• Nenhum resultado encontrado

O cometa e o bailarino: a modernidade em Murilo Mendes

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O cometa e o bailarino: a modernidade em Murilo Mendes"

Copied!
413
0
0

Texto

(1)

o a r r o w i E T j » e © b a\ i il

a modernidade em M u r i l o Mendes

Dissertação de Mestrado

Departamento de Língua e Literatura Vernácula Pós-Graduação em Letras-Literatura Brasileira Orientador: Prof. Dr. Raúl Antelo

Florianópolis 1990

(2)

Esta dissertação foi julgada adequada para obtenção do título de MESTRE EM LETRAS

Especialidade Literatura Brasileira - e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação

. L f

iS

C. C . C — > -

(

vProf^ Dr§ Maria Lúcia de Barros Camargo Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Literatura Brasileira

r i- ( M a A

Prof. Dr. Raúl Antelo Orientador

BANCA EXAMINADORA

^ ~ à Ç . . C . \ C J / ’_____________

(3)
(4)

a Raúl Antelo, pela sua paciência e generosidade; pela sua grar^ deza,enfim;

a Alfeu, colega e interlocutor das primeiras horas; a Ademir, colega e interlocutor das últimas horas; a Marli, interlocutora-constante.

(5)

Este estudo objetiva analisar a modernidade na obra e no pensamento de Murilo Mendes, suas peculiaridades e ressonâncias, desde uma visada "intra" e intertextual. Ab:orda, neste sentido, em três momentos encadeados pelo referido desejo, o espaço, o tem po e a linguagem, suas articulações em obras fundamentais, apon­ tando para uma teoria do texto muriliano.

(6)

This study objectifies to analyse the modernity in the work and in the thought of Murilo Mendes, their peculiarities and resonances, since a "intra" and intertextual sight. It approa­ ches, in this sense, three moments linked with the refered desi^ re, the space, the time and the language, their articulations in fundamental works, pointing at a "muriliano" text theory.

(7)

I. 0 Poético e o Sagrado: o bailarino caracterizando uma "antropofagia sincrônica" ... . .

A refuncionalização do catolicismo; o retorno do mesmo produzindo diferença; a religiosidade oblíqua constrói o moderno; a procura do estético na religião (atração e repulsão); a sacralização do poético (o sagrado e o prci fano); Ismael Nery; o trabalho com tensões; a ânsia un_i ficadora (Dionisos e Cristianismo; local e cosmopolita; tradição e modernidade); o poeta é um bailarino; o bal­ let sincrônico e extraterritorial; as metástases muri- lianas; o poeta-bailarino como ator social; a crise co­ mo valor.

II. Tempo e Memória: o cometa ... A ruptura com os conceitos clássicos de espaço e tempo; a relativização do diacrônico enquanto evolução; a tra­ dição lida em saltos; a é(sté)tica do movimento - o co­ meta; a revisão de sua herança (os companheiros de dari

ça); a memória seletiva e dialógica. —

III. Mundo: texto. Poeta: texto de textos ... A crise do indivíduo, do discursivo e do lírico; o si­

lêncio, o branco e a dança; o enfrentamento do enigma

pela linguagem; Sintaxe-Convergência; a idéia de "Tex­ to"; a realidade do texto; o poeta como texto de tex­

tos; o universo-texto; a auto-referencialidade; a via­

gem sobre a linguagem; o espetáculo ideográfico de uma crise; a criação de linguagens; o projeto construtivo; as rachaduras do concreto; a produção da crise; a per­ manência.

IV. Anexos: Murilo Mendes no "Letras e Artes" (críticas, crônicas e relatos) ...

(8)

No início de tudo, o texto. Frente ao texto, a leitura. Da leitura à escritura: a alegoria da leitura, o texto do texto. E

aqui, uma introdução à alegoria da leitura do texto (meta-alego-

ria ?). 0 mais interno possível, a dobra. Talvez este o nosso tra­

balho: internalizar constantemente o texto, jogar com ele até a

sua ausência, o futuro.

Talvez o resultado deste processo não seja tão conclusivo. 0 texto resultante vinga-se contra o ponto final: é a procura inces; sante da reflexão, da desconfiança frente ao objeto, e não a perse­ guição — consciente — a objetos ideais. Desconfiamos, assim, do nos so próprio texto.

Fonte para Drummond ("bebo em Murilo"); para Manuel Bandeira, "permanentemente em pânico e em flor"; para João Cabral "sua poesia sempre me foi mestre"; para Jorge Lima, "o maior distribuidor de p£ esia que jamais conheci": Murilo Mendes. Murilo para Murilo Mendes: "dinâmico na inércia, inerte do dinamismo". Setenta e quatro anos

de vida, quinze livros de poesia, quatro de prosa, nove inéditos,

crônicas, críticas, apresentações, resenhas, fragmentos. Dois li­

vros em francês, oito em italiano, esparsos em espanhol. Uma obra

imensurável que se abre para ser refletida (re-escrita?).

0 ato de escolha do autor já é um ato crítico. Escolher Mu­ rilo Mendes é escolher um discurso crítico, nutritivo. Um texto com valor estrutural, capaz de provocar outras escrituras. Um texto ex­ citante, na medida que provoca outros textos nascidos do desejo.Des

(9)

do sujeito místico. É essa afetividade que alimenta a teimosia do

projeto. Não encontramos outra palavra para definir a vontade de

produzir discurso acadêmico num contexto escasso e desmotivante, es_ te falar onde não se é chamado. 0 trabalho do leitor: definir ■códiL gos ao sobrecodificar. A leitura produz, assim, a aventura da es­

critura. Em Murilo, insistimos, este processo é revitalizado; é

instigado. Somos tentados a des-co-brir o texto, cobrindo-o e a

cobri-lo, descobrindo-o. Valéry: a ilusão de descobrir o texto nos anima. Talvez, com isso, corramos o risco de abstrações, até a sua exasperação: o delírio. Contudo, inversamente, este obscurecimento pode resultar num valor, num alargamento das nossas possibilidades. Por isso mesmo, corremos o risco.

É óbvio que nos debruçando sobre o texto imprimimos a nos­ sa impressão. Toda interpretação é, de alguma forma, traição. Toda leitura desloca; ata e desata. Toda leitura é uma produção. A nos­ sa: ler a modernidade singular de Murilo Mendes.

Talvez, muitas vezes, seja mesmo preciso esquecer de ler: algo pode surgir do esquecimento.

Poeta esquivo, irredutível a qualquer rótulo, Murilo é mo ­ derno no que a palavra tem de qualificação, sem pretensões em rel£

ção ao novo, já que tal conceito, há muito, perdeu sua validade.

Murilo é de um tempo que em que se assumiu a consciência da apro­

priação, da devoração discursiva. Neste sentido, visualizamos em

Murilo Mendes uma linha de modernidade que não rompe todos os pon­ tos com a tradição, antes a relê, mediante uma consciência crítica e presentificadora.

Metodologicamente falando: não elegemos um texto ou uma o- bra, na medida que lidamos com um processo que aponta para a confi^

(10)

guração do pensamento muriliano. Além do que, em Murilo Mendes, um caso de extrema coerência em que pese os paradoxos assumidos, um texto não cabe em si, dialogando constantemente com outros. Is to caracteriza uma dinâmica "intra" e "inter"-textual.

Aliás, se é lícito pensarmos numa poética muriliana, esta é marcada pelo signo do movimento, da transitoriedade, da supera­ ção das fronteiras espaciais e temporais. Contudo, giramos em to£ no de textos básicos: alguns poemas dos anos 30 e 40, os artigos publicados no suplemento "Letras e Artes" (que resgatamos, em ane

xo), os aforismas de o Discípulo de Emaús (1945) e os poemas de

Convergência (1970).

