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Fluxograma 1: O lugar do fã dentro do processo produtivo das indústrias culturais

2.1 Causas e consequências: refutando a ideia do fã como soberano

2.1.1 Direcionamento do que se gosta

A audiência, apesar de ser categoricamente mercadoria devido à sua função, é diferente das demais mercadorias capitalistas em sua criação, sendo, neste sentido, mais próxima das forças de trabalho – “uma energia que existe nos sujeitos [...] e que pode ser apropriada pelo capital em determinadas condições sociais e técnicas” (BOLAÑO, 2000, p. 230). E mais:

O capital só pode se apropriar dessa energia expropriando o produtor cultural de todos os meios de acesso ao público, o que foi possível a partir do desenvolvimento das tecnologias da comunicação e de sua imposição como forma hegemônica de difusão dos produtos culturais. O que o capital faz é, em primeiro lugar, utilizar o poder simbólico do trabalho cultural para criar o efeito de empatia que transforma os sujeitos em audiência, e portanto em objeto, e em seguida produzir os cortes, as classificações e as especificações que lhe vão permitir oferecer uma mercadoria diferenciada num mercado inter-capitalista. (BOLAÑO, 2000, p. 230, grifo meu).

Quer dizer, uma das especificidades da mercadoria audiência é sua capacidade (não autonomia) de alternar quando será ou não apropriada pelo capital, o que se dá através da preferência resultante do “efeito de empatia”. Preferência essa calcada pelo gosto do público, e que, portanto, é elemento primordial para o funcionamento da Indústria Cultural.

Segundo Schneider (2015), inicialmente era o gosto de artistas e da população que direcionava empresários sobre o que deveria ser produzido, reproduzido e posto em circulação; com o tempo, o ramo se tornou tão lucrativo que essas definições passam a ser regidas pela lógica econômica, e o mesmo acontece com a orientação do gosto dos artistas e do público.

Essa nova orientação é possível pois, como defende o autor, “o gosto não é um dado acabado, mas um processo, uma formação socialmente mediada” (SCHNEIDER, 2015, p. 71), que reflete, mesmo que indiretamente, os imperativos econômicos que regem essa sociedade, em uma clara associação à problemática da hegemonia. O gosto não é inteiramente livre: apesar de marcado pelas nossas experiências e individualidades, é também determinado pelas nossas particularidades enquanto membros de um ou vários “universos indentitários” (SCHNEIDER, 2015, p. 40). Categorias como classe social, gênero, raça, etnia e idade simultaneamente influenciam e são influenciadas por esses “universos”, e é por isso que, quando discutidas as preferências do consumidor, é essencial que essas questões sejam levadas em conta, sob o risco de tornar o discurso simplista e impreciso.

Bourdieu (2008) define que o gosto é consequência do habitus, noções adquiridas de experiências individuais que estruturam as ações do ator social, auxiliando-o na adequação à sociedade. Ou seja, “o habitus aparece como o elemento que possibilita ao agente saber como agir e em que momento agir a partir de uma leitura incorporada pela experiência vivida dos sentidos e limites sociais objetivos que se deve respeitar” (ARBOLEYA, 2013, p. 10). Uma das necessidades ditadas pelo habitus é o da posse de capital social e cultural – o que não necessariamente implica em posse de capital econômico. Na verdade, para ele, mais que o econômico, é o capital social, que reflete no estilo de vida, que distingue o ator dentre a sociedade. O gosto, portanto, é um valioso instrumento para demonstrar tal virtude, originando numa disputa de classes em torno de si.

Desde já, destaco que não cabe a nós, pesquisadores, hierarquizar preferências culturais, desafio que, pela associação frequente ao consumo de massa, é enfrentado constantemente pelos fandoms, sendo inclusive discutido por diversos autores dos Estudos de Fãs como levantado no capítulo anterior. A diferenciação entre “bom” e “mau” gosto é

um discurso idealista e sem validade. Segundo o pensamento de Bourdieu (2008; 1983), hierarquizar conscientemente preferências corrobora com divisões sociais, reproduzindo ideais preconceituosos e excludentes. Não é possível valorizar ou inferiorizar algo tão abstrato e individual quanto o prazer, o que, para Schneider (2015), faz do gosto uma verdade independente de críticas.

Bourdieu (2008) aponta família e formação educacional, fatores diretamente relacionados à posição social, como influências diretas à padrões de consumo – entre eles o gosto cultural. Assim, por mais que haja uma tentativa de homogeneização do público de massa, “é fato conhecido que um mesmo produto, veiculado a grupos socioeconômicos distintos é recebido de formas bastante diferentes” (BOLAÑO, 2000, p. 207). A estandardização não é possível na Indústria Cultural, dado que a separação do consumidor é quem garante a concorrência no mercado capitalista. O que de fato ocorre é uma tendência de segmentação da audiência que dá a ilusão de grupos homogêneos. Em resposta, o capital utiliza da variedade exigida pela concorrência para se moldar a diversas formas culturais, cada uma delas agradando gostos diferentes. É isso que Schneider (2015, p. 136), ao pegar emprestado o termo de Martín-Barbero (2003), denomina de “jiboia”, que, de forma até democrática, adquire a forma da cultura que devora.

Os perigos desse fenômeno estão na interpretação de que a “jiboia” é efeito da autonomia do público, quando também é uma estratégia para benefício do capital – retomando a dialética estrutura versus agência. Como explicado por Bolaño (2000), o interesse da Indústria Cultural é, a partir da empatia, atrair o gosto do público para cumprir suas funções perante o capital e o Estado. Ora, se gosto é “a estruturação dos prazeres em escala valorativa” (SCHNEIDER, 2015, p. 164), sendo o desgosto aquilo que não causa qualquer tipo de prazer, e essa escala valorativa é influenciada pela lógica do capital cultural (BOURDIEU, 2008), que por sua vez é fortemente determinado pela Indústria Cultural, é esperado que esta atue de forma a moldar os gostos de acordo com o seu interesse, como veremos nos tópicos subsequentes.

O gosto é uma contradição entre autonomia e heteronomia, dependente de experiências ao mesmo tempo individuais e socioculturais, estrutura e agência. Giddens (1989) não subestima a consciência e vontade dos atores, mas suas ações, ainda que intencionais, são adequadas à uma estrutura (mutável e adaptável) que os antecede. Na Indústria Cultural, essas experiências determinantes são sempre alimentadas pela lógica informacional, afinal, ainda que seja inevitável desenvolver uma opinião ou julgamento de valor sobre algo, só podemos fazê-lo daquilo que existe e nos é informado – e, “sob o

comando do capital [...], a tendência é que só se produza e se informe o que possa estar direta ou indiretamente relacionado com seu próprio crescimento e concentração [...]” (SCHNEIDER, 2015, p. 43).