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1 FUNDAMENTOS E MÉTODOS: ORGANIZANDO A PESQUISA

1.3 FUNDAMENTOS E PERSPECTIVAS

1.3.1 Dimensão epistemológica

A dimensão epistemológica será embasada por Fleck (2010). Ludwik Fleck (1896 - 1961) foi um médico polonês, que nasceu na cidade de Lwow, hoje pertencente à Ucrânia. Após conclusão do curso de medicina, ele trabalhou como clínico geral, mais especificamente após 1920, desenvolveu várias pesquisas na área de microbiologia e bioquímica, trabalhando em laboratórios (DELIZOICOV et al., 2002). Fleck realizou uma série de inovadoras reflexões, de caráter filosófico e sociológico, acerca da história da ciência e da natureza da atividade científica. ―Dedicava sempre algumas horas de seu dia para ler sobre Filosofia, Sociologia e História da Ciência‖. (DA ROS, 2000, p.03). Participava ativamente da Sociedade dos Amigos da História da Medicina (filiada à Sociedade Polonesa de Filosofia e História da Medicina), onde apresentou seus primeiros textos sobre Epistemologia escritos a partir de 1926 (DA ROS, 2000). Seus primeiros textos foram publicados na Revista Arquivos da História e Filosofia da Medicina (DA ROS, 2000).

Na descrição da análise da trajetória histórica do conceito de sífilis (FLECK, 2010), definiu suas principais categorias: coletivo e estilo de pensamento. Sendo o coletivo de pensamento,a unidade social da comunidade de cientistas de um campo determinado do saber, e estilo de pensamento,o conjunto de pressuposições sobre as quais o

coletivo de pensamento constrói seu edifício teórico. Dessa forma, o autor sustentou o argumento de que o saber nunca é possível em si mesmo, mas sob determinadas condições e suposições sobre o objeto as quais não podem tornar-se compreensíveis a priori, mas como produto histórico e sociológico da atuação de um coletivo de pensamento (LORENZETTI, MUENCHEN e SLONGO, 2013).

Hoje podemos verificar a existência de especialistas em Fleck, na Inglaterra, na França, Alemanha, Itália, Holanda, Israel, EUA, com análises diferenciadas da visão fleckiana de construção do conhecimento, e outros, utilizando suas bases epistemológicas para desenvolverem pesquisas (DELIZOICOV et al., 2002). Aqui no Brasil, vários são os trabalhos desenvolvidos utilizando as ideias de Fleck em diversas áreas do conhecimento. Como não temos o objetivo de apresentar um levantamento bibliográfico, citamos apenas alguns exemplos, além dos que já foram ou serão citados ao longo deste trabalho, para elucidar esta questão: Delizoicov et al. (2002) destacam o trabalho desenvolvido no grupo de pesquisa do Programa de Pós- graduação em Educação da Universidade de Santa Catarina, onde tem estudado sistematicamente a obra mais importante do autor a partir das versões em alemão, inglês e espanhol. Além disso, argumentam sobre o potencial do modelo de Fleck como referencial para a pesquisa em ensino nas áreas de ciências naturais e da saúde.

Delizoicov (2004) utiliza as categorias fleckianas para caracterizar a área de ensino de ciências como um campo que se organiza em coletivos de pensamento que investigam problemas relativos à disseminação sistematizada de conhecimentos científicos. Nesse trabalho, é discutido como esses coletivos estabelecem comunicações (intra e intercoletivos) em variados graus, permitindo assim a constituição da pesquisa em ensino de ciências no Brasil como um campo social de produção de conhecimento.

Scheid, Ferrari e Delizoicov (2005) utilizam a epistemologia deste autor na interpretação de relatos sobre a evolução do conhecimento científico que culminou na proposição do modelo de dupla hélice para a molécula de DNA e sua aceitação pela comunidade científica. Eles defendem que esta interpretação ―permite explorar uma visão mais adequada da produção do conhecimento científico, contribuindo para a melhoria da educação científica de professores de biologia e de ciências‖ (SCHEID; FERRARI; DELIZOICOV, 2005). Gonçalves, Marques e Delizoicov (2007) sinalizam possibilidades para a promoção do desenvolvimento profissional dos formadores de professores de Química, de modo que sua ação docente possa favorecer

uma formação inicial de professores em consonância com as discussões contemporâneas sobre essa área, tal como aquelas presentes nas Diretrizes Curriculares para a Licenciatura em Química, servindo de grande motivador para realização deste trabalho.