Perpassado pelo desejo da procura de uma linha de moder­ nidade, apontando, desta forma, para a explicitação de uma teoria do texto em Murilo Mendes, o projeto estrutural da tese constitui se desta breve introdução seguida de três ensaios encadeados e iri ternamente ligados pelo referido desejo. Os temas, enquanto racio­ cínio que retorna sobre si mesmo, envolvem, pela ordem, o espaço, o tempo e a linguagem.

Elegemos dois signos para discutir o processo poético mu ­

riliano, seu projeto (est)ético: o bailarino e o cometa. Indaga­

mos o que eles carregam de ruptura e transitoriedade. Inevitável, neste sentido, pensarmos num eixo sincrônico, contextuai, estrutij

ral, interno, convergindo num eixo diacrônico, intertextual, ex­

terno, gerando tensão no tecido poético. Numa produtiva deforma­ ção do conceito, o espaço e o tempo. Ou, como veremos, o empenho por uma poética sincrônica. 0 cometa e o bailarino: signos da mo­ dernidade muriliana.

(11)

No primeiro capítulo, procuramos caracterizar o poeta co­

mo um bailarino movimentando-se pelo espaço literário e social.

Mais que isto, o poeta criando o seu espaço. Debatemo-nos com aqui. lo que, via de regra, procura-se diluir, esquecer ou caricaturi-

zar em Murilo: sua relação com a religião. Tomando como base tex­

tos publicados nos suplementos "Autores e Livros" e, principalmen­ te, "Letras e Artes" (quase cem artigos) dos anos 40, sincroniza­

dos com os aforismas de O Discípulo de Emaús, podemos acompanhar

as reflexões murilianas à luz de algumas teorias da modernidade. Emerge, daí, uma visão que aponta para o catolicismo recontextuali^ zado, crítico, atormentado, cético frente às instituições, como um mesmo que retorna produzindo diferenças.

Tal leitura favorece uma interpenetração entre o sagrado e

o profano, entre a religião e a arte. Murilo Mendes trabalha com

tensões (Dionisos e fé cristã; local e cosmopolita; tradição e mo­ dernidade), como num barroco redimensionado, num ballet barroco e sincrônico que possibilita a produção de uma modernidade plástica e singular. Pensamos numa ação extraterritorial que costura um es­

paço cósmico, universal, aproximando autores enquanto textos. En­

saiamos, neste ponto, uma reflexão sobre poesia e dança, não no

sentido de um ineditismo interdisciplinar, mas vendo dança na poe­ sia como, comumente, vê-se poesia na dança.

Interessante que ao procurar o outro, ao atuar no outro,

Murilo Mendes engendra um retorno do estético ao social extremamen mente problematizador. Num tempo de crise da identidade, de um su­

jeito agônico, o poeta-crítico deslumbra em tal crise um valor,

(12)

No capítulo dois, partindo de uma obsessão muriliana de

raízes cristãs, que passa pelo olhar de Ismael Nery, qual seja a

abstração do espaço e do tempo, tomamos este último — o tempo — cc) mo problema, dialetizado com a memória na figura do cometa.

0 cometa que, como se sabe, é uma revelação poética para

Murilo Mendes, mostra-se como um signo plurívoco: ao atravessar e- ras na velocidade-luz apresenta o passado ao olhar construtor ("ar­ mado") do presente. Descontrói -se, assim, a concepção de uma suces­ são contínua, pré-determinante, possibilitando a leitura da tradi­ ção por saltos. Se fosse possível, uma história pós-determinante,na qual o presente reorganiza o passado.

Ao romper com o conceito clássico de tempo, Murilo Mendes

relativiza o diacrônico enquanto evolução, aproximando-se de uma cori cepção de tempo bergsoniana. Empreende, a partir daí, a revisão de sua herança mediante uma memória seletiva a presentificadora.

No terceiro e último capítulo, que se quer conclusivo, em­ bora haja, nitidamente, uma resistência quanto a isto (o texto ten­ de a retomar-se), abordamos um Murilo maduríssimo que procura ilurrú nar suas próprias concepções seminais. Com efeito, o Murilo Mendes de Convergência e da prosa poética agudiza a viagem pela linguagem, textualizando a si e ao mundo.

A sua atenção sobre a linguagem faz-se presente desde a ação do poeta-bailarino, que cria o seu espaço mítico, passando pela a- ção transistórica do cometa, que viabiliza um dinâmico diálogo in- tertextual, até o processo substantivador e lúdico da última poe­ sia. Não se quer, com isto, caracterizar uma trajetória evolutiva, mas uma poética convergente que prima pela coerência.

(13)

divíduo e do lírico que se radicalizam, constatamos que seus últi­ mos textos apontam para o enfrentamento do enigma pela linguagem. Explora, a partir desta premissa, as virtualidades da mesma até a sua ausência construtiva. Discute-se o silêncio, o branco e a dan­ ça.

Re-vendo a concepção de texto barthesiana, inquirimos um

Murilo Mendes que enfrenta criticamente seus próprios meios, refo_r çando uma forte guinada da literatura contemporânea. 0 poeta estr£ la — enquanto ator — o espetáculo ideográfico de uma crise (Valeé ry sempre presente).

Testamos, ainda, o diálogo muriliano com um projeto constru tivista e com a Poesia Concreta. Talvez ele instale-se nas rachadu­ ras desta, desiludido com a idéia de progresso (no que denuncia aj>

pectos conservadores da modernização), com os grandes relatos da

contemporaneidade e com a cultura de massa. Sondamos, portanto, o

pós na modernidade de Murilo.

Seria óbvio demais, apontando com o dedo para a própria imjj

gem, dizermos que o poeta permanece — ainda que outro — nos seus

(14)

"0 tempo é uma dimensão do espírito, o espaço é uma dimensão do corpo". Murilo Mendes, 0 Discípulo de Emaús.

(15)

Ao inquirirmos alguns fatos biográficos (grafia de vida) de Murilo Mendes, transformados e operacionalizados aqui como fa­ tos literários, discursivos, constataremos uma tendência ao trans­

cendente, à linguagem. Do cometa de Halley em 1910, à leitura dos

amigos e do abstrato nos anos 50 e 60, passando pelo ballet de Njl

jinski em 1917, pelo mito Ismael Nery, pela "aparição" de Mozart,

no fundo gris com que dialoga, está o vínculo a um catolicismo e

interesse místico que precisam, por sua vez, ser vistos no teci­

do multicor de sua escritura, de seu projeto de vida, enquanto te.x to. Longe de ser um mero limitador do pensamento muriliano, a rel^L gião, inversamente, pode ser tomada como um elemento articulador, e lemento estratégico até, enquanto abertura para a humanidade, para o cósmico e para os grandes deslocamentos que sua obra sempre pro­ pôs.

Se pensarmos na década de 30 e na pobre literatura neoposi^

tivista, fundada no liberalismo e nas utopias das esquerdas, nos

ativismos políticos, discursos estes conservadores, os quais redjj ziam a literatura ao espaço de um otimismo dilacerado nas bases p£ las guerras produzidas justamente pelos grandes Estados Nacionais, o niilismo, o pânico e o desvio resultantes da operação muriliana emergem, no mínimo , modernos.

Seria preciso remetermo-nos aos textos do Murilo de então,

que explodem em imagens inusitadas enformando uma nova temática.

Há o risco de uma leitura apressada de tais textos reduzir uma po^ tura singular e operações discursivas a meros efeitos tradicionais ou surrealistas.

Lemos aqui Murilo no interior de sua própria escritura, ú- nico espaço possível para o escritor1 e seu texto como convergên­

(16)

na medida que leitura é montagem, vale dizer, o ato de escrever é, sobretudo, leitura. Para lembrar Roland Barthes, "a leitura é ver­ dadeiramente uma produção".2

Tomando como ponto de partida esta premissa, procuraremos

resgatar alguns textos, produtos de análises murilianas dos anos

AO, especificamente no espaço transitório (e sequer transistórico) do Suplemento Literário "Letras e Artes" do jornal A Manhã . Em­

presa fascinante na medida que possibilita o jogo, a montagem de

um passado corrompido pelo olhar do presente, o qual é determinado pelo futuro. Murilo escrevia-lia sobre tudo e escrevia-lia todos. Interessa-nos, portanto, o jornal como campo de debate, de entre-

cruzamentos discursivos e, principalmente, como veículo para a

transmissão das idéias murilianas sobre arte e religião. Arte na

religião, religião na arte.

