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2 EXPECTATIVAS DE UM MUNDO MELHOR

2.2 Revoluções moleculares e “experiências utópicas”

2.2.1 Experiências “utópicas”

2.2.1.1 O Falanstério de Saí

Um ensaio de falanstério também tentou concretizar-se no Brasil, segundo Gallo (2002) esta experiência seria a primeira experiência de colonização fourierista fora do continente Europeu. Neste projeto objetivou-se uma união entre o homem e a natureza para obter vantagens maiores dos recursos naturais, posição oposta à da colonização europeia que já acontecia no Brasil. Estas experiências que chegam ao Brasil como projetos de imigrantes franceses, representavam para estes, formas de pôr em prática a teoria social de Charles Fourier.

42Em 1774, a inglesa Ann Lee chegou à Nova Iorque, nos EUA, levada por

uma revelação em que era motivada para estabelecer a verdadeira igreja cristã nos EUA. Em 1776, estabelece a comunidade que chegou a ter aproximadamente 700 membros em 15 estados. The Shakers baseavam-se em quatro princípios básicos: pureza virgem, o comunismo cristão, confissão do pecado e separação do mundo (HINDS, 1908).

43Fundada pelo alemão George Rapp, que viajou para EUA, em 1803,

buscando “um lugar para adorar a Deus à sua maneira”. Ele era perseguido pelo clérigo alemão por predicar e não concordar que a igreja luterana fosse a personificação das doutrinas de Cristo e a vida. (HINDS, 1908)

44Nas primeiras décadas de 1800, os EUA passavam pelo “segundo grande

despertar”, caracterizado por uma revivificação religiosa. Além disto, aparecia interessante pelas características que oferecia: a partir do estabelecimento da República Americana com a materialização da constituição, reforçou-se a crença de um país com a missão de criar uma sociedade perfeita. Havia terrenos disponíveis, existia o princípio de liberdade religiosa e era receptivo à migração estrangeira (OVED, 1993).

Benoit Mure (1809 -1858) foi um fourierista francês voluntariado para realizar o projeto, dissidente, proveniente de uma ala do movimento intelectualizada e voltada para o espiritualismo45. Seu nascimento antecipado, com sete meses de gestação, determinou uma vida caracterizada pelos cuidados da própria saúde. Com vinte e três anos foi “desenganado” pelos médicos por apresentar um caso de tuberculose pulmonar. Nesse período descobre a homeopatia e decide tratar-se com esta terapia. Ao obter resultados favoráveis começa a estudá-la e inclusive divulgá-la, chegando a fundar instituições médicas tanto em Palermo como em Paris46. O Dr. Mure praticava e aprimorava esta terapia que se baseia no dinamismo vital, em contraponto aos princípios materialistas da medicina alopática47. Em 1838, fundou também uma “escola pura” de homeopatia, através dela acreditava formar cidadãos como uma contribuição para emancipação do povo através de uma “medicina positiva harmônica”.

A sede escolhida pelos fourieristas para o projeto do falanstério era o Brasil, um país idealizado. Caracterizado pela “abundância”, fornecida por uma “natureza generosa e bela”, onde seria possível exercer a caça, agricultura e pesca. Nele, aconteceria “a ruptura com a condição social de proletário escravizado e deserdado que busca felicidade em outro país, que vê em outro continente o paraíso” (p.165). Neste país também haveria um “monarca generoso”, que brindaria proteção e concederia terras permitindo dentro de “uma ampla liberdade, usufruir uma existência prazerosa” (p.166). Projeto no qual Mure participava do planejamento e discussões em Paris e posteriormente engajou-se como voluntário com

45Mure foi influenciado por Christian Friedrich Samuel Hahnemann, o

fundador da homeopatia, Emanuel Swedenborg, um espiritualista, místico sueco, que agiu como cientista e filósofo, criador de uma religião o swedenborgianismo e por Franz Mesmer, um médico austríaco que cria o mesmerismo, uma teoria de magnetismo animal.

46Em 1837, funda em Palermo, na Itália, um dispensário que chegou a tratar

uns duzentos pacientes por dia. Posteriormente, em 1839, funda outro em Paris em que atendia gratuitamente oitocentos pacientes por semana (GALLO, 2002)..

