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2 CONTRACPÇÃO E ESTERILIZAÇÃO HUMANA: CONSIDERAÇÕES À LUZ

2.1 Dignidade humana, sexualidade e direito à contracepção

A dignidade humana é um dos fundamentos da nossa Constituição Federal e está protegida por ela, reconhecida sua existência e eminência, é valor supremo da ordem jurídica. A dignidade é um dos princípios gerais do direito, não estando posta somente na Constituição de 1988, como nas muitas doutrinas jurisdicionais por ser um dos conceitos que estrutura o ordenamento (SILVA, 1998).

Posto, então, este princípio em nossa Constituição, deixa de ser apenas um fundamento da ordem jurídica, mas igualmente da ordem social e cultural, tendo sua natureza de valor supremo “que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida” (SILVA, 1988, p. 92).

O princípio da dignidade da pessoa humana é muito discutido, por ser defensor dos “criminosos”, ocorre que, a dignidade não é um atributo intrínseco do comportamento da

pessoa. Esse fundamento do Estado Democrático de Direito é direito fundamental e não pode se apartar da ordem jurídica tendo em vista o comportamento humano (SILVA, 1998). Nesse sentido:

A dignidade acompanha o homem até sua morte, por ser essência da natureza humana, é que ela não admite discriminação alguma e não estará assegurada se o indivíduo é humilhado, discriminado, perseguido ou depreciado, pois, como declarou o Tribunal Constitucional da República Federal da Alemanha, “à norma da dignidade da pessoa humana subjaz a concepção da pessoa coo um ser ético-espiritual que aspira a determinar-se e a desenvolver-se a si mesma em liberdade”. Aliás, Kant já afirmava que a autonomia (liberdade) é o princípio da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional, considerada por ele um valor incondicionado, incomparável, que traduz a palavra respeito, única que fornece a expressão conveniente da estima que um ser racional deve fazer dela (SILVA, 1998, p. 93).

O reconhecimento da dignidade humana resulta-se da “evolução do pensamento humano a respeito do que significa este ser humano e de que é a compreensão do que é ser pessoa e de quais os valores que lhe são inerentes” (SARLET, 2007, p. 362). Assim, não há como desconhecer a proteção a promoção da dignidade da pessoa no Direito.

Nessa perspectiva, Jürgen Habermas apud Sarlet (2007, p. 371-372) refere:

[...] considerando que a dignidade da pessoa, numa acepção rigorosamente moral e jurídica, encontra-se vinculada à simetria das relações humanas, de tal sorte que a sua intangibilidade (o grifo é do autor) resulta justamente das relações interpessoais marcadas pela recíproca consideração e respeito, de tal sorte que apenas no âmbito do espaço público da comunidade da linguagem, o ser natural se torna indivíduo e pessoa dotada de racionalidade. Assim, como bem destaca Hasso Hofmann, a dignidade necessariamente deve ser compreendida sob perspectiva relacional e comunicativa, constituindo uma categoria da co-humanidade de cada indivíduo.

Quanto à dignidade humana referente à sexualidade, em nosso ordenamento jurídico, “a pretexto de dar proteção à sexualidade”, por muito tempo, foram mantidos dispositivos com o teor “mulher honesta” em uma concepção ultrapassada de dominação masculina (TORRES, 2011). Nessa continuidade:

[...] a edição da Lei n. 11.106/2005, para que alguém fosse condenado pelo crime de rapto (Código Penal, artigo 219. Raptar mulher honesta,

mediante violência, grave ameaça, para fim libidinoso: Pena – reclusão, de dois a quatro anos), mesmo havendo violência ou grave ameaça, era preciso demonstrar que a mulher raptada era honesta (TORRES, 2011).

Os padrões eram rigorosos, a expressão sobre a sexualidade feminina não podia ser exposta, sujeitando-as ao um controle absoluto, “a virgindade da mulher era considerada como um bem ou um valor, na sua dimensão jurídica e social” (TORRES, 2011).

[...] apesar da extinção desses dispositivos androcêntricos, revogados em 2005, o sistema penal brasileiro continuou convivendo com a ultrapassada concepção de que a sexualidade deveria ser controlada por uma pauta moral de comportamento, segundo padrões ditados pela ideologia patriarcal. Assim, os delitos contra a liberdade sexual continuaram inseridos no capítulo dos crimes contra os costumes. E foi somente no final da primeira década do século XXI, com a aprovação da Lei n. 12.015, de 7 de agosto de 2009, que a sexualidade abandonou a antiga e patriarcal concepção de crimes contra os costumes e passou a cuidar da proteção da sexualidade no âmbito da dignidade sexual (TORRES, 2011).