Partindo da hipótese de que o mesmo pode produzir a dife­ rença quando recontextualizado e refuncionalizado — para lembrar Jan Mukarovsky — 3, constatamos na base do incorfomismo moderno de

Murilo Mendes um catolicismo que vai ser definido, quer nos seus

textos críticos, quer nos seus poemas, como um catolicismo não dog mático, universalista e ecumênico.

Com efeito, Murilo opera a deformação de certos valores

estético-religiosos mediante a tensão entre signos e fatos soci­ ais. Ele parece efetuar isto, especialmente, na série "Recordação de Ismael Nery", dezessete artigos publicados no "Letras e Ar­

tes", em 19A8, série que, deixando de lado o teor miti-

ficante, a configuração heróica de Nery (afinal legítima, se acei tarmos que tudo pode ser ficção), constitui-se num fértil documen­ to sobre a discussão aqui estabelecida. Diz Murilo: "A época em que ele viveu era muito desfavorável ao catolicismo no Brasil ... os intelectuais eram na grande maioria agnósticos, comunistas ou

(17)

comuni za nt es... a religião aparecia-nos como qualquer coisa de obsoleto, definitivamente ultrapassada... nós éramos delirantemen

4 te modernos" .

Vale, aqui, procurar interlocutores para dialetizar tal

argumento. Emerge, nesse sentido, a crise de valores engendrada

por um capitalismo arruinado e a procura de novas fórmulas sociais.

Sendo assim, o privilégio do espiritual, mais do que estabelec^

mento de um pólo antitético, reafirma uma transgressão quer ao

conservadorismo liberal burguês quer ao ativismo partidário. "Por que não acreditar em Deus, quando se acredita em regimes

políti-5

cos?" , argumenta Nery naquilo que chamou Murilo seu "Testamento

Espiritual", em 1933. Sobre tal crise manifesta-se até mesmo um

crítico racionalista como Antônio Cândido, que, na época, escre­

vendo sobre o surrealismo, aponta-o, de uma forma um tanto dete£ minista, como sintoma de uma crise, como "um dos momentos agudos da crise da consciência burguesa, desvairada entre o divórcio ca­ da vez mais profundo entre as ideologias e sua significação

so-6 ciai" .

Opção da crise ou procura de uma atitude estética e ética

libertadora? Pelo que se conhece do desenvolvimento ulterior da

obra muriliana, um pouco de cada, mas não só. Fundamentalmente,

índice e fator de uma postura indagadora perante a arte, o homem

e a sociedade. Dos contatos com Nery, reconhece Murilo, advém uma consciência crítica contra o capitalismo e contra os grandes sis­

temas autoritários. Antidogmatismo de base, o cristianismo para

Murilo surge como um discurso capaz de relativizar o tempo, com

suas relações sintagmáticas, e o espaço, com suas fronteiras." Foi

mesmo através da observação de Ismael que comecei a perceber a

7

desumanidade do sistema capitalista" . Isto rendeu inúmeros poe­ mas nas décadas de 30 e 40, ainda contaminados pela atmosfera sur

(18)

realista, onde explodem imagens frente ao processo de desumanização social, com fortes nuâncias apocalípticas, utópicas e dramáticas co­ mo veremos pela abordagem de alguns destes textos. Contudo, o olhar

de Murilo via Nery volta-se até mesmo contra os socialistas que,

segundo o teólogo, só defendiam a questão social, a qual estaria deri tro da questão humana. Sobre a palavra participante, refletia Nery,

com o aval do articulista Murilo, ela estaria deturpada no seu uso

eminentemente político, quando a participação mais significativa se­ ria espiritual e "no" outro. "A participação no outro é um apelo da

8

própria natureza" . Otávio Paz definiria mais tarde: "Poema: busca 9

do tu" . Configura-se, assim, uma ação dramática existencial e, por que não, social da figura de Nery, modelizado por Murilo como protó­ tipo do artista para nosso tempo, artista autônomo, "um grande ator cristão com a consciência da suas múltiplas qualidades sabe o quanto

10

é limitado pelas leis humanas — muito mais do que pelas divinas"

São essas leis humanas que, sincronicamente analisadas, vão

ser enfrentadas por Murilo. Num panorama modernista que transita e£

tre o heroísmo de 20 para o engajamento de 30, produzindo atores-

literatos que migram em massa para formas miméticas de arte — on­ de o grande protagonista na poesia brasileira parece ser Drummond — , Murilo entra num processo inverso de metamorfose: ele parte dos po£

mas-paródia de História do Brasil (que mais tarde ele vai excluir

de Poesias (1925-1955)) para elaborar um humanismo singularmente

cristão, contaminado pela filosofia ismaeliana (que ele chamaria

"Essencialismo") e pelas vanguardas européias. Neste sentido Murilo sempre elegeu um espírito aberto para as estratégias de vanguarda,

ainda que apoiado numa forte base clássica. Isto, certamente, era

um enfrentamento corajoso, na medida que, desta forma, passa a red£ finir o sistema literário e interferir nele, reorganizando a bibli£ teca.

(19)

Murilo afirma que em torno de Nery, desde 1922, reuniram-

se artistas de áreas diversas, incluindo um antiquário, médicos

e arquitetos numa rede pluridiscursiva e interdisciplinar, que,

na sua maioria, não alcançou maior notoriedade. Vale citar Mário

Pedrosa, Jorge Burlamaqui, Antônio Bento, Aníbal Machado, Dante

Milano, entre outros, que, aparentemente (desde a ótica românti­

ca muriliana) não se ligaram a movimento nenhum, apesar do grupo ter sido batizado, primitivamente, de Santo G r a a l . "Éramos contra a publicidade e a industrialização do talento... A nota

predomi-11

nante do grupo era, sem dúvida, o inconformismo" . Isto está de acordo com a teoria do "franco atirador" que Murilo constrói ao

longo de sua vida, auto-imagem insistente, confirma a coerência

muriliana na diversidade. Sem dúvida, procurava-se em 20, sobretij do, ir contra a esterilidade da arte e religião, o que, aliás,

e-ra comum à maioria dos modernos. A surpresa ficava por conta de

Nery: "inútil acrescentar que éramos todos anticlericais, exceto

12

o avançado catolicismo de Ismael Nery" . Constatamos, neste sen­

tido, o que pensávamos no início: a refuncionalização do catoli­

cismo em 30 constitui-se num antivalor modernista. Frente aos

"preconceitos de ordem histórica", esse antivalor, adicionado às suas equações poéticas ganha em modernidade. Ao invés da unilate-ralidade das fórmulas, "deve-se considerar a multiplicidade de fa

13

tores" . Sem dúvida, o múltiplo é desejado por Murilo como vida e arte.

