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3 O PERCURSO

4.5 Dinâmica molecular

Como apresentado ao longo da tese, nas condições das possibilidades da época, os sujeitos buscaram agenciar a construção dos paradigmas almejados cujos resultados, às vezes, não foram imediatos e continuam no processo de acontecer, ou encontraram obstáculos no

caminho, o que fez com que os itinerários mudassem. Isto valeria tanto para as experiências acontecidas no século XIX como para as experiências da “contracultura”, tanto nos EUA quanto no Brasil e outras partes do mundo. O modelo com o qual estes agenciamentos acontecem parece remeter ao rizoma:

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser,

intermezzo [...] o rizoma é aliança, unicamente

aliança. [...] o rizoma tem como tecido a conjunção "e..e...e..." Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser.

Entre as coisas não designa uma correlação

localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio.

(DELEUZE, GUATTARI, 2000)

Uma particularidade do rizoma, tal como descrito pelos autores, é a transferência de informação no fluxo. Com a finalidade de me referir especificamente ao processo de disseminação da informação, no contexto do rizoma, o denominarei “dinâmica molecular”. Esta figura me apoiará para ilustrar o processo de disseminação da subjetividade e de algumas lógicas que encontrei no campo, que serão apresentadas posteriormente.

Na dinâmica molecular, uma força inicial sobre uma molécula ocasiona sua colisão com outras moléculas, o que gera transferência de energia de uma para outra, produzindo uma sequência de colisões entre as moléculas. Desta maneira a energia se dissemina de forma indefinida, já que, pelo princípio de conservação da energia, esta não se extingue, somente se transforma.

Com essa base, e considerando os desdobramentos e os efeitos das iniciativas de transformação citadas linhas acima, podemos colocar alguns exemplos. Consideraremos as iniciativas de transformação que geraram revoluções moleculares como força inicial do processo. Assim, a energia será transferida a partir das “colisões das moléculas”, estas últimas análogas a eventos que influenciarão posteriores eventos, ou seja, representarão a transferência de energia. Neste processo devemos considerar que todas as moléculas têm sua própria energia, que os

ambientes também influenciam, e podem surgir obstáculos que vão dispersar a energia em direções desconhecidas.

Tomemos as ideias de Charles Fourier como uma iniciativa de transformação no século XIX que impulsou a colisão das partículas, que na sociedade representariam seus leitores, seus discípulos fourieristas e seus projetos. Estes, por sua vez, impactaram outras partículas transmitindo essa energia inicial. Desta maneira, os seguidores de Fourier continuariam dissipando esta informação até conseguir levar o projeto para os EUA e inclusive para o Brasil. Em consequência, na efervescência das ideias do século XIX, estes continuaram o processo (como na comunidade de transcendentalistas Brook Farm). Nesse contexto, no fluxo da transferência, encontramos Thoreau quem com ressalvas, compartilhava estes ideais e os praticava ao seu estilo. Tanto ele quanto o psicólogo B.F. Skinner, cada um à sua maneira, tiveram inspiração nesta época, no século XIX, ou seja, receberam-na e disseminaram-na para o movimento de “contracultura” dos EUA. Assim podemos considerar os efeitos do “alternativo” no século XXI. A partir de eventos históricos, abordo45 a forma como as transformações se disseminaram no longo prazo. Outra forma de ilustrar o anteriormente exposto, num caso que considera alguns obstáculos, seria através da menção do Falanstério do Saí (GALLO, 2002).

De outra forma, a iniciativa de transformação introduzida por Charles Fourier, chega desde Europa ao Brasil, gerando incontáveis efeitos, mas não alcança os resultados planejados. Da mesma forma que no caso anterior, acontece a força inicial, com as ideias de Fourier que encontraram eco, na molécula que representaria Dr. Mure, que tentou implementar o projeto do falanstério. Desta vez houve obstáculos que estimularam os esforços em outras direções, como aconteceu com os colonos que chegaram da França, também receptores das propostas de Fourier, que eventualmente entraram em desacordo com Dr. Mure, gerando a cisão do grupo. Assim, os desentendimentos entre eles representaram obstáculos que não permitiram que o plano inicial fosse concretizado. Os colonos contingentemente, portanto, tomaram outros rumos e Mure continuou com seus projetos pessoais relacionados com a homeopatia. Ou seja, a energia inicial, ante os obstáculos, foi dissipada

45 Nesta figura escolho eventos de maneira arbitrária. Não pretendo abranger

o complexo das situações mencionadas, pois escapam do recorte histórico que utilizei.

por outros caminhos que mantiveram estas ideias circulando em diferentes âmbitos.

