto em crônicas posteriores.

P. S. — Na crônica do domingo passado escaparam vários erros. Além de outros, assinalo os seguintes: em vez de Schmitz, leia-se Schütz; em vez de Schütz, criador da ópera, leia-se criador da ópera alemã; em vez de Vitória, leia-se Victoria, etc.

FORMAÇÃO DE DISCOTECA III

Chegará para o amador o dia em que êle terá de abordar

o catálogo das obras gravadas em disco, de Bach,Händel, Mozart e Beethoven. De resto, uma discoteca contendo discos escolhidos, representativos do

espírito e das tendências principais destes quatro grandes mestres da música, já será qualquer coisa de importante como instrumento de cultura.

Começando por Bach, uma dificuldade logo se impõe: sua obra-prima, o "Cravo bem temperado", não poderá ser encontrada agora na interpretação original.

0 único recurso será adquirir alguns prelúdios e algumas

fugas em versão para piano, aqui e ali, até raiar o dia bendito em que a obra completa seja regravada. Aí então o amador feliz abrirá diariamente êsse álbum, que conterão não só o resultado máximo das experiências

contra-pontísticas de muitos séculos mas também os mais altos motivos

de contemplação e compreenderá que a música é uma chave do conhecimento do universo, como a religião ou a ciência. Seu espírito vestirá os véus da

contingência e ele penetrará o alto mistério que se esconde atrás do número e dos ritmos.

Insisto que o amador procure de preferência as versões

originais. Transladação ao piano das peças de Bach, escritas originalmente, para cravo, é hoje universalmente aceita. De resto, Bach interessou-se

muito pelo novo instrumento, que só chegaria a amadurecer, como se sabe, muito tempo depois, sob Beethoven. Mas há certas versões que não me

parecem nem de longe convincentes. Por exemplo, a "Passacaglia", a "Tocata e Fuga em Ré menor", a "Chaconne" da Partita n? 2, em piano, perdem muito do seu conteúdo, ganhando enfeites que Bach não previra. Há, entretanto, transcrições de Busoni, aceitáveis. Mas, pelo amor de Deus, fujam do sr. Stokovski... Infelizmente, no momento, é difícil obter as "Cantatas", que formam com o "Cravo bem temperado" e a "Paixão segundo São Mateus", o grande momento da arte bacheana. Esperemos tempos mais propícios...

Muitos conhecem a famosa "Chaconne" somente na transcrição para piano. Tratem, pois, de adquirir a já citada "Partita ne 2 em Ré menor", para violino solo, da qual faz parte a "chaconne", e que é um monumento

incomparável da literatura vi olinísti ca. Comprem tudo que encontrarem em matéria de sonatas para violino, para cravo e violino, para cravo e

flauta, suítes para orquestra, suítes para violoncelo, etc. E, apesar de

hoje bastante popularizados, não convém esquecer os "Concertos de Bandeburgo"; e se não puderem comprar os seis, indicaria o n^ 1 e o ns 5 entre os

D Messias" e "Judas Macabeu", não se prestam "et pour cause", a jdições contínuas. Entretanto, certos trechos destacados, constituem, por 1 sós, perfeitas obras musicais. Podem ser escolhidos ao acaso, pois ada é indiferente ou medíocre nessas obras monumentais.

Também os "Concerti Grossi", modelos do gênero, podem ser scolhidos no escuro. Porque na organização e distribuição das massas

onoras Händel, não só rivaliza, como talvez ultrapasse em certas soluções próprio Bach. A questão das enormes afinidades e das enormes diferenças

2 temperamento e natureza entre Bach e Händel, será sempre um assunto

oaixonante para todos os que se ocupam a sério de música. 0 célebre jsicólogo Paul Bekker procurou as razões dessa diferença no que ele nama de caráter fundamental da sensação sonora: o homem pode sentir o om vocalmente, e pode senti-lo instrumentalmente. Nos dias de hoje, a redominância da sensação instrumental determina de nossa parte uma iminuição, ou pelo menos parcialidade, da nossa faculdade de percepção onora. Segundo ainda Bekker, Händel é o músico da sensação vocal, e Bach o a sensação instrumental.

Além dos já citados, "Concerti Grossi", não esqueçamos os oncertos para órgão e orquestra (particularmente o ne 1 1 em sol menor, e o 9 13, em fá maior), as sonatas para cravo e oboé, para cravo e viola de a m b a , etc.

Não podemos, antes de chegar a Mozart e Beethoven, deixar e lado Gluck.

Apesar dos terríveis epigramas que lhe dirigiu o nosso caro ebussy na sua famosa "Lettre ouverte ao Chevalier Gluck", que alude às pretendidas relações entre a música de Gluck e a arte grega", e declara ameau muito mais grego do que êle — apesar das reações desfavoráveis que ue a pompa de seu dramatismo provoca em muitos — Gluck deve ser contado ntre os grandes. Na verdade, não lhe perdôo ter escrito textualmente que a música deve ser reduzida à sua verdadeira função, a de secundar a

oesia" (por onde logo se vê que ele se opõe nitidamente a Mozart), mas e coloco na eletrola um disco de "Orfeu", ou de "Ifigênia em Aulida",

prevenção desfaz-se como por encanto; justifica-se o entusiasmo de

ousseau, quando escreveu: "Já que se pode ter um tão grande prazer durante luas horas, admito que a vida preste para alguma coisa".

Corre mundo uma bem feita síntese de "Orfeu", na persuasiva nterpretação de Alice Raveau no papel principal; aconselho-a aos amadores. Da próxima vez falaremos da importante escolha de discos de lozart e Beethoven, o que levanta, como se verá, certos problemas de opção.