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Fluxograma 1: O lugar do fã dentro do processo produtivo das indústrias culturais

2.1 Causas e consequências: refutando a ideia do fã como soberano

2.1.2 Direcionamento do que se conhece

Para a EPC, a principal característica da produção cultural, aquilo que a diferencia das demais produções capitalistas, é a sua unicidade, isto é, aquilo que constitui seu valor de uso. Ela se dá pois, de acordo com Bolaño (2000, p. 167), “aos olhos do consumidor, o produto cultural é marcado pela personalidade dos trabalhadores que participaram de sua elaboração”. O autor vê três consequências imediatas para a unicidade: aleatoriedade da realização, limites de reprodutibilidade e diversidade das condições de valorização. Ainda que todas essas questões influenciem diretamente na escolha do que chega ao público e de que maneira chegam, nesta pesquisa me limitarei a discutir o primeiro, que mais dialoga com a experiência do fã.

O caráter aleatório que determina quais obras obterão sucesso e quais serão preteridas já era empiricamente observado e combatido pelas indústrias culturais. Buscando uma explicação para esse fenômeno, que chamaria de “aleatoriedade da valorização”, Flichy (1980), membro da escola de GRESEC, percebe que ele reforça a singularidade dessa produção:

Não existe outro bem de consumo para qual os produtores tenham um tal desconhecimento da demanda a ponto de serem obrigados a fazer dez ou quinze ensaios para obter um sucesso. [...] Se a produção cultural é tão parecida a uma aposta é porque por definição cada produto é único. (FLICHY apud BOLAÑO, 2000, p. 167).

E vai além, apontando outra particularidade dos produtos culturais também decisiva para a aleatoriedade: a sua breve vida útil, limitada a alguns meses ou anos (BOLAÑO, 2000, p. 167). Bolaño corrobora com o raciocínio de Flichy, embora, assim como Zallo (1988), faça a ressalva que há uma confusão, não se tratando de “aleatoriedade da valorização”, argumentando que “a aleatoriedade característica das indústrias culturais é uma ALEATORIEDADE DA REALIZAÇÃO. E, nesse sentido sim, ela é mais grave na produção cultural do que em outros setores econômicos” (BOLAÑO, 2000, p. 168).

Em resumo, a Indústria Cultural, mais que outras indústrias, se apoia em produtos singulares e de receptividade imprevisíveis, cujo retorno, caso haja, se restringe a um curto período, para sustentar seus lucros e cumprir seu papel de mediadora do capital e do Estado. Com tanto em jogo, não se espera que ela se sujeite passivamente a essa arbitrariedade – e sim, busque “mecanismos que permitem a constituição e fidelização da audiência” (BOLAÑO, 2000, p. 215), isto é, estratégias para driblar a aleatoriedade da realização a partir da captura do público para determinado produto cultural. Muitos desses mecanismos correspondem a articulações para garantir mais que uma audiência satisfeita, mas também fiel, ativa e engajada – resultando prontamente na emergência de grupos de fãs.

Talvez a estratégia mais conhecida neste sentido seja o star system, que se baseia no poder de celebridade do artista para atrair o público, principalmente na escalação de atores para filmes e séries de tv. O nome foi inicialmente veiculado ao processo comum na era do sistema de estúdio de Hollywood, entre as décadas de 20 e 60, em que os grandes estúdios mantinham restritos contratos de exclusividade com atores e atrizes, trabalhando suas imagens através da construção de personas – com publicações nas primeiras revistas de celebridade e a repetição de personagens similares, por exemplo. Dá-se início ao que Edgar Morin (1989) chama de “mitologia das estrelas”, onde “como determinados deuses do panteão da Antiguidade se metamorfoseavam em deuses-heróis, as estrelas-deusas humanizam-se, tornam-se novos mediadores entre o mundo maravilhoso dos sonhos e a vida quotidiana” (MORIN, 1989, p. 20-21). Alguns nomes desse período são Marilyn Monroe, Greta Garbo e Clark Gable, que contam com legiões de fãs até o presente.

Uma vez construída essa aura mitológica, o ator passa a ser um dos principais atrativos para os filmes, tendo seus rostos destacados em cartazes e nomes em largas letras no início do filme (retomando a ideia de que, para o público, o produto cultural é marcado pela personalidade de quem trabalhou nele). O status de estrela passa a ser definitivo para o sucesso desse trabalhador cultural, elevando, junto com seu prestígio, seu salário e o número de ofertas de projetos. Os admiradores são tanto de interesse dos produtores quanto dos próprios atores e atrizes.