Dessa maneira, a partir de acontecimentos, o homeopata teria deixado como legado no Rio de Janeiro mais de 25 dispensários e 50 no resto do império. Formou mais de 500 alunos que praticaram a homeopatia em toda América do sul. Para garantir o tratamento homeopático aos negros fundou a Sociedade Prosperidade e a Confraria São Vicente de Paula. Nas plantações de cana de açúcar, com a introdução de homeopatia como vimos, melhorou a taxa de mortalidade dos escravos negros, de 10% em 1842 para 2% ou 3%46. Ele ainda sistematizou uma farmacopéia homeopática brasileira e deixou no Brasil uma prática homeopática.

A partir deste relato podemos deduzir que as iniciativas de transformação nem sempre terão os efeitos esperados, e muitas vezes sua repercussão no longo prazo será inestimável, em função dos seus desdobramentos num modelo rizomático. Nele a dinâmica molecular pode aparecer como inspiração, projeção ou ressonância, “conectando uma multiplicidade de desejos moleculares” (GUATTARI, 1987, p. 177). Desta maneira estabelece-se “um movimento não necessariamente intencional de disseminação de inform-ação, ou seja, informações que levam à ação. Assim a derivação não é causa ou efeito, mas repercussão do próprio fluxo de compartilhamento” (GROISMAN, 2013, p. 5).

Assim, considero as primeiras comunidades do século XIX nos EUA como evocativas do que Guattari e Rolnik (1996) denominam revoluções moleculares, já que trouxeram consequências que influenciaram a vida dos lugares nos quais se localizaram47. Além de trazer novos colonos para os EUA, sua influência chegou até o movimento de “contracultura”. Esta última, da mesma maneira, constituiu uma revolução molecular de consequências importantes para a vida moderna de ocidente. Desta maneira podemos perceber ligações entre

46 Gallo (2002) cita que esta informação foi proporcionada pela aluna de Mure

Sophie Liet.

47 Podemos deduzir muitos efeitos dessas iniciativas, como as experiências

com a educação e o trabalho; a produção intelectual; como a novela The

Blithedale Romance (1852) escrita por Nathaniel Hawthorne, considerado o

primeiro grande escritor dos EUA, ou o livro Walden ou A vida nos bosques, por Henry Thoreau; a quantidade de visitantes que se mobilizavam para conhecer as comunidades; a circulação de conhecimento que era transmitido e gerado nestes locais; a inclusão de novas religiosidades, entre muitos outros.

eventos aparentemente distantes como a obra de Fourier e as práticas da cultura alternativa, tal como a disseminação da yoga, ou a música de Raul Seixas.

Posteriormente, pretendo apresentar situações do meu campo em função da proposta de Guattari e Rolnik (1996), considerando algumas iniciativas de transformação, como potenciais geradoras de revoluções moleculares, que disseminam subjetividade de maneira continua e incontrolável.

5 “SEJA A MUDANÇA QUE VOCÊ QUER VER NO MUNDO” Neste capítulo destaco alguns atributos, práticas, acontecimentos e circunstâncias que me permitiram conhecer e vivenciar uma singularidade dos locais visitados no Brasil. A partir delas, meus interlocutores parecem inventar “oposições” ao poder hegemônico sobre suas vidas (FOUCAULT, 1995), procurando formas “originais” de manter as relações sociais, fortalecer a vida comunitária, se relacionar com o dinheiro, com o tempo, com o trabalho, com a propriedade, com a alimentação (entre outras), propícias para testar múltiplas possibilidades. Desta maneira meus interlocutores tomam atitude frente a formas de poder que submetem à subjetividade (FOUCAULT, 1995), ensaiando novos caminhos.

A seguir, apresento alguns momentos da minha convivência nas ecovilas. Estes aparecem como “um organismo vivo em constante evolução e aprendizagem”, tal como apontado por Lúcia ao se referir à Ecovila São José.