Queirós e Nardi (2008) apresentam um levantamento de trabalhos específicos da área de Ensino de Ciências, que utilizam a epistemologia de Ludwik Fleck como referencial teórico, a partir de periódicos nacionais da área de Ensino de Ciências e de atas do Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (ENPEC) editadas no período de 2002 a 2007. Leonel, Silva e Arthury (2009) utilizam as ideias deste autor e de Gerald Holton para analisar a influência das concepções dos professores e dos alunos acerca de alguns conceitos científicos durante o ensino de ciências, mais especificamente, em uma aula sobre Cosmologia.

Condé (2012) organiza, depois da obra ―Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico‖, o primeiro livro em português que analisa a obra deste pensador polonês, constituído por sete capítulos escritos por especialistas brasileiros e estrangeiros, mostrando assim o grande interesse da comunidade acadêmica nacional e internacional pelo pensamento do autor. Lorenzetti, Muenchen e Slongo (2013), apresentam um estudo que investigou a recepção da epistemologia de Ludwik Fleck pela pesquisa em Educação em Ciências. O estudo analisou teses e dissertações produzidas no período de 1995 a 2010, em programas nacionais de pós-graduação, apontando que, na década de 1990, surgiram os primeiros trabalhos, tendo maior concentração de trabalhos em instituições do Sul do Brasil, notadamente na UFSC, especialmente na área da Educação em Ciências, estando o maior volume de estudos concentrados nos eixos ―emergência de um fato científico‖, ―formação de professores‖ e ―análise da produção acadêmica‖. Além disso, entre os trabalhos analisados, destacam a significativa contribuição das categorias epistemológicas ―estilo de pensamento‖, ―coletivo de pensamento‖ e ―circulação intra e intercoletiva de ideias‖ no processo de produção do conhecimento.

Assim como Queirós e Nardi (2009), acreditamos que as categorias epistemológicas fleckianas contribuem também no processo de formação docente, ―em que podemos considerar vários grupos de professores como coletivos de pensamento diferentes influenciados por estilos de pensamento distintos‖. Nesse sentido, busquei suporte nas ideias do epistemólogo Ludwik Fleck (2010) para planejar algumas atividades que promovessem interações ao longo desta formação, enfocando a percepção e o enfrentamento de complicações, enquanto

consciência de um problema que ainda não foi resolvido e/ou ―associado a limitações do estilo de pensamento para enfrentar determinado problema‖ Gonçalves, Marques e Delizoicov (2007, grifo nosso), com vistas à ampliação e/ou transformação de Estilos de Pensamento e à formação de uma rede de professores que possibilite aos professores saírem do isolamento.

Para Fleck (2010), a produção de novos conhecimentos ocorre no enfrentamento dessas complicações. Ao abordar problemas históricos relacionados com a gênese e o desenvolvimento de um fato científico, mais especificamente o fato da sífilis, o autor faz referência à categoria complicação, como problema enfrentado, cuja busca por solução implica na gênese de novos conhecimentos e práticas. Ele argumenta que, de modo geral, antes da localização e da formulação desse tipo de problema, bem como da busca por solucioná-los, não se encontram registros históricos de conhecimentos e práticas adotados por grupos de especialistas cuja área de pesquisa tem relação com esses problemas.

Ou seja, tais saberes e práticas — que muito embora, num determinado período histórico, não configurem referências fundantes adotadas pelos grupos — passam a ser sistemática e frequentemente empregados. Argumenta ainda que, em função da solução dessas complicações, conhecimentos e práticas historicamente compartilhados se transformam em outros, e em novos, que passam a constituir referências fundantes para aqueles grupos de especialistas (FLECK, 2010) que os adotam a partir da solução das complicações (HALMENSCHLAGER, 2014, p. 30).

Na Figura 2, a seguir, apresentamos uma síntese da Epistemologia de Fleck, em que o estilo de pensamento é caracterizado pelas condições sociais, culturais de uma época, enquanto o coletivo de pensamento seria constituído por um coletivo de cientistas, nesta pesquisa por professores, que compartilham o ideal de um estilo de pensamento. É o estilo de pensamento que mediatiza a relação cognoscitiva entre o cognoscente e o objeto a conhecer. Nessa relação, estão presentes as conexões ativas e passivas presentes uma na outra, engendrando-se e constituindo-se, sendo que as conexões ativas são pressupostos históricos e socioculturais do sujeito, ou seja, suas concepções, pressupostos e crenças, que não são inatas, mas estilizadas

pelo coletivo de pensamento. Já as conexões passivas são os resultados que caracterizam o que se percebe como realidade objetiva.