47Mure detestava a medicina alopática por causa dos tratamentos invasivos

que havia sofrido anteriormente sem sucesso, afirmando que eram os médicos que contribuíam para a maior parte das doenças e a mortalidade da espécie humana. Pretendia “devolver em parte o mal que lhe fizeram impedindo que fizessem o mesmo aos outros” (GALLO, 2002).

recursos financeiros próprios, com a finalidade de obter o terreno e dinheiro para sua consecução.

Desta maneira, um entusiasmado Mure desembarca em 1840 no Rio de Janeiro, com o objetivo de convencer ao imperador Pedro II de entregar um terreno e recursos para explorá-lo. Mure avocou-se a convencer às autoridades Brasileiras da utilidade do projeto para a fundação de uma colônia industrial. Em 1841 parte em direção a São Francisco do Sul, onde encontrou um terreno ideal para seu projeto na ilha do Saí, Santa Catarina. Embora, este tivesse dono, o Coronel Oliveira Camacho cedeu-o. Posteriormente o projeto foi aprovado na Câmara dos deputados, em 1842, considerando um auxílio do governo para o estabelecimento da colônia de uns quinhentos colonos franceses.

O falanstério do Saí era um projeto que considerava o trabalho como meio de libertação e não de escravidão48. Era assegurado em quanto à opção, variado, em jornadas curtas e remunerado em função de sua utilidade e de maneira inversa ao seu atrativo. Contudo, as desavenças entre seus membros dificultaram sua implementação e o projeto não se realizou como planejado, a tentativa iniciou em 1841 e se considera finalizada em inícios de 1846.

Após esta experiência, Benoit Mure volta para o Rio de Janeiro em 184349 onde dedicou-se a difundir a homeopatia e continuar com atividades que já havia iniciado na sua chegada. Em 1842, fundou o Instituto Homeopático50 do Brasil com o objetivo de propagar a homeopatia em “favor dos pobres” e realizou diversos empreendimentos51 para sua difusão. Partiu do Brasil em 1848, entre

48Os fourieristas interpretavam que não somente os negros eram escravos,

todavia os operários também o eram, e muitas vezes estes últimos viviam em condições piores que o escravo propriamente dito. (GALLO, 2002)

49Mure decide ir para o Rio de Janeiro e deixa no seu lugar a Charles Leclerc

prometendo-lhe voltar num período de dois a três messes, promessa que não cumpriu. A partir da saída de Mure as poucas obras existentes paralisaram-se. Em 1844, Michel Marie Derrion assume a colonização do Saí, tentando reerguer a obra, sem consegui-lo. Derrion estava à frente da Colônia Palmital que foi criada nas proximidades a partir das dissidências do Saí.

50Segundo Gallo (2002) a homeopatia foi introduzida ao Brasil em 1818 por

Antônio Ferreira França. No entanto, a maioria dos sites consultados na internet cita Benoit Mure como seu introdutor em 1840.

51Avocou-se a melhorar a saúde dos negros nas plantações de cana-de-açúcar,

conseguindo baixar a taxa de mortalidade. Ademais, conseguiu diversas conquistas na legislação vigente, fundou a academia medico-homeopática, a

outras razões, pelos inconvenientes que teve com representantes da medicina alopática. Mure se desentendeu com Duque Estrada (1812- 1900), um dos seus colaboradores, que obteve diploma de medicina em 1840 e se elegeu deputado à Assembleia Legislativa de Rio de Janeiro. Assim, enquanto para Mure a prática da homeopatia deveria se desenvolver com a maior liberdade possível, o seu colega52 propunha que somente poderiam praticá-la os diplomados em escolas regulares de medicina.

Até aqui apresentei algumas informações históricas que permitirão sustentar a argumentação de algumas escolhas do meu trabalho. Cabe ressaltar que ao fazer a pesquisa histórica, revisei textos, material de sites da internet e alguns vídeos de aulas de história dos EUA. Pude perceber que é de senso comum se referir a estas iniciativas como “comunidades utópicas”, “experiências” e “experimentos sociais” que “faliram”.

Nesse sentido retomo estas experiências como iniciativas de transformação que geraram “revoluções moleculares”. Estas iniciativas propunham uma “sociedade alternativa”, que os sujeitos tentaram construir em função das possibilidades do momento, destacando-se como focos de processos de singularização que disseminaram subjetividades nos diversos lugares onde aconteceram.

