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Planejamento familiar e a interrupção voluntária da gestação: a questão do aborto

2 CONTRACPÇÃO E ESTERILIZAÇÃO HUMANA: CONSIDERAÇÕES À LUZ

2.4 Planejamento familiar e a interrupção voluntária da gestação: a questão do aborto

Como anteriormente referido, a Lei n. º 9.263/96 nos traz um novo conceito de planejamento familiar buscando proporcionar auxílio à saúde das pessoas envolvidas no núcleo familiar principalmente no que se refere à esterilização cirúrgica (DA ROCHA, 2005).

Em se tratando do campo da saúde, o aborto vem sendo estudado com mais profundidade, ocupando um lugar reconhecido como problema da saúde pública, uma vez que, no Brasil, estimativas indicam expressivo número de abortamentos clandestinos. O assunto tem sido buscado em diálogos em muitos movimentos sociais (MENEZES; AQUINO, 2009).

O estudo sobre o aborto tem potencial de articular questões centrais e relevantes ao campo da saúde reprodutiva, desde as relações de gênero e os processos de decisão na esfera reprodutiva até a provisão de assistência e a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos (MENEZES; AQUINO, 2009, p. 193).

A magnitude do aborto no Brasil abrange vários aspectos, sendo a religião a principal, o que implica cuidado ao se abordar o tema (MENEZES; AQUINO, 2009). Entretanto, o aborto não é apenas um crime, ou um pecado, mas um problema sério de saúde pública.

A mortalidade em face do aborto vem sido registrada em pesquisas desde os anos 80, nessas pesquisas elas aparecem como a terceira causa que mais promove morte em mulheres em virtude de complicações infecciosas ou hemorrágicas (MENEZES; AQUINO, 2009).

A única pesquisa de abrangência nacional realizada nas capitais brasileiras e no Distrito Federal em 2002, evidenciou que 11,4% dos óbitos maternos foram devidos a complicações de abortos. Entretanto, proporções mais elevadas foram registradas em investigações locais, destacando-se Recife (Pernambuco) – onde, em meados dos anos 1990, o aborto representava uma das primeiras causas desses óbitos – e Salvador – onde o aborto manteve-se em 1993 e em 1998 como a principal causa isolada, responsável respectivamente por 36,4% e 22,5% dos óbitos maternos. Recentemente, em Porto Alegre, constatou-se que infecções por aborto, juntamente com distúrbios hipertensivos da gravidez, foram as principais causas de morte materna, cada uma com 15% dos óbitos (MENEZES; AQUINO, 2009, p. 195-196).

Ainda, de acordo com a pesquisa, as mortes são mais frequentes em adolescentes, hipossuficientes e negras, quando estas não cometem suicídio na gravidez. “Nas entrevistas

com familiares, a descoberta da gravidez e a tentativa de aborto situam-se no centro das circunstâncias que levaram à sua morte [...]” (MENEZES; AQUINO, 2009, p. 196).

Nessa mesma linha, se percebe que além dos problemas já referidos há também questões de natureza psicológica, uma vez que as mulheres que optam por abortar precisam passar, sem apoio, por dificuldades emocionais extremas referente a interrupção da gravidez.

Em outros países não há evidências de efeitos importantes do aborto sobre a saúde mental do ponto de vista populacional. Onde sua prática é crime, como no Brasil, a investigação das repercussões psíquicas do aborto merece particular atenção. Para muitas mulheres, o longo percurso até a obtenção dos meios para abortar, a falta de atenção humanizada nos serviços de saúde, a divulgação da prisão de pacientes quando ainda internadas tornam dramáticas suas vivências, merecendo estudos que enfoquem a violência institucional e suas repercussões sobre a saúde dessas mulheres (MENEZES; AQUINO, 2009, p. 197).

“O perfil das mulheres que recorrem ao aborto – jovens, não-unidas, com pouca escolaridade, estudantes ou trabalhadoras domésticas [...]” (MENEZES; AQUINO, 2009, p. 197). O perfil dessas mulheres as torna ainda mais vulneráveis e sem plenas condições de tomar uma decisão, pois na maioria das vezes, tomam decisões baseadas no desespero e não e pensam nas consequências de suas atitudes.

Apesar das pesquisas apontarem que a maioria das mulheres que abortam é hipossuficiente, é sabido que não são somente essas pessoas que utilizam dessa pratica para “resolver um problema indesejado”. A prática do aborto ocorre em todas as classes sociais, a única diferença é que o risco de vida é muito menor, tendo em vista o suporte que as mulheres com maiores aquisições financeiras podem pagar.

Quanto à interrupção voluntária da gestação, esta não é considerada como uma forma adequada no que se refere ao planejamento familiar, porém um crime. O aborto provocado é considerado crime e está posto na parte especial do Código Penal, contendo algumas exceções que estão tipificadas no artigo 128 do mesmo diploma legal (DA ROCHA, 2005).