Com efeito, a dignidade da pessoa humana é reconhecida em nossa Constituição como “princípio fundamental e norteador de todo o sistema jurídico, político e social do país”. A sexualidade e a plena vivência de sua saúde sexual fazem parte do seu humano, sendo digna de respeito e reconhecimento pela sociedade brasileira e apesar de muitos desafios “o Brasil, têm o dever de proteger tais direitos” (TORRES, 2011).

A sexualidade, como direito e valor inerente à dignidade humana passou a ser discutida no momento em que se passou a reconhecer o direito sexual da mulher. “A Primeira Conferência Internacional de Direitos Humanos (Teerã, 1968) reconheceu a importância dos direitos humanos da mulher” (RIOS, 2006).

Em 1993, a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, declarou que os direitos humanos das mulheres são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos, sendo dever sua participação em igualdade de condições sociais e a erradicação de todas as formas de discriminação baseadas no sexo e d todas as formas de violência contra a mulher (RIOS, 2006).

Em 1994, na Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento (Cairo), discutiu-se a faculdade de “desfrutar de uma vida sexual satisfatória e sem riscos”. Na mencionada conferência, foi verificada também a importância de relações de gênero de uma

forma mais igualitária, desprendido de discriminação e violências (VENTURA apud RIOS, 2006).

É de ressaltar que (1) a sexualidade foi abordada nos instrumentos internacionais a partir da legítima e necessária preocupação com a situação da mulher, (2) que essa preocupação engendrou, a parir do espectro dos direitos reprodutivos, a noção de direitos sexuais e que, todavia, (3) essa perspectiva necessita ser alargada para o desenvolvimento de um direito da sexualidade. Tudo isso sem esquecer que, mesmo na Conferência de Pequim, onde a idéia de direitos sexuais começa a aparecer de modo mais claro, ela ainda está associada muito proximamente à de saúde sexual (RIOS, 2006). (grifei)

A questão da sexualidade da mulher não foi somente discutida em conferências mundiais, mas também foi posta em questão por pessoas públicas que atuam em diversas áreas. Um exemplo disso é o ícone Madonna que relata sobre a realidade de sua vida como mulher forte e expressiva:

Eu me inspirei, é claro, em Debbie Harry e Chrissie Hynde e Aretha Franklin, mas meu muso verdadeiro era David Bowie. Ele personificava o espírito masculino e feminino e isso me agradava. Ele me fez pensar que não havia regras. Mas eu estava errada. Não há regras se você é um garoto. Há regras se você é uma garota. Se você é uma garota, você tem que jogar o jogo. Você tem permissão para ser bonita, fofa e sexy. Mas não pareça muito esperta. Não haja como você tivesse uma opinião que vá contra o status quo. Você pode ser objetificada pelos homens e pode se vestir como uma puta, mas não assuma e se orgulhe da puta em você. E não, eu repito, não compartilhe suas próprias fantasias sexuais com o mundo. Seja o que homens querem que você seja, e mais importante, seja alguém com quem as mulheres se sintam confortáveis por você estar perto de outros homens. E por fim, não envelheça. Porque envelhecer é um pecado. Você vai ser criticada e humilhada e definitivamente não tocará nas rádios (CICCONE, 2016).

O direito a sexualidade, no âmbito jurídico chega por meio de casos práticos, demandas específicas que representam lutas e reivindicações, especialmente no que diz respeito a contraceptivos e esterilização. Tais discussões mostram-se necessárias a respeito da expressão sexual, sendo que esta deve ser compreendida de uma forma ampla, abraçando todas as orientações sexuais (RIOS, 2006).

Como já mencionado, as várias e distintas demandas dizem respeito a todas as orientações sexuais, sejam elas, homossexual, heterossexual, bissexual, transexualidade e travestismo. Portanto, deve-se fixar compreensão desses direitos, especialmente por já serem

reconhecidos constitucionalmente “em um texto jurídico fundamental aberto a novas realidades históricas, têm a vocação de proteger a maior gama possível de situações” (RIOS, 2006, s.p.).

Dispositivos constitucionais dessa espécie fornecem bases sólidas e terreno fértil para o reconhecimento dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, na perspectiva aqui defendida. Todavia, para sua concretização e efetividade, esses dispositivos fundamentais, nacionais e internacionais, precisam ser objeto de estudo e sistematização, demandando reflexão teórica na academia e compromisso por parte dos operadores do direito (RIOS, 2006, s.p.).

