Schumann! Poucos músicos haverá que nos invoquem tanto como o autor do "Estudos Sinfônicos", o criador dessa atmosfera especial que lhe é própria, gerada talvez pelo seu perpétuo conflito entre a razão e o sentimento, o pródigo inventor de tantas peças poéticas em que transparece em muitas passagens o gênio; Schumann, o anunciador de um novo estilo musical... Entretanto, é bom não confundir: se essa
bizarra atmosfera schumanniana, como a de Chooin agrada tanto aos poetas,
não é só pelo dado "estranho"; é pela sua intensa musicalidade. 0 que faltou a Schumann... e aqui dou a palavra ao meu amigo, o ilustre crítico Andrade Muricy, no seu livro "Caminho de Música" sobre o qual há dias falei aqui:
"0 que faltou a Schumann, foi a íntima interpetação das suas altas faculdades, que, se tivesse ocorrido teria feito dele um criador sólido e eterno, como João Sebastião Bach, a mais perfeita personificação do equilíbrio vivo das faculdades criadoras. Naquela
grande personalidade houve paralelismo do espírito e do instinto, da
razão e da fantasia. Paralelismo, pois a fusão dos elementos só se dava em momentos breves e pa roxístico".
Não se poderia dizer melhor. Falta a Schumann o fator
decisivo de vitalidade construtiva, que dá a supremacia a Bach, e
dá a Mozart a preeminência sobre Chopin, no juizo lúcido e insuspeito de George Sand.
Mas, incompletado ou não, Schumann consegue muito mais do que nos emocionar: consegue nos tirar fogo do espírito — tudo o que Beethoven exigia da música. É, sem dúvida, por vezes mórbido, enervante e deprimente — mas é também exaltante e tônico, como no "Carnaval", na "Sinfonia Renana", etc.
A vida de Schumann comporta episódios de singular
grandeza. 0 seu amor a Clara Wieck, os obstáculos que teve que superar para conquistá-la, depois a harmonia, firmeza e gravidade de sua união, inscrevem-se entre os fatos gloriosos da história do homem. Roberto e Clara Schumann (se o mundo durar, já se vê, o que parece meio
problemático...), Roberto e Clara Schumann, com o perpassar dos tempos, serão transfigurados pelo espírito alegórico dos povos; passarão um dia à categoria dos amantes imortais, como Dante e Beatriz, Romeu e Julieta, Fausto e Margarida... E se falo em Romeu e Julieta, Fausto e Margarida,
Outro aspecto exemplar da grandeza de Shumann consiste em ter tomado consciência do seu profundo desequilíbrio, e ter-se
esforçado por dominá-lo: procurando sempre organizar sua vida material, ao mesmo tempo que organizava sua vida artística e que atacava a
rotina do meio ambiente, exercendo intensa atividade crítica e
jornalística. Com o estudo acurado da obra de Bach, procurou suprir o equilíbrio que, devido a um defeito original, lhe faltava. Aparentemente a desordem triunfou, pois, como é sabido, Schumann tentou afogar-se e terminou sua vida numa casa de alienados: mas sua biografia e sua
própria música elucidam sua luta patética pela conquista da unidade. Schumann declarou mais de uma vez em seus escritos que, para ele, a relação entre a música e o fato poetizado é indiscutível; e que a idéia poética é o natural ponto de partida da composição. Com isto ele protegeu a "priori" todos os que se alimentam da poesia da sua música, contra a rígida ortodoxia de certos críticos que consideram a poesia da música um simples fenômeno de literatice.
A crítica universal coloca — e justamente — acima de tudo, no conjunto da produção, de Schumann, as peças para piano solo. Nunca é demais se recomendar a audição contínua dessas obras-primas de inspiração e fatura que se chamam "Carnaval", "Kreisleriana", "Cenas de crianças", "Novelletten", "Estudos Sinfônicos", "Carnaval de Viena", e tantas outras. Mencionamos também o seu único e maravilhoso concerto para piano e orquestra, em lá menor, op. 54. Mas é preciso
não esquecer as Sonatas para piano, op. 11, op. 14, op. 22, além das pessoalíssimas Fantasias, op. 12 e op. 17.
Chamo entretanto a atenção dos amadores para duas extraordinárias obras-primas: o "Quinteto para piano e cordas", em mi bemol, op. 44 e o "Trio para piano, violino e violoncelo", em ré menor, op. 63. Qualquer das duas representa em alto grau o melhor do espírito sc humanniano, qualquer das duas constitui uma síntese das tendências de Schumann.
Também, de grau de importância é a série de "lieder", muitos dos quais sobre poesias de Goethe, Schiller, Heine. A produção de "lieder" de Schumann, se não é tão vasta quanto a de Schubert
aparenta-se à deste pela sua qualidade musical e pela atmosfera, dramática e sonhadora, própria do romantismo alemão.
0 amador interessado não deixa, portanto, de adquirir a imortal série de "lieder" — dezesseis — que se chama "Dichterliebe"— "Os Amores do Poeta". Existe uma gravação excelente em disco, com
Schumann escreveu três quartetos para cordas (Op. 41, ns. 1, 2 e 3), e um quarteto para piano, op. 47. A crítica em geral não põe essas composições no mesmo plano da obra para piano, ou dos "lieder". 0 mesmo se dá com suas quatro sinfonias, que padecem da incompletação a que se referiu anteriormente, isto é, falta de unidade linear.
Confesso entretanto que me agradam esses Quartetos, especialmente o já mencionado com piano. É verdade que a atmosfera dos três Quartetos é particularmente abafada e angustiosa; entramos no clima do Hölderlin,das poesias mais fechadas, ou melhor, de certas novelas de Haffa.
Pessoalmente considero-os muito mais herméticos que os de Beethoven, e muito mais modernos do que românticos. Não são,
evidentemente, obras para o grande público. Mas é possível que eles encerrem a terceira intimidade de Schumann, o Santo dos Santos do seu es pí ri to.
Quanto às sinfonias, todas elas têm belos trechos,
cintilações geniais; ei-las, pela ordem do catálogo: n.1 — em si bemol, op. 38 ("Primavera"); n. 2, em dó maior, op.61; n. 3, em mi bemol, op.97 ("Renana"); n. 4, em ré menor, op. 120. Se querem saber, minhas
preferências inclinam-se para a n. 3: parece-me a mais orgânica de todas.
(0 cronista dirige-se à eletrola e faz passar os discos do QUINTETO EM MI BEMOL, op. 44. de Schumann, na execução do Quarteto Busch, com Rudolf Serkin ao piano).
FORMAÇÃO DE DISCOTECA