Aborto necessário (inciso I): Também conhecido por terapêutico, é o aborto praticado quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. São, pois, seus requisitos: 1. Que corra perigo à vida da gestante. 2. Inexistência de outro meio para salvar sua vida. No caso do inciso I, é dispensável a concordância da gestante ou de seu representante legal, se o perigo de vida

for iminente [...] Aborto sentimental (inciso II): Trata-se do aborto também denominado ético ou humanitário, levando-se em consideração a saúde psíquica da mãe decorrente do trauma causado pelo crime sexual de que foi vítima. Exige-se, para que seja lícito: 1. Gravidez consequente de estupro. Inclui tanto o estupro praticado com violência real como presumida. 2. Prévio consentimento da gestante ou de seu representante legal (DELMANTO, 2016, p. 1107-1109)

Além dos casos do artigo 128 do Código Penal, há o aborto em caso de anencefalia, pois no ano de 2012 o STF julgou procedente o pedido realizado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, a fim de declarar constitucional a “interrupção da gravidez nos casos de gestação de feto anencéfalo” (GONÇALVES, 2016, p. 397).

Ressalvou o STF no julgamento que o “anecéfalo, assim como o morto cerebral, não deteria atividade cortical, de modo que se mostraria deficiente de forma grave no plano neurológico, dado que lhe faltariam não somente os fenômenos da vida psíquica, mas também a sensibilidade, a mobilidade, a integração de quase todas as funções corpóreas. Portanto, o feto anencefálico não desfrutaria de nenhuma função superior do sistema nervoso central ‘responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade’, (...) essa malformação seria doença congênita letal, pois não haveria possibilidade de desenvolvimento de massa encefálica em momento posterior, pelo que inexistiria, diante desse diagnóstico, presunção de vida extrauterina, até porque seria consenso na medicina que o falecimento diagnosticar-se-ia pela morte cerebral” (GONÇALVES, 2016, p. 397).

Ocorre que, existe outra face do planejamento familiar em relação ao aborto, que muitos não percebem. Com todo o exposto até aqui, percebeu-se que gerar um filho não é uma decisão que cabe aos pais, mas há todo um contexto, princípios fundamentais e normas de proteção à criança e ao adolescente que precisam ser observados antes de se pensar em ter uma criança (CASTANHO, 2014).

As responsabilidades dos pais em relação aos filhos vão muito além do seu livre arbítrio, pois nas normas hoje existentes está expresso que deve haver uma promoção de vida e desenvolvimento humano digno às crianças e aos adolescentes (CASTANHO, 2014).

[...] a filiação não depende da fatalidade, mas da oferta, dos pais aos filhos, de imagens identificatórias perfectíveis. [...] A relação entre o filho e os pais não é mais designada pela hereditariedade e a transmissão, mas em sua reestruturação mais ou menos boa, e sua liberação mais ou menos vitoriosa com relação ao módulo familiar (DONZELOT, 1985, p. 195, apud CASTANHO, 2014, p. 118).

Nessa mesma linha de pensamento, o amor dos pais por sua prole também não é suficiente para garantir a eles uma proteção integral e uma vida digna, há uma necessidade de uma série valores, morais e sociais ou quem sabe religiosos que são poderosos tanto quanto o desejo de ser mãe ou pai (BADINTER, 1985, apud CASTANHO, 2014).

Deste modo, frisa-se que a decisão de gerar não poderá estar baseada unicamente na vontade ou no risco, mas também na razão, vez que caberá principalmente aos pais a responsabilidade de oferecer ao futuro filho uma vida digna. [...] A ausência de planejamento familiar – seja em razão da ação inconsequente dos indivíduos ou da omissão estatal – pode ocasionar o nascimento de crianças que não terão qualquer condição de se desenvolver dignamente (CASTANHO, 2014, p. 120-121).

Quando uma criança perde ou não tem proteção da família, ela se torna vítima da sociedade, o Estado não consegue dar conta de todas as crianças sem atenção em um país como o Brasil e muitas vezes elas acabam sendo maltratadas, enfrentam miséria, violência, analfabetismo e abandono (CASTANHO, 2014).

Quando a situação de vitimização em que a criança se encontra tornar impraticável a convivência com sua família de origem, a Lei 8.069 de 1990 prevê a possibilidade de sua colocação em família substituta a fim de minimizar seu sofrimento e ressocializar a criança em um novo ambiente familiar, porém, esta medida nem sempre é capaz de solucionar definitivamente o problema: Sem dúvida, a família substituta pode oferecer um ambiente que se aproxima mais da vivência familiar; porém, deve-se pensar que tipo de vivência familiar será oportunizada, uma vez que não se trata de qualquer vivência, pois o fato de ser um ambiente familiar por si só não garante o que é básico e necessário ao sujeito (ARPINI, 2003, p. 143, apud CASTANHO, 2014, p. 123) (grifo do autor).

As situações de vitimização de crianças e adolescentes vão além dos fatos acima relatados, portanto, a responsabilização do Estado na promoção de educação e métodos para um efetivo planejamento familiar aos novos núcleos familiares é deveras importante, principalmente na questão reprodutiva.

Por fim, o que se busca é desvinculação da questão do aborto a religião, há necessidade de uma postura laica do Estado, com políticas públicas para o efetivo bem a saúde da mulher. O aborto é um problema social e o direito à vida não deve ser alegado apenas em defesa do feto, porém, também, ao ser humano que é obrigado a passar por uma situação indesejável e psicologicamente perturbadora por conta de um Estado que se prende por força da religião e da mídia.

2.5 Planejamento familiar e igualdade de gênero: o papel dos homens no processo de