Em outro lugar, o poeta crítico afirma, num extremo liri_s

mo,pela humildade intelectual e profundidade teórica,que Ismael

14

Nery o "ensinou a ver" . Sobretudo, parece-nos que Murilo con­ segue racionalizar atitudes em Nery que fogem ao plano meramente

místico, para adentrar no especificamente literário. Em 30, ser

(20)

como estratégias alternativas e heterodoxas; criar um sistema a- berto na radicalidade; engendrar o paradoxo como figura da moder^

nidade. Neste sentido, emerge certa tradição letrada, desvincu­

lada da dicotomia local e cosmopolita, como instrumento de cons-15

trução, de produção de novas formas (diferente de "fôrma" , di­ ria Murilo), de estabelecimento do antigo no novo e do novo no an tigo. Murilo particulariza, enfatizando isto na obra-pessoa de Ne^ ry: "Aproveitava todas as técnicas a seu alcance, antigas e mode_r nas" ou, ainda, "Ninguém mais novo do que ele, ninguém mais anti-

16 go"

Neste horizonte, encontra-se a leitura da bíblia, inter-

texto na poesia muriliana desde Tempo e Eternidade, passando por O Discípulo de Emaús,onde alcança densa estetização, até alguns

textos radicais de Convergência. Retomar a tradição é ensaiar o

salto histórico, reaproximar pólos e eras, Alfa e Ômega, biblica­ mente. Queremos explorar tal idéia em outra discussão mais centrji da em textos ficcionais, mas, desde já, parece-nos vital perceber que em Murilo estabelece-se uma linha de modernidade que, partin­

do da intensa relativização de base espiritual, cuja matriz é o

Cristo, revelado a partir da leitura e da experiência em Ismael

Nery, alcança altos vôos através da história de sua obra ao tra­ balhar com um conceito de texto que se deixa ler como palimpsesto,

fragmentação e intertexto. Murilo, com efeito, não admite a esta- tização do criador, na medida que, investindo numa herança simbo- lista, visualiza o homem cósmico, integrado num universo de real^ zações metamorfoseadas em texto. Convence-nos da mobilidade como base da representação, atualizando autores e livros: "a localiza­ ção de um homem num instante de sua vida contraria uma das

condi-17

ções da própria vida que é o movimento" . Daí a força da série "Recordação de Ismael Nery" enquanto espaço de conhecimento de

(21)

uma época, com fortes ressonâncias no atual quadro da literatu­

ra brasileira, levando-nos, por isso mesmo, a reconsiderar tais

te xt os.

Murilo Mendes em 40 está, efetivamente, frente ao próprio enigma da modernidade, chegando mesmo a buscar em Baudelaire uma

conceitu aç ão. Murilo defende uma modernidade encadeada através

dos séculos, entendida como um processo. Em Ismael Nery, tal pro cesso consistiria em captar o essencial através de sucessivas mu­

danças, sendo a observação e fixação destas mudanças o próprio

18

fenômeno da modernidade . A palavra modernismo restringia a área

de um fenômeno, inaugurando, por outro lado, a modernidade entre nós. Nesta linha, o passado emerge no presente, que destaca a mo­ dernidade de artistas do passado. Graças a este processo aberto, surgem, ao longo da obra muriliana, referências inúmeras a moder­ nos primitivos, equação perfeitamente viável dentro de um sistema que conspira contra o espaço-tempo, apontando para a própria ins­ tabilidade do homem, das classes e do universo.

Sendo assim, o evangelho aparece como surpresa numa época "muito desfavorável ao catolicismo". Para Ismael-Murilo, o evange

19

lho "não era.um livro velho e superado, mas fonte de vida" . Fon te de arte e filosofia, poderíamos acrescentar. Com isso, Murilo lança um olhar novo sobre a tradição católica, articulando um ti­ po de ação social crítica e revitalizante: "A maioria dos fiéis a

presenta a tradição como um símbolo inerte, incapaz de renovação e participação às coisas vivas. Ismael mostrou-nos a fecundidade da tradição católica e sua plasticidade dentro de certos princípi^

20

os rígidos" . Puro mecanismo de apropriação, reflete, assim, um

cristianismo ativo que, direcionado em busca do essencial, deci­

frasse o sentido do universo e retomasse o fio do cotidiano. Des­

(22)

poeta não deixa de ser, contudo, um ser radicalmente social, na me dida que interfere no outro. Em algum laço interno, Murilo estar^L a redimensionando e reorientando seu ecumenismo universali sta. Ejs sa reconciliação do poeta com o social pode ser vista, mais adian te, a partir de uma análise textual. Mesmo assim, digamos que Mu­

rilo Mendes parece confiar ao ator Ismael Nery um papel análogo

de articulação social quando o constitui como um homem que, "prec) cupado com o eterno, compreendia e sentia melhor do que ninguém a

21

poesia do cotidiano"

Temos abordado aqui as nuâncias singulares do cristianij; mo muriliano. De que forma se dá^esta singularidade? Por que cru­ zamentos passa o projeto essencialista encenado por Ismael e — a posteriore — verbalizado por Murilo? Se há alguma estratégia dis, cursiva saliente em Murilo, esta é o sistema de recorrências que aponta para múltiplas faces de algumas obsessões. Entre estas,nos textos de "Recordação", está a insistência no caráter dúplice do

catolicismo em Ismael. Cristianismo perverso, disse -/alguém. Se

não de üma maneira tão incisiva, certamente atravé^ de uma simbijD se entre paixão e religião. Afinal, segundo o próprio Murilo, "o

22

homem é um ser de espantosas contradições" . Com efeito, Murilo surpreende a quem não o conhece ao elaborar proposições que reme­ tem à idéia do texto interdisciplinar, global e aberto, insinuan­

do a própria relativização de gêneros em texto^ posteriojres. "A

vida estética não opunha-se à vida filosófica e à religiosa. Rea

lizado o ideal grego, desenvolvido e ampliado'pela filosofia crijã

23 ■

tã" . Resgate do corpo, engendrando novas leituras do c^tolicis

mo onde o que é estabelecido é fundamentalmente a "união de Dion_i

24 <

sos com a fé cristã" . Cristianismo de simbiose, Murilo abarca,• * A

•num neobarroquismo, a própria história da cultura. Através de um

+ *

(23)

T-obsessivo ler-se no outro, parece se redefinir a cada instante, co mo no relato do seu encontro com o jovem poeta Marcos Konder Reis em 1944. Ao selecionar o autor afim, Murilo está, de fato, julgari do para lembrarmos o conceito de Leyla Perrone Moisés. Decifrando se enquanto enigma,Murilo vai construindo o po eta-Muri lo, que t£ oriza a ficção ao ficcionalizar a teoria.

Com efeito, a relação do texto muriliano com a religião

não é pacífica. Antes encerra um paradoxo essencial: se por um la­

do define uma ação política, na medida que antecipa concepções

próprias ao que hoje entenderíamos como catolicismo revolucioná­ rio, sintomatizado numa "Teologia da Libertação", com nuâncias, à

época, antilibe ralistas, por outro, a sua poesia aponta para um

antipragmatismo radical, marcado por uma dissonância imagética in tensa. De qualquer forma, tal ambigüidade é consciente e servirá para tensionar a postura política e poética do autor. Murilo, co­ mo vimos, ao eleger o desprezado, o residual, nos anos modernistas, coloca do avesso um determinismo de base luckatiana. Parece dialo gar, neste sentido, por este atalho da história, num salto inesp£ rado, com Adorno e Benjamim. Noutro aspecto, ao recuperar o

barro-25

co católico como estética da deformação — "a dispersão barroca" ,

tende para uma arte antipositivista, constituindo uma resposta

crítica ao liberalismo, a ideologia oficial e dominante então. Des^

ta forma, Murilo coloca-se do lado de fora dos grandes sistemas

conclusivos da sua época. 0 poeta, com um discurso corrosivo, dardeja incertezas e espanto para todos os lados, na medida que considera a insuficiência do socialismo através do olhar de Ismael Nery,quem "surpreende-se com socialistas e comunistas que esquecem de certos

26

(24)

aparece em 0 Discípulo de Emaús: "A doutrina comunista tira sua 27 força de ser uma paródia do grande dogma da comunhão dos santos" .