Figura 2 - Representação sintética da Epistemologia de Ludwik Fleck

Fonte: Elaborado pelo Autor (2015)

Os coletivos de pensamento dividem-se em círculos esotéricos e exotéricos. O primeiro formado por especialistas que já dominam os códigos e procedimentos relacionados ao estilo de pensamento, e o círculo exotérico, em que se situa o que Fleck classifica como ―leigos instruídos‖. No entanto, esses círculos possuem significados relativos uma vez que o cientista pode participar de mais do que um coletivo de pensamento. Dessa forma, um membro participante do círculo esotérico de um coletivo pode integrar, concomitantemente, o círculo exotérico de outro coletivo. A interação entre os círculos se dá através da circulação intercoletivas e intracoletivas de ideias que, como consequência, pode estabelecer a instauração, extensão e transformação de um estilo de pensamento. Ressalto que, para que haja transformação do Estilo de Pensamento, são necessárias duas condições: observação de uma complicação pelo coletivo – problema não resolvido por um determinado coletivo; e circulação intercoletiva de ideias – interação entre distintos coletivos.

Com a reconstrução histórica do conceito de sífilis, Fleck (2010) observou uma dinâmica que se repete na ―marcha‖ do pensamento, fazendo com que o modo de ver, pensar e agir, ao mesmo tempo em que resiste, sofre transformações.

A essa dinâmica denominou de instauração, extensão e transformação dos estilos de pensamento. Argumentou que as teorias científicas vivem, primeiro, uma fase clássica, quando todas as ideias estão em conformidade com o pensamento vigente ou com a teoria dominante. Nessa fase, o estilo de pensamento acha-se devidamente instaurado, e o esforço do coletivo de pensamento é no sentido de desenvolver o pensamento dominante, fase denominada por Fleck (1986, 2010) de extensão do estilo de pensamento. Nesse momento, verifica-se uma ampliação do rol de problemas a investigar. Contudo, o autor aponta que, apesar da tendência à persistência, há um momento em que as ―complicações‖ aparecem, ou seja, surgem as exceções, os problemas que o estilo de pensamento não consegue resolver. Assim, instala-se um período de instabilidade e controvérsias, intensificando o debate intra e intercoletivos de pensamento. Significativas mudanças marcam esse período, as quais determinam o que Fleck (1986; 2010) denomina de transformação do estilo de pensamento e que culmina com a emergência de um novo modo de pensar e agir, isto é, um novo estilo de pensamento (LORENZETTI; MUENCHEN; SLONGO, 2013).

Quando pensamos na formação continuada de professores de Física no estado de Santa Catarina, percebemos, no mínimo, quatro grupos ou coletivos de professores: os que já possuem a habilitação, no caso licenciatura em Física ou outra licenciatura, mas com complementação em Física, os que estão em fase de formação, cursando o curso de licenciatura em Física, os que possuem formação inicial em outra área (técnica ou bacharelado), e os que ainda não passaram por nenhuma formação inicial. Percorrendo a história da educação, percebemos a presença de algumas correntes/movimentos que podem se

configurar como estilos de pensamentos em distintas épocas e em diferentes regiões. Algumas sofreram mudanças, adaptações ou transformações, algumas foram esquecidas e outras mais tradicionais persistem ao tempo, mesmo existindo esforço de alguns para superá-las.

A partir das categorias epistemológicas Estilo de Pensamento, Coletivo de Pensamento, Circulações Intra e Intercoletivo e Complicações podemos encarar os professores de física como um coletivo, que pode ser formado por distintos grupos que se relacionam com outros coletivos (professores de outras disciplinas, alunos, pesquisadores e até mesmo professores de física que não comungam do mesmo estilo de pensamento) e ainda que os professores que fazem parte de um mesmo grupo podem compartilhar conhecimentos e práticas e que circulações promovidas entre professores de diferentes grupo podem levar à expansão ou transformação de estilos de pensamento.

As relações históricas e estilísticas dentro do saber comprovam a existência de uma interação entre o objeto e o processo do conhecimento: algo já conhecido influencia a maneira do conhecimento novo; o processo do conhecimento amplia, renova e refresca o sentido do conhecido (FLECK, 2010, p. 81).

Acreditamos que a interação entre professores de diferentes realidades, com outras experiências, entre diferentes coletivos, possibilita uma releitura da prática, a percepção de exceções ou complicações e a instauração, extensão ou transformação de estilos de pensamentos. Para Fleck, o estilo de pensamento deve ser alterado para que a descoberta do novo seja possível. ―Nenhuma proposição pode ser construída apenas com base em acoplamentos passivos, há sempre a presença de algo ativo, ou, para usar o termo pouco indicado, algo subjetivo‖ (FLECK, 2010, p. 93).

Acreditamos também que as TDIC têm grande potencial para que o professor saia do isolamento e perceba-se produtor de conhecimento, como também integrante de um coletivo de pensamento. Além disso, as circulações potencializadas por tais recursos podem fazer com que se perceba a existência de outros coletivos e a existência de diferentes estilos de pensamento ao longo da história, encorajando mudanças e renovações na prática docente, bem como instrumentalizando o olhar para perceber e enfrentar as complicações presentes na prática cotidiana.