A título de exemplo, na experiência de Brook Farm, Newman (2003), aponta que esta esteve à frente de um movimento nacional, cujo destaque foi indiscutível. O movimento nacional em que Ripley levou a intelectuais transcendentalistas destacados de Boston foi um desafio para a ideologia do capitalismo em pleno desenvolvimento. Os interessados no movimento, considerando os partidários e associacionistas seriam em torno de cem mil sujeitos (GUARNERI, 1991, apud NEWMAN, 2003, p. 525).

Retomando o termo utopia, segundo o anteriormente exposto, podemos destacar que as iniciativas de pensadores como Fourier e Owen foram rotuladas como “utópicas” a partir da perspectiva materialista histórica de Karl Marx e Friedrich Engels. Sendo estes últimos propulsores da revolução, como uma mudança total da sociedade com base no poder do proletariado, noção que também poderia ser considerada como “utópica”. Contudo, estas iniciativas representaram verdadeiros

revista a Sciencia e abriu um hospital em Santa Tereza, no Rio de Janeiro, em 1847.

projetos para cada um destes autores, eles não se consideravam “utópicos”. Estes pensadores, de maneira diferente de Platão ou More, conforme os pensamentos da época não se conformaram em só propor ou instigar um questionamento dos valores da época, estes tentaram colocar suas propostas em prática.

Assim, visões de mudanças sociais que visaram a transformação total da vida humana, foram consideradas como “socialistas” e como “utópicas”, percepção que se mantém até hoje sob essa denominação. No entanto, o termo socialista na época, segundo Gallo (2002), não tinha a conotação da atualidade, tendo sido introduzido por volta de 1830:

O socialista era aquele cujo pensamento dirigia-se para as questões sociais e isso confere uma certa amplitude à palavra, nem sempre admitida atualmente. A palavra, na sua imprecisão, vinha designar uma nova realidade ainda fora de domínio e isto abria o campo para um socialismo plural, capaz de identificar, ou aproximar, ideias não exatamente iguais como cooperativismo e associanismo, ou ainda atrelar ao seu significado as noções de democracia, de república e de doutrina cristã. (GALLO, 2002, p.20)

Por outro lado, Kumar (1990) rejeita a interpretação marxista da história, apontando que as variedades de socialismo utópico têm sua própria importância independente em seus próprios termos. Para o autor, estas teorias visam também uma mensagem para o mundo, no entanto, encontraram o caminho certo não na revolução, mas numa tentativa de exploração progressiva de novas formas de vida em comunidade.

De fato, Fourier esperava conseguir que algum capitalista liberal progressista financiasse os falanstérios e com esta finalidade escreveu cerca de quatro mil cartas a pessoas que acreditava poderiam apoiar seu projeto (BARROS, 2011). Em contrapartida, Robert Owen conseguiu financiar seus projetos com recursos próprios. Inclusive, depois do fechamento dos projetos, ele não perdeu a fé nos seus ideais e pretendia investir numa outra comunidade ainda maior no México, no entanto, isto não aconteceu.

Assim, ao considerar estas experiências como “experimentos sociais”, existe em consequência uma expectativa de resultado: fracasso ou sucesso. A partir desta visão qualificaria um socialismo prático que “teria fracassado”, o que favorece a imagem de um capitalismo que

“sucede”. Argumento que seria justificado em termos de tempo de vida das comunidades, uma vez que, materialmente não perduraram. No entanto, elas continuam vivas na história e nas experiências que influenciaram como será mostrado mais adiante. No caso das propostas teóricas dos “socialistas utópicos”, foram criticadas por não terem conseguido aplicar a teoria exatamente como foi planejado. Não obstante, a experiência de “fracasso” não corresponde com diversos relatos de moradores ou visitantes destas comunidades. Nesse sentido, Kumar (1990) considera que perceber as comunidades como fracassos a partir do critério de sobrevivência é confundir seu propósito e valor, pois, são experiências de vida.

A seguir abordarei o que penso ser o segundo momento histórico que me permite ilustrar e rastrear iniciativas de transformação e introduzir as experiências “alternativas”, a “contracultura”.