Ao mesmo tempo que os astros remetem ao escapismo de vidas fantasiosas nas telas e exuberantes fora delas (o que leva Morin a denominar as estrelas de cinema como Olimpianos), esses artistas buscam ser acessíveis – ou ao menos aparentar ser. Se põem a disposição do público, contando sobre suas experiências mundanas e de fácil identificação, posando para paparazzi no “mundo real”, respondendo cartas de fãs e dividindo seus relacionamentos amorosos com o mundo. Contraditoriamente, afastando-se da divindade é

que estimulam ainda mais o seu culto e, consequentemente, sua fama. E como ídolos servem como importante atrativo para a mediação:

O papel das estrelas transcendeu amplamente a tela de cinema. Em 1937, elas eram “madrinhas” de 90% dos grandes programas de rádio americanos, e hoje praticamente não existe um programa de televisão do qual não participe uma guest star. Estrelas continuam a anunciar produtos de higiene, cosméticos, concursos de beleza, competições esportivas, lançamentos literários, campanhas de caridade e eventualmente eleições: nos Estados Unidos, as estrelas participam ativamente das campanhas políticas. (MORIN, 1989, p. XV).

Sendo a primeira edição de seu livro publicada em 1959, Edgar Morin desconhecia a teoria da aleatoriedade da realização, mas já observava a relação entre o star system como “instituição própria ao grande capitalismo” e a estrela como estratégias sobre a crescente concorrência entre os estúdios cinematográficos, que, segundo ele, respondem às necessidades antropológicas tal qual a religião. Morin entende o ator como “mercadoria total”, visto que tudo que é, desde seu corpo às suas ações, pode ser mercantilizado. Mais que isso: a estrela é a melhor das mercadorias, pois não se gasta com o uso, permanece original e única mesmo quando compartilhada e tem sua continuidade assegurada pois sua matéria-prima são os sonhos e sentimentos humanos (MORIN, 1989, p. 74-77).

Para a EPC, o star system interessa a partir de duas principais questões: como tática de alcançar e captar o consumidor, utilizando a notoriedade do artista para possivelmente sanar a aleatoriedade; e como forma de subsumir o trabalho cultural, na medida que o próprio trabalhador “permite ao capital apropriar-se da sua capacidade de criar uma espécie de cumplicidade com o público, que aceita dar-lhe atenção, de passar o seu tempo com ele” pois “é dessa força simbólica que o capital se apropria.” (BOLAÑO, 2000, p. 230). Novamente notamos que, mesmo ainda sem uma menção direta ao fã na crítica da Economia Política, sua posição na dinâmica da Indústria Cultural já estava circunscrita na análise dessa relação entre público e celebridades.

Atualmente, apesar do sistema de estúdio ter chegado ao fim e os contratos entre artistas e estúdios terem sido flexibilizados, a evidenciação da estrela permanece nas mais diversas indústrias culturais, inclusive nas novas mídias. Em um de seus cursos de distribuição cinematográfica a agência britânica FDA (Film Distributors’ Association) enumera algumas perguntas a serem feitas na compra de um filme para lançamento, devido ao aumento da competitividade nesse mercado. Algumas delas são:

[...] existe alguma estrela entre o elenco? Quais foram os últimos filmes do ator principal e como foram recebidos comercial e criticamente? Essas estrelas têm um público/seguidores on-line engajados nas mídias sociais? Existem membros do elenco disponíveis para publicidade no Reino Unido/internacional ou para participar de uma estreia? (FDA, [201-], tradução minha).43

Bolaño (2000, p. 188), em seu livro, expande a ideia de star system para além de atores ou até artistas, considerando “toda essa gama de ‘homens de comunicação’, que ajudam em grande medida a reduzir os riscos da aleatoriedade”. Inclui-se, portanto, músicos, jornalistas, diretores, roteiristas, apresentadores, youtubers, blogueiros etc. Os produtores culturais desembolsam milhões para ter esses nomes vinculados às suas marcas – e quanto maior o público fiel à estrela (ou seguidores, inscritos, curtidas...), maior seu cachê, afinal, o valor econômico não representa apenas seu trabalho, e sim a compra da mercadoria audiência vinculada àquele nome.

A principal maneira em que o star system funciona é como recurso para a divulgação do produto cultural – coletivas de imprensa, a chamada press tour (em que atores e atrizes se submetem a semanas de entrevistas e aparições na mídia – que quase imediatamente são disponibilizadas na internet) e posts temáticos em suas redes sociais particulares estão previstas no contrato do próprio filme ou série – o que também é comum entre músicos antes do lançamento de um álbum, autores prestes a publicar seus livros etc.