Nesse contexto, pode-se dizer que a ideia de direito a sexualidade está baseada e difundida em uma abordagem radicada nos princípios da igualdade, da liberdade e à dignidade, podendo, dessa forma, enfrentar desafios teóricos e práticos que as várias orientações produzem nas sociedades contemporâneas. Nota-se que “não se trata de dissolver qualquer rol de direitos sexuais [...] objetiva-se, isso sim, alargar sua compreensão e aprofundar sua compreensão por meio de referenciais principiológicos mais coerentes e sistematizados” (RIOS, 2006).

No que se refere aos direitos à contracepção, atualmente, a nossa legislação não permite interferência do Estado em decisões que envolvem a quantidade de filhos que um casal deseja possuir. Contudo, o exercício de sua prole é vigiado continuamente pelo Estado, sendo que a este é permitido somente interver de modo indireto, por meio de ações preventivas, métodos educacionais e contraceptivos (CASTANHO, 2014).

O Estado passa a intervir nos processos populacionais de natalidade, mortalidade e longevidade e, de forma imanente, passa a normalizar a conduta social, prevendo e regulando tanto os comportamentos individuais (pelo exercício do poder disciplinar) quanto os comportamentos coletivos (pelo exercício do biopoder). O objetivo dessas intervenções está no intuito de “encaixar” a todos em curvas normais estatisticamente pré-estabelecidas, sempre em nome de preservar e garantir a vida. (WEBER, 2006, p. 149, apud CASTANHO, 2014, p. 31)

Evidências históricas demonstram que as famílias de padrões mais elevados apresentaram um declínio no número de filhos por casal (CASTANHO, 2014). Será que esses dados nos mostram que famílias com uma renda maior evita crianças? Ou mostra-nos que há falta preparação, educação, informação e auxílio em áreas com população menos favorecida?

Existem vários fatores relacionados ao controle de natalidade, fatores que envolvem a recursos naturais, como a baixa produção de alimentos comparada ao crescimento populacional ou até mesmo o empobrecimento da população (CASTANHO, 2014).

Ao discutir tal questão, Castanho (2014) observa que o aspecto central que envolve os padrões de natalidade não é quantidade de contraceptivos disponíveis, nem a utilização de métodos coercitivos a fim de que as famílias diminuam o número de filhos, mas o aspecto cultural e educacional que permita discutir com a população sobre as consequências que um número elevado de filhos pode produzir, em especial quanto a condições de miserabilidade e precariedade de educação e saúde (CASTANHO, 2014).

É importante que os futuros pais tenham consciência e preocupem-se com a condição de subsistência de sua prole, realizando um planejamento baseado em um comprometimento de seus membros, incluindo pai e/ou mãe.

Apesar dos problemas acima citados, quanto ao crescimento populacional, havia uma época em que o Estado tinha grande interesse em povoar o país com intuito de desenvolvê-lo, assim estimulavam a ultra população (CASTANHO, 2014).

A ordem institucional inaugurada com a revolução de 1930 incluiu, dentre suas inovações legais, dispositivos que podem ser considerados, pelo menos em primeira aproximação, “pró-natalistas” [...]. As preocupações com a formação eugênica da “raça brasileira” fizeram também presentes, como pode ser constatado no texto do artigo 138 da Carta Constitucional de 1934¹². (FONSECA SOBRINHO, 1993, p. 67-68, apud CASTANHO, 2014, p. 47).

Apesar de a igreja posicionar-se de forma contraria a métodos anticoncepcionais artificias, em geral os cristãos não são contrários ao planejamento familiar, pois a igreja observa a evolução do comportamento social, verificando “o impacto que representaria o aumento populacional no mundo, e suas repercussões na vida familiar, especialmente nas camadas mais necessitadas.” (CASTANHO, 2014, p. 51).

Em 1983, após décadas de indefinição quanto ao assunto, o governo brasileiro resolveu, pela primeira vez, incluir o “Planejamento Familiar” como um dos itens da pauta de atividades de assistência à saúde, sob sua responsabilidade. Isto se deu através da criação do PAISM – Programa de

Assistência Integral à Saúde da Mulher, ligado ao Ministério da Saúde, que assumiu, entre outras, a tarefa de oferecer, na rede de serviços públicos de saúde, informações e meios contraceptivos às mulheres e aos casais que os demandassem. (FONSECA SOBRINHO, 1993, p. 21, apud CASTANHO, 2014, p. 52).

Nota-se que direito a sexualidade e a contracepção estão sendo reconhecidos cada vez mais, assim vê-se a importância desses direitos, principalmente para uma melhor estruturação familiar.