A linguagem como paródia da linguagem. Relat ivi za -se, assim, o

sistema de certezas do neorealismo de esquerda, o que não deixa

de impugnar, explicitamente, valores burgueses de existência: "o

estilo de vida da sociedade capitalista é um atentado ao essenci^ 28

al" . Essa observação de Ismael Nery desdobra-se, mais uma vez, em outro aforisma: "A libertação econômica do homem só poderá de

fato se operar quando ele resolver aceitar e seguir a vida es

sencialista ensinada no Sermão da Montanha. Tal libertação não po 29 derá evidentemente ser operada dentro do sistema capitalista"

Esse desdobramento implica optar por uma linha oblíqua de catoli.

cismo, como veremos adiante, linha essa que desmitifica lingua­

gens inerentes ao sistema, como a separação corpo e espírito, por exemplo. Afirma, entre outras coisas, que "o sistema religioso" o "deixa frio" em "sua retórica e narcisismo", ao que contrapõe o "discurso puro" de São Paulo, que o arrebata com sua "juventude,

30 a novidade permanente"

Um catolicismo, como se vê triplamente transgressor: con­ tra o comunismo, contra a burguesia e contra ele próprio, um cat£ licismo que bascula entre "a boêmia espiritual num momento de pia

31

nificação"e "a fé cristã num momento de descrença" . Murilo está

longe dos movimentos católicos burgueses, sendo, neste sentido,

moderno naquilo em que seria conservador. Sua religiosidade confi

gura-se como uma forma de marginalidade ou, sob outro ângulo de

visão, a procura de uma nova utopia (formulada no mesmo), a busca de um novo absoluto, ainda que dessemantizado da variante "dogmá­ tico". Diz-nos no aforisma 1 , de O Discípulo de Emaús: "0 absolu­ to é o primeiro motor de todas as relatividades". Se todo discur­

(25)

32

ma destruição" . Com efeito, ao afirmar que,apesar da antinorma- tividade, era possível em 1930, ser "artista, homem moderno e ca­ tólico romano de confissão e comunhão", o poeta está inscrevendo- se numa linha de modernidade inusitadamente universal e peculiar, fatores esses, que, certamente, não se excluem. Tal tendênci a, den tro do modernismo brasileiro vai demonstrar ser das mais profícu­ as, ou, pelo menos, aquela que conseguiu fazer uma ponte entre mo­ dernistas e vanguarda poética dos anos 50/60, entre o moderno e o pós-moderno. Murilo afirma duplamente tanto o declínio do moderno quanto sua presença como condição de superar a modernidade.

Murilo engendra, por outra lado, tal modernidade motiva­ do pela esquizofrenia e pela desconfiança quanto as dogmas soci­ ais, quanto aos regimes políticos ("Todos os movimentos políticos

modernos chegaram a este resultado: desconsolar o homem e

tirar-33

lhe a razão da existência" ), quanto à esterilidade da igreja,

quanto à incultura produzida pelo nacionalismo populista. Exagero situar Murilo Mendes fora da estrada, na contramão, como herói cul^

tural? A consciência crítica do autor e a coerência da sua longa

produção parecem atenuar tal suspeita. Esta postura é (ad) mirada em Lívio Abramo, em quem observa uma vigília constante que

preser-34 va "as virtudes libertárias" frente à "engrenagem totalitária" . C(3 mo vemos, em Murilo desdobra-se o cansaço (de feições pós-modernas) frente aos grandes relatos, configurando o poeta fora-da-lei anun­ ciado por Mário de Andrade, caracterização lícita se não dogmati­ zarmos. Em contrapartida, a sua positividade é marcada pelo "trans" e pelo "multi": "Atraem-me a variedade das coisas, a migração das idéias, o giro da imagens, a pluralidade de sentido de qualquer fjj

35

to" diria mais tarde em Poliedro, de 1972 , relendo a si mesmo, numa dinâmica intratextual, uma vez que em 1948 já afirmava: "Não

36 me inscrevo em nenhuma teoria"

(26)

Seu catolicismo é, portanto, recheado de tensões (e por is so mesmo, moderno). Aponta para uma fuga das linearidades. A l i n ­ guagem muriliana, marcada por encontros poéticos inusitados ("Asis to a um desdobrar de planos/ As mãos vêem, os olhos ouvem, o ceré

37

bro se move..." ), flexibiliza a dureza mimética instituída. 0

escândalo da fé é operacionalizado como estratégia de choque. Nejs te sentido, não seria absurdo aproximarmos Murilo Mendes de Machja

do de Assis e Mário de Andrade (insinuante aliteração) pois, a

partir de estratégias distintas, todos os três minam o determinis^ mo literário e a paranóica necessidade de engajamento do artista.

Diferentes, mas convergentes. A contrapelo da história, Murilo

não funde racionalismo e mobilização política. "Há muito acho a-cadêmico discutir a participação dos artistas na luta social: quei^ ra ou não queira,todo mundo hoje participa. Não é preciso entrar

38

em nenhum partido político, basta entrar numa fila" . A esse res peito, Mário de Andrade em sintonia com Murilo, ao tratar de sua "arte de ação", esta confinada, contudo, ao "terreno da arte", já

39

se definira como "sujeito visceralmente apolítico" . Tanto quan­ to a de Mário, a estratégia muriliana passa, portanto, não por u- ma cooptação com processo social, mas pela instigação da História,

fundada numa negatividade crítica, ainda assim, construtiva. As­

sim sendo, queremos com esta leitura salvar o autor de rótulos in_ cômodos e incorretos como o de poeta surrealista, católico, cris­ tão, metafísico, socialista, o que seria abafar uma voz que bri­ lha pela polifonia.

Ora, é preciso considerar que para o pensador, para o po

eta-crítico Murilo Mendes, é possível chegar-se à realidade por

40 vias irreais. Afirma Murilo: "o místico é o verdadeiro realista"

(27)

A realidade pode ser construída, o artificial pode ser natural,

desde uma perspectiva de que a linguagem pode operar estratégias

discursivas, montar, criar a realidade do texto. É o que descobre 41

em Beethoven: a recusa em fazer música imitativa . Queremos in­

tuir o que Murilo verbalizou: "Quando se avança na aprendizagem do 42 invisível, as idéias de ganho e de perda começam a caducar." De

resto, esta concepção, de que o real não é somente aquilo que se

vê, é retomada em princípios estéticos com conseqüências no plano

da realização poética do autor: o texto não é somente aquilo que

lemos, mas aquilo que está dobrado, o não dito, o em branco. Espja

lham-se, como dizíamos, versos que indicam esta postura teórica

frente ao real ao longo de seus textos: "Abalas as colunas da rea 43

lidade" e "pelo não reconhecimento da fronteira realidade-ireal^ 44

dade"

Diante da análise da religião ou, se quisermos, por outra via, do sagrado frente ao poético em Murilo Mendes, somos levados

a pensar que a sua conversão é também uma conversão à linguagem,

ainda que isto se evidencie paulatinamente, numa lenta metamorfose

estrutural pelos seus vários livros até a culminância em Conver­

gência, culminância esta que o próprio título da obra indica. Tan­ to mais que tal é composto, entre outros, por "Murilogramas". É o poeta que se inscreve, que se transforma em linguagem. Esta idéia do "Murilograma" vem confirmar o que já mencionamos: a procura do estético na religião através de um sistema de analogias com a mo­

dernidade que vai da diversificação no um (na multiplicação dos

pães ou no Cristo dado aos homens) até o Apocalipse como sintoma máximo da crise do indivíduo e da arte, crise esta que inaugura a modernidade e alimenta a obra muriliana.

45

Ramón Xirau, em Dos Poetas y Lo Sagrado , ao analisar

(28)

e Cesar Vallejo, os conjuga dentro de uma tendência à sacraliza- ção que considera vital no mundo contemporâneo. 0 sagrado é visto

como um ausente-presente que retorna. A época em que vivemos é

tida como dessacralizada: a modernidade é desencantamento do mun­ do. Foi o que verificamos na cisão entre Murilo e a época em que

viveu, separação essa que o poeta tenta elaborar com sua atitude

frente ao sagrado, a qual possibilitou o retorno deste com uma for ça inusitada.