Os custos de marketing são os que mais crescem na indústria cultural. No cinema, por exemplo, de 2010 a 2014 o orçamento para publicidade passou de 70% do valor dos custos de produção de um filme – o que já era bastante, considerando o valor médio de um filme comercial – para mais de 400% em produções de baixo custo (HOW HAS MOVIE..., 2014). Essa maior preocupação com marketing é resultado da popularização das mídias digitais, que demandam novos recursos de divulgação, e da crescente concorrência, com o enorme volume de conteúdo ofertado nas mesmas indústrias. Nos oferecendo mais do que podemos consumir, dão a impressão de que temos mais domínio sobre nossas escolhas, quando, na verdade,

Sob o jugo de um todo repressivo, a liberdade pode ser transformada em poderoso instrumento de dominação. O alcance da escolha aberta ao indivíduo não é o fator decisivo para a determinação do grau de liberdade humana, mas o que pode ser escolhido e o que é escolhido pelo indivíduo. [...] A livre escolha entre ampla variedade de mercadorias e serviços não significa liberdade se esses serviços e

43 Do original: “Is there any star power among the cast? What were the lead star’s last couple of films and

how were they received commercially and critically? Do those stars have an engaged online

audience/followers on social media? Are any cast members available for UK/international publicity or to attend a premiere?”.

mercadorias sustém os controles sociais sobre uma vida de labuta e temor – isto é, se sustém alienação. A reprodução espontânea, pelo indivíduo, de necessidades superimpostas não estabelece autonomia; apenas testemunha a eficácia dos controles. (MARCUSE apud SCHNEIDER, 2015, p. 165).

Para cumprir seu propósito de dominar o mundo da vida, a Indústria Cultural tende a produzir obras cada vez mais sob medida, e, dessa maneira, a publicidade e a propaganda podem ser direcionadas mais precisamente aos seus consumidores potenciais. A variedade de conteúdo, ou “menu infinito”, como sugere Chris Anderson (2006, p. 6), significa que, além das obras para um público geral, estandardizado, surgem obras mais específicas, dividindo o público em “nichos”. Analisarei os efeitos dos nichos e da variedade de oferta na produção mais abaixo. Por hora, restrinjo-me a como esses fatores interferem em quais produtos chegam ao público – no que se conhece.

O grande exemplo aqui é o conteúdo televisivo: enquanto a TV aberta não deixa de existir, agradando as massas e com empresas de produtos mais gerais entre seus anunciantes (apesar da distinção entre idade e gênero de acordo com o horário/grade), os canais da TV segmentada tem audiências distintas entre si, que optam de acordo com a oferta do canal, e, caso os canais tenham anunciantes, estes vendem produtos que interessem grupos menores; já os serviços de streaming conseguem, através do uso de algoritmos e Big Data, identificar os gostos de cada usuário e direcionar obras de maneira quase personalizada (FIGUEIREDO SOBRINHO; BOLAÑO, 2017). Dinâmicas semelhantes podem ser verificadas em outras indústrias, como a da música, das HQs ou do cinema.

A divisão das massas em subgrupos é positiva para o marketing dessas obras, que se particulariza e, ao mesmo tempo que precisa enfrentar uma concorrência maior, tem mais certeza dos seus resultados. Mesmo sendo comumente atribuído às pesquisas de viés mercadológico, o fenômeno da Cauda Longa descrito por Anderson (2006), ajuda a entender o porquê: a partir de análise de bases de dados de diversas companhias de mídia digital, ele percebe que, ainda que o número de consumidores decline rapidamente na medida em que se afastasse dos produtos de maior sucesso, esse valor nunca chegará a zero. Ou seja, mesmo que o número total da audiência diminua – ou se distribua, melhor colocando –, o consumo é garantido. E mais: é mais ativo, imersivo e constante. Contraditoriamente, a segmentação auxilia a fugir da aleatoriedade da realização.

Essa divisão da mercadoria audiência gera um consumo retroalimentativo, por um lado porque é mais fácil permanecer no que já é certo que satisfará o gosto pessoal; por outro, porque seja pelo canal televisivo, pelo algoritmo construído ou pelo nicho, fica

gradativamente mais difícil ter acesso a conteúdo diversificado. Em casos extremos, como nos fandoms, surge um “círculo” cultural no qual o consumidor se vê imerso em um estilo, uma temática, um gênero etc., muitas vezes se relacionando quase exclusivamente com iguais.

Através do star system, da grande variedade de obras, da divisão da audiência e de tantas outras estratégias, percebemos que a distribuição na Indústria Cultural não só condiciona como o produto chega ao conhecimento do consumidor, ela também seleciona o

que chega para quem, sempre visando a maneira mais provável para o sucesso – o que nem

sempre significa grandes números de audiência. A principal preocupação é assegurar que a unicidade da obra funcione em seu favor, e, para isso, explorará ao máximo esse caráter.