"Para cualquier creyente, tanto si pensamos en las reli-giones arcaicas como si pensamos en las relireli-giones más perfectas,

el mundo es sagrado y lo sagrado sumo en ellas —

especialmen-46

te em el judaísmo y el cristianismo — Dios mismo" . Esta afirma ção de Xirau nos aproxima da posição de Murilo. 0 sagrado como "el reino luminoso". A função deste espaço sagrado seria, retomando o que abordávamos antes, dialetizar o real. Diz-nos Xirau: "La rea-lidad puede aparecer como una no-rearea-lidad, como un 'caos' . El mun

47

do sagrado es, em cambio, un 'cosmos'" . A fundação deste "cos­ mos" representaria a ânsia de viver um centro, ou como entendemos, a saudade do "um" frente a um universo absolutamente descentrado,

48

fragmentado. "A desproporção é a saudade da simetria" . Isto re­

mete a uma das tensões básicas da poesia muriliana nos anos 30

e 40 que é a tensão entre caos e unidade. É sintomático que uma

das principais obras deste período seja intitulada As Metamorfo

49

ses , o que remete às Metamorfoses, de Ovídeo e à Teogonia, de Hesíodo, obras que introduzem a idéia do "caos". Tal saudade da unidade perdida, como campo de utopias, como espaço de fecundação de linguagens, surge em vários poemas do livro, através de ilumi­

nações e profecias, que configuram uma semiótica visionária ca­

paz de resgatar os sentidos do universo, como, por exemplo, em

50

(29)

Ele nasceu da terra/ Preparada por gerações de sensuais e místi­ cos:/ Surgiu do universo em crise, do massacre entre irmãos/ Ence£ rando no espírito épocas superpostas.../ Ele manifesta o equilí­ brio de muitas gerações". Em outros textos, em forma de apelo, de­ tectamos uma espécie de solidariedade na crise: "Suspendei de no­ vo no azul a gaiola dos anjos,/ Voltem de novo os lírios no lugar

51 dos fuzis"

Interesssante observar, contudo, que o centro do sagrado é flutuante — "esquadrilhas de mitos são enviadas para nos pro-

52

tegerem" — , podendo recair com freqüência numa cidade. É o ca-53

so do poema "Jerusalém" : "Jerusalém, Jerusalém.../ Em vez de si nos festivos/Ouço sirenes de aviões/Em vez da Santa Eucaristia/Re cebo granadas de mão,/ Os mitos do mal desencadeados sobre mim/ Me envolvem sem que eu possa respirar./ Jerusalém, Jerusalém,/ R£ colhe meu último suspiro". Menos que identificar a presença da

catástrofe, factualizada na II Guerra Mundial, parece-nos deci­

sivo perceber atitudes sacramentais que permitem a renovação do universo: a morte, o inferno, o abismo como formas de metamorfo­ se à vida, o céu, o "cosmos", ou seja, um mundo renovado por um tempo original. Como esclarece Xirau: "El universo sagrado lie va consigo orden, renovación, puntos fijos que son núcleos refe- renciales. Si se quiebra el axis mundi — lo qual sucede en nues-

tros dias — se pierde lo sagrado y nos encontramos, sea con

lo profano, sea más frecuentemente, com sacralidades menores y

54

sustitutas" . Aí reside um ponto crucial na relação da visão mu riliana frente ao sagrado. Se salientarmos o fato de sua poesia indicar um retorno nostálgico ao atemporal, ao equilíbrio e à or­ dem, é preciso frisar igualmente, que isto se dá de uma maneira

intensamente dilemática na medida que incorpora a sua própria

(30)

ca em que viveu o músico alemão, "a vida profana, apesar da deca­ dência religiosa, ainda estava um tanto impregnada do conceito de

55

sacralidade" . Ora, isto nos faz pensar com Xirau que as atitu­ des do poeta frente ao sagrado são de atração e repulsão ao mesmo tempo. Em Murilo, o sagrado é sobretudo a construção de um espaço mítico onde podem ser articuladas as tensões inerentes à sua obra.

Uma zona de enfrentamentos, um espaço onde, em última análise,

possa circular o poeta. A negatividade transpira em vários pon­

tos: "Eu sou terrivelmente do m u n d o .../Talvez liquidaremos a etei: 56

n i d a d e .../Intimaremos Deus..." . Sentimento religioso, centrípe­

to e centrífugo ao mesmo tempo, funciona como chamado e recusa.

Isto configura o paradoxo: a poesia deseja o que nega. Ou, textu­

almente, através de Ismael Nery: "Tenho uma formidável atração

57

por aquilo que detesto" . 0 enfrentamento do mistério a que se propõe Murilo produz situações díspares, como a certeza e o espaji to. Digamos que ele crê por desacreditar. Assim, a linguagem equí^

voca ganha transparência. Frente ao vazio da revolução a saudade

da unidade perdida pode ser lida como a saudade da identidade per dida, o que vai resultar na dispersão do eu. A luta entre a cria­ tura humana e o poder divino dá-se à custa de sacrifícios. 0 poe­ ta age como herói civilizador, forjando o mito prometeico. Eliot

nos relembra que a perda da identidade relaciona-se com a perda

de mitos e de Deus. 0 retorno a Deus permite o retorno a uma i- dentidade, embora não idêntica.

0 lado profano ou perverso da religiosidade em Murilo re­

side, talvez, no fato de perseguir a conciliação dos contrários

que obedecem à dialética atração/repulsão, tais como racional/ir­ racional, concreto/abstrato/regional/universal. "E a separação entre o sa grado e o profano é muito menor do que em geral se pensa",

diz-58

(31)

não-sagrado. Em Murilo, o poeta e a po e s i a . .. De uma forma muito

singular, o autor de AsMetamorfoses retoma o versículo bíblico

"sois deuses". Assim, ao menos, constrói a imagem do poeta como h£ rói-ex istencial: Ismael Nery. Murilo recupera o Narciso em Nery. É

sintomático, a esse respeito, que o próprio Nery se tomasse como

modelo em seus primeiros desenhos e tivesse o desejo de doar seu

cérebro para provar a grandeza de uma consciência. 0 poeta-crítico efetiva, assim, a operação que tanto o seduziu: sintetizar Dioni- sos com a fé cristã, desenhando a figura clivada da identidade mo­ derna. Desde uma perspectiva da humanização de Deus e da consequein te divinização do homem, Murilo Mendes estende o espaço do sagrado ao poeta e, em contigui da de,à poesia, dentro do processo já anali­ sado de recuperação estética dos princípios do catolicismo. "0 pr£ 59 blema de Deus não é só uma questão de fé, mas também de cultura" . Tal processo estetizante é operado a partir do Cristo como unifica dor poético contra o discurso vulgar das evidências, contra o tédi_ o do cotidiano: "retornar às epístolas é romper o nevoeiro de vul-

60

g ar idade atual" . De uma certa forma, ao negar o mundo e a felici dade por ele produzida, Murilo, como Nery, está buscando a manifes^

tação de outras linguagens (a linguagem de Deus) transformadoras,

como afirmava Nery (o sofrimento como meio de realizações): " . . . t i_ rai-me cada vez mais a felicidade para que eu a deseje e não morra

61

de tédio" . Uma reapropriação operada a partir da perseguição a

uma tradição milenar. Murilo abstrai a modernidade da religião na medida que a lógica mimética não traz felicidade ao modernismo, c£ mo já tentamos demonstrar. Numa estratégia de inversões, o espíri­ to da religião é antítese do "espírito anti-poético". 0 homem plu­ ral do cristianismo é redimensionado no texto plural da modernida­

de. A bíblia emerge como hipotexto da literatura universal, para

(32)

do tempo para ganhar a vida espiritual pode ser tomada como des^

pojamento da linguagem, a procura por um mundo substantivo, en­

saiada e concretizada progressivamente. Com efeito, a doutrina

es se nciali sta, elaborada por Nery e apresentada num dos artigos 62

da série "Recordação de Ismael Nery" , vem ampliar esta hipóte­

se. Nela detectamos a abstração do espaço-tempo como estratégi^

a intertextual (de que trataremos em outro capítulo); a seleção dos elementos essenciais à existência, analogizada ao nível da memória seletiva; a representação de noções permanentes que da­ rão à arte a universalidade; o Cristo como companheiro do cotidi^

63

ano do homem, como criador de um "grande estilo de vida" . Uma

relação que tende à dinamização do processo artístico por meio

de uma troca de funções: o alto no baixo e o baixo no alto. Por isso, por essa extensa gama de ressonâncias, Murilo setencia em

64

"0 Próximo Cervantes" : "Não pode desparecer a cultura do Cris­ to". Uma cultura transfundida, insistimos, no plano estético.

Com isto, o poético emerge sacralizado. Desde Stéphane

Mallarmé, os poetas contemporâneos têm buscado absolutizar suas próprias obras. Xirau, cita, entre outros casos, "el 'poeta-dios' de um Huidobro, este absoluto que se niega a si mismo..., union

65

de los opuestos en el inconsciente, en el surrealismo" . Poderí^ amos incluir aí o "Poeta Nocaute"ou "0 Novíssimo Orfeu", murilia ano. Nestes, a seus modos, o poético aparece como espaço de uma nova subjetividade frente ao esfacelamento do indivíduo

(pensa-66

mos, por exemplo, com Adorno , em Auschwitz, a própria barbá­

rie na época da velocidade). Em Murilo, a decadência do ritual

litúrgico deixa à arte este lugar. Daí o afundamento no barroco, onde o artista-sacerdote funde religião e arte. Deste

(33)

enfrenta-mento, resulta a linguagem como mito (os mitos, por sua vez são linguagens). Novamente Xirau: "La poesia... tende a sacralizar djj

bitati vã me nte, muchas vezes, la obra, el poema, el mundo creado

67

por um poeta-dios o pequeno dios" . 0 mito órfico é retomado em termos de militância poética: "Ajudo a construir/A poesia futura/

68 Mesmo apesar dos fuzis"

A idéia do poeta-deus é operacionalizada em Murilo median

te a obsessiva fusão do eu-poético com o criador ("0 olhar do

poeta é vastíssimo: só ele percebe os inumeráveis crimes contra a

69

poesia") . A primeira pessoa verbal dos poemas de As Metamor­

foses, por exemplo, indica esta comunhão suprema: "A Poesia sou eu/A poesia é Altair/A poesia somos todos" ou "Vou aonde a poesia

70

me chama" . É claro que ao falarmos da sacralização da poesia em Murilo, estamos pensando em algo distinto da aura da obra de ar­ te edopoeta, esta sim, há muito dissipada pelo olhar benjaminiano.

Tomamos aura no sentido órfico mesmo da poesia enquanto rito, a

imortalidade através de ritos purificadores. A linguagem, portan­ to, é teofânica. Não existe nada fora da linguagem, fora do poema, neste sentido, sacralizado. Ora, isto se aproxima da concepção de

71 Paul Valéry, quando aponta para o início do caminho: a linguagem .

Valéry dá-nos uma idéia desta potencialização do poético na medida que vislumbra a união entre palavra e espírito, median­ te o que chama de "encantamento": "Não deve duvidar-se de que a

forma poética tem estado adscrita durante séculos a serviço dos

72

encantamento" . É claro que isto, dentro da estética valeriana,

está vinculado ao desejo, à possibilidade de união entre som e

sentido, o que distingue o poético pela criação de um estado ra­ ro. Sendo assim, podemos aproximá-lo de Murilo, o qual sempre rei

(34)

vindicou o transcendente pela linguagem, contra as exigências da 73

vida ("o poeta é o prático do espiritual" ou "No plano poético 74

o espiritual é orgânico" ). Algo que "se opõe à simplificação 75

crescente das formas verbais" , completaria Valéry. Esta dispo­

sição remete, contudo, não à inspiração pura de cunho irracionalij> ta, mas, antes pelo contrário,ao que Murilo tantas vezes ressal­ va como "trabalho ordenador do espírito", que Valéry coloca em ter­ mos de "trabalho inteligente", "um trabalho desta espécie é o

76

que cumpre o verdadeiro poeta" . Tal idéia é problematizada por

Murilo Mendes em vários afo ris ma s: "0 anjo da guarda é proporcio- 77

nal" ; "0 conceito primordial da arte encerra a idéia de equili_

78 79

brio " ; "0 difícil não é encontrar a verdade, é organizá-la" . A ênfase no artificial, no trabalho humano construtivo, trabalho com a linguagem, leva-nos a pensar com Valéry que "todo verdadei^

80

ro poeta é necessariamente um crítico de primeira ordem" . Esta relação reflexiva sobre o fazer poético que caracteriza o traba­ lho de Murilo Mendes o inscreve numa tradição de poetas-críticos

que inclui Valéry na esteira de Mallarmé e que deveria, certa­

mente, incorporar, também, Poe, Baudelaire, Eliot, Pound, Mário de Andrade e Haroldo de Campos para pensarmos — com os dois últi. mos — em casos mais próximos. Tal função — a do poeta-crítico— parecia ser algo claro para Murilo há muito, quando, por exemplo, em "Lasar Segall", propõe tal associação: "A revisão do processo

de pensamento, a mudança da atitude mental, o combate à rotina,

a aceitação de um universo em que se cruzam as múltiplas corren­ tes da cultura, eis alguns pontos de recuperação crítica que de­ verão ser apresentados a todos aqueles que desejam aperfeiçoar

81

seus conhecimetnos de arte" . Uma reflexão que, como se lê, é marcada pela pluridiscursividade e pelo processo de "recuperação" ou devoração crítica.

(35)

De resto, tendo em vista a questão suscitada acima, o cristianismo ocidental, com seu método expositivo, sempre traba­ lhou com a razão,o que anula, de certa forma , a contradição aqui.

Tal racionalidade é justamente o que fascina o crítico Murilo

Mendes em artigos sobre o apóstolo São Paulo, onde refere-se

82

ao "gênio organizador" d e s t e . Haroldo de Campos chega mesmo a 83

falar em "retórica de Deus" , que, aliás, torna-se evidente na leitura bíblica tendo em vista as tipologias do Cristo no "Velho

Testamento": Moisés, José, Jacó, Daniel. Não podemos esquecer

que na via dupla de comunicação entre o homem e Deus, é pelo di^ curso argumentativo que Moisés intercede pelo povo no "Êxodo" e que Jacó interroga a Deus sobre a sua condição. A exploração do "cosmos" aque se referia Xirau transita para a exploração da lin

guagem. Da ciência do coração para a ciência da fala, lembrando

84

Roland Barthes . 0 mestre francês mostra-nos, principalmente,

que a literatura moderna busca substituir a instância da realida­ de (ou referente) pela da própria escritura não como forma pu ­

ra, mas como o único espaço possível para quem escreve. Neste

espaço, único e aberto, é que o poeta em Murilo se move, numa e£ tratégia que nos arremessa à imagem do bailarino — o poeta-bailji

rino — tornando inevitável a busca do movimento e de relações

articuladas no eixo sincrônico, o qual converge no diacrônico. É dentro desta perspectiva que a relação, a ponte entre Valéry, Mu­ rilo e Roland Barthes torna-se plausível. Positivamente, a religi^ ão em Murilo Mendes é tomada enquanto experiência dilacerada, na medida mesma que conclui pela ausência de desertos: o místico mo­ derno deve trabalhar em ambientes ruidosos e povoados. Tal exper^i ência, que é de terror e afetividade, é produtora de transforma­ ções que se refletem no plano da arte. 0 sagrado é estetizado na

(36)

opera o refinamento e a transfiguração da condição humana" . Se Nery é construído de uma forma autocentrada, na qual a sociedade

não o determina, é porque a fronteira entre real e irreal, entre

o místico e o não-mítico foi irreversivelmente transgredida.

Até aqui temos abordado o pensamento de Murilo Mendes e

suas conexões nos textos críticos. Vejamos como se dá esta rela­ ção entre o sagrado e o estético num poema dos anos 30, até mesmo para ressaltarmos a coerência que envolve o projeto muriliano.

"Vocação do Poeta", poema sobre o qual nos debruçaremos, aparece no livro Tempo e Eternidade, de 1935, escrito em parceria

com Jorge de Lima. Livro marcado pela partilha, traz consigo a

presença do diálogo e da reflexão de cunho metafísico-cristão. Nes te sentido, aparece como uma abertura para outros espaços existen ciais possíveis, logo para outros espaços poéticos. Parece-nos que tal atitude é (c o n )figurada no tom de manifesto do poema escolhi­ do. Tentativa de explicar o poema? Propomo-nos ao menos indagá-lo no seu leque de possibilidades, ainda que que tateando fragmentos.

Ou: uma tentativa de ler (-nos) (n)o poema.

Eis o texto tal como aparece em Poesias (1925-1955):

VOCAÇÃO DO POETA

Não nasci no começo deste século: Nasci no plano do eterno,

Nasci de mil vidas superpostas, Nasci de mil ternuras desdobradas

Vim para conhecer o mal e o bem E para separar o mal do bem.

(37)

Vim para amar e ser desamado

Vim para ignorar os grandes e consolar os pequenos. Não vim para construir minha própria riqueza

Nem para destruir a riqueza dos outros. Vim para reprimir o choro formidável

Que as gerações anteriores me transmitiram. Vim para experimentar dúvidas e contradições

Vim para sofrer as influências do tempo

E para afirmar o princípio eterno de onde vim. Vim para distribuir inspiração às musas

Vim para anunciar que a voz dos homens Abafará a voz da sirene e da máquina,

E que a palavra essencial de Jesus Cristo Dominará as palavras do patrão e do operário. Vim para conhecer Deus meu criador pouco a pouco, Pois se 0 visse de repente, sem preparo, morreria.

Fere a atenção, de início, o ritmo obsessivo do poema, mar cado por uma negação introdutória, em contraponto com a sucessão de orações orientadas pela repetição do verbo "nasci", criando u- ma expectativa confessional, logo subvertida pelo desconcerto do múltiplo — "o plano do eterno"; "mil vidas superpostas"; "mil

ternuras desdobradas" — , que antes pulverizam o individual numa

cosmogonia do que propriamente o caracterizam enquanto sujeito de gênese determinada. Na verdade, tal surpresa é caracterizada pela

própria negação — tônica no poema — do primeiro verso, onde o

poeta se lança no intemporal. Subversão do espaço ("nasci no pla­ no do eterno"), subversão do tempo ("não nasci no começo deste sj§

(38)

múltiplo, base para o paradoxo plural, localizado no meio do poes ma , paradoxo este que vale por todo um projeto estético-existen ciai vinculado a uma linha de mode rn id ad e,vigorosa pós-baudelai- riana: "Vim para experimentar dúvidas e contradições".

Com efeito, os dezozito versos restantes criam a falsa

idéia irônica de missão (e é difícil para nós, hoje, não enxer­ garmos uma ironia injetada nas veias do tom trágico e onisciente

do poema). 0 verbo "vim" é dez vezes repetido desenhando,

contudo, um quadro antitético e paradoxal. A seqüência de

antíteses — mal/bem; amar/desamado; grandes/pequenos; própria

riqueza/riqueza dos outros — engendram uma construção na negati^ vidade ("Não vim para construir minha própria riqueza") que não define uma missão, mas direciona o "sentido" para o que podería­ mos chamar, por empréstimo, de uma inversão crítica, além de uma

estratégia barroquizante resgatada. Crítica da poesia, crítica

na poesia. Versos-conceitos que problematizam a realidade relati- vizando os dogmas sociais ("nem para destruir a riqueza dos ou­

tro"), o espaço com fronteiras e o tempo linear, elementos da

norma. Se, de um lado o eu do poema coloca-se como "aquele que reprime o choro formidável que as gerações anteriores transmiti­ ram", de outro, o poeta procura o diálogo com aquilo que rece­ beu, sustando a idéia de continuidade temporal linear, articulari do o transtexto da modernidade. A seqüência de antíteses abertas

conduz à formulação do paradoxo que explode no décimo terceiro

verso do poema, preparando o humanismo essencial da última es­ trofe.

"Vim para sofrer as influências do tempo": sem dúvida, tal verso, como aforisma ou fragmento, condensa uma teoria do pa­ radoxo poético, sendo complementado, antagonícamente, pela

(39)

coor-denada aditiva de mesmo sujeito: "E para amar o princípio eter­ no de onde vim". É notável a plurissignificação dos versos acima citados.

Ao indagarmos o significado de "tempo", poderíamos tanto pensar sincrônica ou diacro nicamente, ficando, de qualquer forma,

implícita a ambigüidade que associa o contingente ao eterno. Is­

to está de acordo com "dúvidas e contradições" do verso anterior, na medida que o texto re-lê um passado primordial, recupera-o,en frenta-o,rearticulando-o na sua própria tessitura. Esta contém u- mas historicidade intrínseca, através da qual são lançados dados ao futuro, enquanto campo da utopia e da conspiração contra si mes mo, previsível fim. Neste ponto, a figura do eu-prome teico, lír^ co e trágico, é fortalecida, assumindo a feição de distribuidor de

poesia, produtor e sacerdote ("Vim para distribuir inspiração às

musas"). Com efeito, ao confessar que veio para "sofrer as infl£ ências do tempo", o autor confirma a categoria do seu texto, tra­ mado intertextual e palimpsesto que solicita a construção de vá­ rias leituras.

Ao tematizar-se em "Vocação do Poeta", pensamos no poeta Murilo como agente de uma modernidade, peculiar e universal, que saindo do modernismo heróico, lança em 35 as bases para a

constru-86

ção de uma "poética da mobilidade e do devaneio" , dialógica e cosmopolita. Modernidade esta, dialeticamente oposta ao modernismo progressista — a idéia vazia de um progresso infinito e

totaliza-87

dor para lembrar Marshall Berman . Isto está embutido na função

poética definida nos versos dezessete e dezoito que mutuamente se opõem: "Vim para anunciar que a voz dos homens"/"abafará a voz da sirene e da máquina". 0 texto inscreve-se na resistência humanista, superior aos esquemas sociais polarizadores, onde "a palavra essen

Referências

Documentos relacionados

São por demais conhecidas as dificuldades de se incorporar a Amazônia à dinâmica de desenvolvimento nacional, ora por culpa do modelo estabelecido, ora pela falta de tecnologia ou

A par disso, analisa-se o papel da tecnologia dentro da escola, o potencial dos recursos tecnológicos como instrumento de trabalho articulado ao desenvolvimento do currículo, e

Segundos os dados analisados, os artigos sobre Contabilidade e Mercado de Capital, Educação e Pesquisa Contábil, Contabilidade Gerencial e Contabilidade Socioambiental

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

O presente artigo se propôs a estabelecer as bases fundamentais do Direito &amp; Literatura e, a partir delas, examinar relevantes aspectos da obra literária “1984” de

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Το αν αυτό είναι αποτέλεσμα περσικής χοντροκεφαλιάς και της έπαρσης του Μιθραδάτη, που επεχείρησε να το πράξει με ένα γεωγραφικό εμπόδιο (γέφυρα σε φαράγγι) πίσω

Como já destacado anteriormente, o campus Viamão (campus da última fase de expansão da instituição), possui o mesmo número de grupos de pesquisa que alguns dos campi